Os desafios de uma reforma contestada

Quatro anos depois das ocupações contra o novo Ensino Médio, a legislação começa a mudar a rotina das escolas em meio a um contexto conturbado. Com orçamentos apertados e carências em infraestrutura, as redes de ensino discutem como adotar o novo formato sem ampliar as desigualdades já existentes no acesso à educação

Ocupado: os estudantes entre o velho e o novo Ensino Médio

Parte 1: Trincheiras contra a reforma

O especial “Ocupado: os estudantes entre o velho e o novo Ensino Médio” foi produzido pelo Plural com apoio do II Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação)

Os estudantes da 1ª série do Centro de Ensino Médio Integrado (Cemi) do Gama, localizada a menos de 40 minutos da Praça dos Três Poderes, em Brasília, encontraram uma escola diferente na segunda sexta-feira de março de 2021. O encontro foi virtual, devido às restrições impostas durante a pandemia de Covid-19, mas a novidade que chamou a atenção foi a notícia de uma nova grade horária. Em uma live no YouTube, foram apresentados a uma carta de disciplinas eletivas e itinerários formativos que devem compor parte das nove horas diárias que passam em aula.  Ainda que acostumados à realidade de uma das escolas modelo do Distrito Federal, os alunos ainda não conheciam o novo formato de disciplinas eletivas aprovado com a reforma do Ensino Médio. Na formação geral – comum para todas as escolas do país – estão garantidas aulas de Português, Matemática, Língua Inglesa e encontros sobre Projeto de Vida. Por ser uma escola pública de ensino profissionalizante, uma fatia da carga horária está também reservada para a formação técnica. O Cemi é uma das 28,8 mil escolas brasileiras que vão assumir uma nova rotina de ensino secundarista até o começo de 2022.

A reorganização dos anos finais da educação básica é resultado de duas políticas complementares: a homologação da etapa secundarista da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a instituição do Novo Ensino Médio, que estabelece regras para a implementação da Base. Na prática, os estudantes serão testemunhas de mudanças decisivas no dia a dia escolar. Entre as alterações estão o aumento da carga horária total de ensino de 2.400 para 3.000 horas e a criação de itinerários formativos – etapa flexível em que o aluno define a “trilha” que irá seguir. Das 13 disciplinas consideradas obrigatórias antes da reforma, passam a ser fixas apenas as de Português e Matemática. As demais poderão ser incluídas pelos estados de forma transversal nas áreas do conhecimento, o que pode reduzir o número individual de aulas.

“Quantas trilhas a gente pode escolher? E quais as obrigatórias?”, questiona um dos alunos nos comentários da live do Cemi. Ele é seguido por outro colega: “pode mudar as trilhas se não gostar?”. “Do terceiro para o quarto semestre é possível”, explica uma das mediadoras. Mas a chuva de perguntas não é exclusividade dos estudantes do Cemi – uma das escolas-piloto de todo o Brasil que adiantou a implementação do sistema para este ano. A 1,4 mil quilômetros dali, a aluna do Instituto Federal do Paraná Taís Carvalho (17) entende que tirar essas propostas do papel será um desafio para a comunidade escolar. “Para nós fica um grande ponto de interrogação sobre como isso vai funcionar. Porque de fato nossas escolas não têm a infraestrutura necessária para tudo isso”, afirma.

A desconfiança da estudante paranaense, que também preside a União Paranaense dos Estudantes Secundaristas (Upes), se soma às demandas de uma geração anterior de alunos e alunas. Em 2016, quando a Medida Provisória (MP) 746 foi proposta pelo então presidente Michel Temer (MDB), estudantes de todo o Brasil ocuparam 1.071 escolas e 123 universidades em protesto, conforme mostra a primeira reportagem do especial “OCUPADO: os estudantes entre o velho e o novo Ensino Médio”. A MP foi a gênese da Lei 13.415, que instituiu o novo Ensino Médio.

As mudanças inspiram preocupações de que os degraus da desigualdade fiquem ainda maiores entre os estudantes brasileiros. Um ano antes das ocupações, o Indicador de Nível Socioeconômico das Escolas de Educação Básica (Inse) mostrava que 20,8% das escolas brasileiras eram ocupadas por alunos com os menores índices de renda familiar e escolaridade dos pais.

Como quase tudo no Brasil atual, a reforma do Ensino Médio é um tema polarizado. A disputa sobre a forma como a próxima geração de brasileiros vai aprender se insere em uma oposição de visões e projetos de sociedade, por mais que se tente cobrir a questão com um véu de tecnicidade. Afinal, as mudanças que se traduzem na escola têm um lastro conceitual. “Em política pública, quem disser que existe escolha puramente técnica já ideologizou o debate”, alerta o pesquisador e professor de Políticas Educacionais na Universidade Federal do ABC, Fernando Cássio. “A reforma do Ensino Médio traz uma visão de como se devem distribuir os recursos, como se deve distribuir o conhecimento, como a inteligência do país deve estar distribuída na população”, defende.

De acordo com a especialista em Educação e conselheira do Movimento pela Base, Anna Penido, as discussões levantadas pela Base Nacional Comum Curricular, como a inclusão de projeto de vida, flexibilidade e organização curricular por competências, são positivas para o protagonismo dos adolescentes. “Existia uma preocupação muito grande para que essa reforma pudesse contemplar uma concepção de uma escola com mais sentido para jovens já nascidos no século XXI”,  diz.

Nesse cabo de guerra, há, aparentemente, apenas duas concordâncias: (1) o Ensino Médio brasileiro, como é hoje, não garante aos jovens brasileiros o seu direito constitucional “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, como estabelecido na Constituição Federal; e (2) resolver esse problema exige recursos. A partir daí tudo está em disputa – de onde devem partir os investimentos, o que exatamente significa “pleno desenvolvimento da pessoa”, quais são as prioridades e como mensurar os resultados.

Indicadores de Nível Socioeconômico das Escolas de Educação Básica

Em 2015, 20% das escolas brasileiras ocupavam os grupos 1 e 2 da classificação.

Fonte: Inep, 2015.

Escolas-piloto

O novo Ensino Médio chegou em um contexto político conturbado, atravessou três governos e nove ministros da Educação desde sua concepção em novembro de 2013. De lá para cá, até a publicação desta reportagem, 18 estados enviaram seus novos currículos para homologação dos respectivos Conselhos Estaduais de Educação, de acordo com o observatório do Movimento Pela Base. Muitos se adiantaram e, como o Distrito Federal, estabeleceram escolas-piloto para testar o sistema. 

O Ministério da Educação (MEC) deixa pistas do que considera como “boas práticas”, listadas em seu site. As escolas que se destacam na adaptação para o novo modelo são, em sua maioria, aquelas que já tinham uma experiência de ensino integral e profissional, ou que aplicavam uma gestão baseada em projetos interdisciplinares – está na lista, por exemplo, o Instituto Federal do Paraná. A primeira experiência citada no documento foi realizada pela Secretaria Estadual de Educação da Bahia, que fez um sistema de escutas quantitativas e qualitativas da comunidade escolar. 

O caso do Cemi, em Brasilia, é similar, e indica que as escolas que reforçam processos de participação podem vislumbrar bons resultados. “Nós temos várias pessoas de realidades diferentes, costumes diferentes, habilidades e capacidades diferentes”, lembra Francisco Alerto, aluno da 2ª série do Cemi. “Eu enxergo o novo Ensino Médio como uma proposta que vem para solucionar isso, de certo modo. Temos uma opção, um protagonismo maior.”

No Norte do Brasil, a escola-piloto Senador Adalberto Sena, localizada em Rio Branco, capital do Acre, caminha ao lado da secretaria estadual de Educação para se adaptar à nova rotina escolar. O acompanhamento foi especialmente dedicado à etapa de formação, já que faz apenas dois anos que a unidade recebe alunos do Ensino Médio. De acordo com a pedagoga e coordenadora de ensino da escola-piloto Senador Adalberto Sena, Letícia Lopes, os alunos tiveram mais dificuldade de entender o aumento da carga horária e a inclusão de disciplinas eletivas, mas receberam bem a proposta de Projeto de Vida, iniciada no último ano.

Para além das escolas que recebem com facilidade estas mudanças, a lista de “coisas a fazer” das secretarias estaduais é longa. Em seu site, o Movimento pela Base inclui nestas demandas, por exemplo, a “alocação de professores, mudanças no sistema de matrícula” e um dos pontos mais sensíveis da implementação: a “garantia de oferta de opções de itinerários formativos aos estudantes”.

É consenso que o Ensino Médio brasileiro não é homogêneo, principalmente quanto à permanência do aluno na escola. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) de 2019 mostram que 4,8% dos estudantes desta etapa de ensino abandonaram os estudos antes de sua conclusão. Enquanto a taxa é de 5,3% nas escolas públicas, o número cai drasticamente para 0,2% na rede privada.

O desafio dos estados 

Em 2015, representantes de todo o mundo se encontraram em Incheon, na Coreia do Sul, para participar do Fórum Mundial de Educação. Com a presença de diversos representantes brasileiros, o Ministério da Educação já rodava as conferências com um pacote de pareceres que reforçariam a instituição de um novo Ensino Médio. Resultado do evento, a Declaração de Incheon trouxe pontos que corresponderam com as expectativas do governo: “é importante que se ofereçam percursos de aprendizagem flexíveis e também o reconhecimento, a validação e a certificação do conhecimento, das habilidades e das competências adquiridos por meio tanto da educação formal quanto da educação informal”, dizia o texto, validando parte das propostas que comporiam a BNCC. A base ignorou, no entanto, outro ponto da Declaração: a incorporação das questões de gênero como premissa na formação de professores e no currículo. 

No ano seguinte, munido de uma carta de indicadores que mostrava queda na qualidade do ensino no Brasil, o MEC iniciou uma jornada de convencimento para a reforma. Com uma articulação sólida reforçada por organizações ligadas ao Movimento pela Base, a proposta de um currículo movido a competências passou por um calendário de discussões que incluiu consultas online, seminários estaduais e duas revisões textuais. “O contexto era muito difícil, conflituoso, mas havia adesão total dos secretários estaduais de Educação. Nenhum foi contra”, afirma a ex-secretária executiva do MEC, Maria Helena Guimarães, que foi gestora na versão final da BNCC.

A chegada da pandemia, é claro, atrasou o cronograma e estressou os desafios para a sua implementação. A discussão conceitual sobre o que deveria ou não conter no novo Ensino Médio não ficou para trás. Mas a emergência em organizar a implementação dos estados tomou a agenda pública. Uma análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – módulo Covid, realizada pela Fundação Abrinq, mostra que cerca de 700 mil adolescentes de 15 a 17 anos afirmam não ter estudado durante o segundo semestre de 2020, por conta da nova rotina de aulas remotas. O mesmo estudo reforça que metade da população de até 17 anos com renda familiar de até um quarto do salário mínimo (cerca de R$ 260), não tem acesso à Internet. Entre aqueles que conseguem se conectar, o equipamento mais comum em todas as faixas de renda é o telefone celular. Em 2019, último ano em que as aulas foram presenciais, a proporção de escolas de Ensino Médio sem acesso à internet chegou a 50% em alguns estados.

Mais de quatro anos depois do fim das ocupações secundaristas que lutavam contra a reforma, este é o cenário que o novo Ensino Médio encontrará no Brasil.

O Ensino Médio no tempo 

O presidente do Conselho Nacional de Educação, Eduardo Deschamps, reforça que muitas secretarias estaduais de educação já estão avançadas no processo e que o MEC lançou o primeiro edital para materiais didáticos que tratam da formação geral básica para projetos integradores, projeto de vida e área comum. “Não é uma escolha fechada”, afirma. O refrão é repetido como forma de facilitar a capilaridade da reforma nos estados, que têm liberdade para decidir como vão aplicar o novo modelo.

No Mato Grosso do Sul, o presidente do Conselho Estadual de Educação e Superintendente de Políticas Educacionais da Secretaria de Estado de Educação, Helio Queiroz, lembra que o novo currículo já foi homologado. Por lá, a secretaria está produzindo os itinerários formativos que serão disponibilizados para a rede, questão que ultrapassa o pedagógico e esbarra no orçamento. “Imagina isso no impacto de uma rede estadual como um todo. Você tem o itinerário formativo que, necessariamente, precisa de investimento. Exige laboratórios, exige uma estrutura maior, exige integrar a educação profissional no itinerário”, afirma Queiroz, que também já foi superintendente financeiro. “São investimentos que até então não estão previstos nos orçamentos dos estados, nem no orçamento da própria União, como repasse”, conclui.

O cenário de um país de tamanho continental e o “fator pandemia” é pretexto para que os estados tenham tempos diferentes de implementação. No Ceará, por exemplo, estado que apresenta bom desempenho nas avaliações nacionais, as 460 escolas-piloto e demais unidades de ensino ainda não receberam o plano completo de transição para o novo modelo. “A gente sabe que o maior desafio de adaptação do currículo será nas escolas de tempo parcial. E fazer essa distribuição entre tempo normal geral e itinerário dá essa sensação aos professores de que estão ‘perdendo aulas’”, ilustra a coordenadora de Gestão Pedagógica do Ensino Médio na Secretaria da Educação do estado, Iane Nobre.

A gestora entende que a flexibilidade proposta na lei é boa, mas lembra que há pontos que não são negociáveis, como o teto da carga horária da formação geral. “Aqui no Ceará, a gente entende que funciona, porque temos melhorado nossos indicadores constantemente, as avaliações externas não nos assustam”, afirma. Mas a virada de chave entre uma abordagem linear para uma abordagem de competências leva tempo. “Talvez a gente tenha um período de muita dificuldade, pela própria necessidade de adaptação, porque esses processos não se colocam num documento e todo mundo lê”.

O currículo só poderá ser homologado após um processo de consultas públicas, já realizadas em 23 das 27 unidades federativas. Em qualquer contexto, as ocupações escolares de 2016 escancararam a necessidade de ouvir a opinião de pais, alunos e professores para tomar decisões sobre o novo ensino médio – naquele ano, 20 estados registraram escolas tomadas por secundaristas. Para a estudante Taís Carvalho, essa escuta tem que ser feita de forma consciente, efetiva e que facilite a compreensão de quem participa. Não basta um formulário on-line. Segundo ela, se a Medida Provisória foi um projeto que foi empurrado para os estudantes, sua implementação não pode seguir o mesmo caminho. “A impressão que dá é que podemos escolher a disciplina que queremos, mas não a escola que queremos. Onde está o protagonismo?”, alerta

Indicadores do andamento das ações de construção curricular no Brasil

Com a BNCC e as diretrizes para o Novo Ensino Médio, os estados devem adequar seus currículos escolares.
Os currículos serão compostos pela Formação Geral Básica, parte comum, e os Itinerários Formativos, parte flexível. Os textos serão submetidos à consulta pública.
Confira o status de construção curricular e implementação do Novo Ensino Médio nos estados, de acordo com o Observatório do Ensino Médio organizado pelo Movimento pela Base.

Ação concluída

Ação não concluída

Estados Escrita da Formação Geral Básica Consulta pública da Formação Geral Básica Escrita dos Itinerários Formativos Consulta pública dos Itinerários Formativos Revisão final do currículo Entrega do currículo ao Conselho Estadual de Educação Currículo homologado
Acre Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Alagoas Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída Ação não concluída
Amapá Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Amazonas Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Bahia Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída
Ceará Ação concluída Ação concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída
Distrito Federal Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída
Espírito Santo Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída
Goiás Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Maranhão Ação concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída
Mato Grosso Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Mato Grosso do Sul Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída
Minas Gerais Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Pará Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída
Paraíba Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída
Paraná Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída
Pernambuco Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Piauí Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Rio de Janeiro Ação concluída Ação não concluída Ação concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação concluída Ação não concluída
Rio Grande do Norte Ação concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída
Rio Grande do Sul Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Rondônia Ação concluída Ação concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída
Roraima Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Santa Catarina Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
São Paulo Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída
Sergipe Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída
Tocantins Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação concluída Ação não concluída Ação não concluída Ação não concluída

Fonte: Movimento pela Base

Questão de tempo

“Esse ano eu ainda não estava muito ligada a essa questão. Até que a gente recebeu a grade de aulas e viu que tinha menos aulas de Filosofia e Sociologia”, lembra Mariana Lima (17), aluna da 3ª série do Ensino Médio na rede estadual em Curitiba. “Ao invés de duas aulas por semana para cada matéria, agora a gente só tem uma. E acrescentaram Artes e educação financeira”. Para a turma, os reflexos da mudança logo ficaram mais claros. “O meu professor de Sociologia, que estava com a gente desde o primeiro ano e sempre trabalhou na rede estadual, ficou muito abalado com essa redução. Ele acabou pedindo licença. E isso foi o que deu um baque na gente para correr atrás das informações do por que isso estava acontecendo”, conta.

Mariana e os colegas descobriram, então, que fazem parte dos primeiros passos da implementação do novo Ensino Médio. No Paraná, as mudanças na matriz curricular para essa etapa de ensino começaram a valer no início do ano letivo de 2021. No comunicado publicado em seu site, a Secretaria da Educação e do Esporte (Seed) afirma que a reorganização permite maior aprofundamento nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. Elas passam a ter quatro e três aulas semanais, respectivamente, em toda a rede. O novo currículo ainda não está em sua etapa final, mas traz uma prévia das próximas fases da implementação da BNCC e do novo Ensino Médio no estado. Em reportagem de janeiro deste ano, o Plural mostrou a repercussão da nova grade curricular na comunidade escolar. A mudança motivou atritos entre a Secretaria Estadual e o Conselho Estadual de Educação (CEE), provocando a exoneração da presidente do CEE.

A preocupação da turma da adolescente ecoa os protestos dos estudantes paranaenses em 2016. Professores da rede pública engrossam o coro, apreensivos com as implicações para a categoria, que vem sofrendo derrotas sucessivas no Paraná. Fabiano Stoiev, docente de História em Curitiba, teme que a mudança piore ainda mais as condições de trabalho dos profissionais, que agora terão que atender mais turmas para manter os salários que recebiam até o ano passado. “Ficou bem difícil, em especial para algumas disciplinas, como Artes, Filosofia e Sociologia, que foram bastante atingidas”, comenta. “Isso cria uma sobrecarga terrível. O tempo de interação com os estudantes é menor, mas o número de turmas que ele tem que atender dobrou”. Com isso, segundo Stoiev, dobra também a burocracia que envolve essas turmas, como preenchimento de livros de classe, projetos e preparação de aulas.

Muitos docentes calculam que a mudança os coloca diante de uma escolha insalubre: uma procissão por quatro ou cinco escolas para cumprir as horas-aula necessárias; ou ir atrás de formações rápidas que os habilitem a ensinar mais disciplinas. “O que vemos hoje é que muda a estratégia do professor em relação ao seu emprego. Para não ter que percorrer seis escolas para fechar sua carga horária, ele começa a optar por uma segunda licenciatura”, argumenta Stoiev. O professor se queixa que o panorama hoje é “bem diferente da perspectiva que estava desenhada antes, que emitia sinais de que o caminho deveria ser a especialização na disciplina. Fazer mestrado, doutorado e seguir dando aulas”. 

A formação continuada é citada como direito dos docentes na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional desde 1996. O compromisso com a qualificação é reiterado na meta número 16 do Plano Nacional de Educação, estabelecido em 2014, que determina que o Brasil deve ter pelo menos 50% dos seus professores de Ensino Básico formados em uma pós-graduação até 2024. As próprias diretrizes do Conselho Nacional de Educação estabelecem que a BNCC deve “contribuir para a articulação e coordenação nacional de políticas e de ações educacionais, especialmente, entre outras, quanto à formação inicial e continuada de professores, objetivando o desenvolvimento da oferta de Educação Básica de qualidade”. 

Para o diretor de Educação da Secretaria de Estado de Educação do Paraná, Roni Miranda, a mudança na rotina dos professores com a reorganização das grades não é motivo de alerta, uma vez que a carga horária geral das escolas será maior no novo currículo. “Não vai ter tantas aulas de sociologia, mas o professor vai ter aulas nos itinerários de aprofundamento em que cabe a formação dele. Então, não estamos com essa preocupação”, defende o gestor público, acrescentando que a mudança na rotina será melhor explicada assim que o Conselho Estadual de Educação homologar o novo currículo.

Primeiros momentos da ocupação no Colégio Estadual Tiradentes, Curitiba. Foto: Gabriel Dietrich
Os colégios ocupados recebiam pessoas e organizações interessadas em oferecer cursos e oficinas. Foto: Gabriel Dietrich
Em diversos momentos as ocupações registraram conflitos nos portões da escola. Foto: Gabriel Dietrich.
Os ocupantes tinham uma organização própria e regras estabelecidas de convivência dentro da escola. Foto: Gabriel Dietrich
Uma equipe de segurança foi destacada para cuidar de cada escola. Foto: Gabriel Dietrich
Em muitas ocupações, os estudantes descobriram materiais nunca usados, como equipamentos esportivos novos. Foto: Gabriel Dietrich

A BNCC não proíbe que os conteúdos sejam ofertados no formato tradicional de disciplinas nas redes que quiserem seguir esse modelo. O Mato Grosso do Sul, por exemplo, organizou o planejamento por áreas do conhecimento, mas decidiu não suprimir os componentes curriculares, conforme explica Helio Queiroz. Ainda assim, o superintendente entende que a mudança provoca o professor a se reinventar. “Para além disso, mexe com o objeto do concurso. Você fez um concurso para determinado componente, mas agora a lei fala que você vai lecionar por área. Então, eu tiro você da zona de conforto”, reconhece.

Toda a estruturação da Base se ampara na ideia de superação das disciplinas como modo de ordenação do ensino. “O modelo disciplinar está fadado ao fracasso”, decreta o especialista em tecnologias educacionais e conselheiro do Movimento pela Base Nacional Comum Curricular, Miguel Thompson. Ele ressalta que o modelo foi importante no passado, mas que não se justifica mais diante da nova organização do mercado de trabalho e da sociedade. “No mundo contemporâneo, ele não funciona mais. Ninguém mais resolve o problema com um especialista. O trabalho é coletivo e, muitas vezes, o especialista vai trabalhando em outros campos que ele nem conhecia”.

A professora de Sociologia Edimara Oliveira, do Coletivo Humanidades, acredita que a mudança curricular orientada à redução de disciplinas tira o espaço plural de construção de conhecimento da escola. “Como vou ter vínculo com meu aluno, como vou avaliá-lo?”, questiona. “A redução da carga horária comum afeta o próprio tempo de ensino aprendizagem.”

Quanto à resistência dos professores ao modelo, Miguel Thompson entende como sendo uma reação natural, diante das precariedades da estrutura de apoio a esses profissionais. “O professor não quer mudar, ele está cansado, cheio de problemas e tudo o que ele quer é terminar o dia entregando o conteúdo que ele quer entregar. Não vejo problema, mas isso não funciona. Cedo ou tarde ele vai perceber que está gastando tempo sem que haja retorno”. 

“A versão mais barata”

Segundo levantamento do Movimento pela Base, o Paraná está entre os estados em que o processo para implementar a nova legislação ainda está engatinhando. Contudo, para Fabiano e muitos colegas de docência, a perspectiva não é positiva. “Teremos a implantação do Novo Ensino Médio na sua forma mais barata possível. E isso pode significar uma queda na qualidade da educação pública”, avalia o professor.

As circunstâncias também não inspiram muito otimismo. O prazo final para pôr em prática o novo Ensino Médio se aproxima e encontra os estados e municípios pedindo socorro. Muitos dos governos estaduais já vinham enfrentando severas crises orçamentárias nos últimos anos, situação sobre a qual agora pesam a crise econômica e os custos necessários para tentar conter a pandemia. 

Com o país ainda longe de se recuperar, a expectativa unânime é de arrocho. No caso paranaense, por exemplo, a Lei Orçamentária para 2021 estima uma queda de R$ 1,7 bilhão na arrecadação de impostos, em relação à receita de 2020. O orçamento também prevê redução de cerca de 14% nas transferências do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) pelo Governo Federal este ano. Há ainda a pressão política para que  a União se mantenha dentro dos limites da Emenda Constitucional 95/2019, que, ao limitar os gastos públicos à inflação, encurta o cobertor para os investimentos sociais. Segundo cálculos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em um único ano (2019), a Educação deixou de receber R$ 32,6 bilhões em investimentos devido ao chamado “teto de gastos”.

De acordo com dados da Campanha, baseados na metodologia Custo Aluno-Qualidade, o investimento público necessário para que escolas, alunos e professores da educação básica tenham as condições que possibilitem um padrão de qualidade semelhante ao de países desenvolvidos seria de aproximadamente R$ 50 bilhões. O valor representa cerca de 0,67% do PIB do país em 2020. O monitoramento anual feito pelo Todos Pela Educação, aponta que o orçamento executado para a educação básica no ano passado foi o mais baixo da década, com R$ 42,8 bilhões (menos de 0,58% do PIB).

São Paulo, o estado mais rico do país, é também o mais avançado na implementação do Novo Ensino Médio – todas as escolas paulistas já tinham carga horária mínima de 3.000 horas, como exigido pela BNCC. Ainda assim, o Governo do Estado já admite a necessidade de contratar novos professores para atender aos itinerários.

Estimativa baseada no Custo Aluno-Qualidade (CAQ) 2020 indica que seria necessário um investimento de pelo menos 36,8 bilhões de reais anuais no Ensino Médio, para que o Brasil se aproximasse das condições de ensino oferecidas em países desenvolvidos. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação, responsável pela criação do CAQ, destaca que o aumento da carga horária previsto na reforma do Ensino Médio exigiria investimentos ainda mais altos. As metas de expansão do ensino técnico integrado estabelecidas no Plano Nacional da Educação também sinalizam maior necessidade de recursos.

Algo que parece evidente para os especialistas é que o investimento público na educação básica – uma das prioridades elencadas pelo presidente Jair Bolsonaro durante a campanha de 2018 – precisa ser maior. “Posso garantir que, mesmo para implementar uma BNCC ruim, é preciso mais recursos. E esse recurso não está disponível”, são as palavras de Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Para Anna Penido, o caminho é o oposto. Ela defende que a implementação da nova Base ajuda a pressionar por mais investimentos na infraestrutura escolar. “Se fôssemos esperar o Brasil ficar pronto para uma base como essa, nunca teríamos uma base para impulsionar as mudanças que precisam acontecer”, comenta. “A gente conseguiu criar o mais importante, inicialmente, que foi uma abertura política e uma disponibilidade da sociedade civil para participar dessa construção”.

Apesar da pergunta inevitável – “o Brasil está pronto?” –, para Penido interessa mais questionar se a educação é mesmo uma prioridade. “Recurso, em grande medida, significa priorização. Claro que a gente precisa de mais recursos para fazer as coisas. Mas quando a sociedade civil demanda algo com muita convicção e quando as redes se organizam para encontrar soluções, quando o poder público de fato se compromete com algo, é impressionante como o dinheiro aparece”.

Questionado pela reportagem do Plural sobre os investimentos necessários para a implementação do Novo Ensino Médio, o MEC respondeu apenas que “investiu fortemente na realização de pilotos e no fomento às escolas de Ensino Médio em tempo integral”. Segundo o Ministério, esses investimentos já somam mais de R$ 2 bilhões, embora sem especificar se o valor será suficiente para cobrir os custos ou quais fontes de financiamento serão utilizadas para apoiar estados e municípios a se adequarem à nova legislação.

Distantes e desiguais

Em 2016, muitos secundaristas paranaenses questionavam o poder público a respeito dos impactos do ensino em tempo integral sobre os alunos que precisam se revezar entre os estudos e o trabalho. O debate sobre as desigualdades no acesso à educação voltou a emergir entre os jovens com o início da implementação da BNCC. Para Taís Carvalho, estudante da 3ª série do Ensino Médio, em Curitiba, e presidente da União Paranaense dos Estudantes Secundaristas (Upes), as maiores incertezas são a manutenção do ensino noturno e a perspectiva de que o ensino a distância se torne uma rotina para além da pandemia. “Analisando o que está sendo agora, a gente já não tira uma boa qualidade das aulas online”, comenta.

A aluna do Colégio Estadual Visconde de Guarapuava, Marcella Crema (16), também expressa dúvidas. “Como um projeto de escola integral vai ser aplicado sendo que a maioria dos jovens que estudam à noite são trabalhadores?”. Por outro lado, Deschamps lembra que atividades relacionadas à aprendizagem profissional poderão ser validadas na carga horária das escolas de ensino profissionalizante, conforme indica o Artigo 4º da nova Lei.

O Brasil tem hoje 1,3 milhão de alunos no ensino noturno. No Paraná, ainda não está claro o que vai acontecer com esses estudantes. O diretor de Educação da Seed, Roni Miranda diz que a Secretaria tem considerado duas possibilidades para o Ensino Médio noturno após o aumento da carga horária exigida pela BNCC: o cumprimento dessas aulas excedentes durante alguns sábados ao longo do ano; ou o formato híbrido, com 20% das aulas sendo ministradas online. “Não tem uma decisão tomada ainda”, afirma. Apesar da indefinição, o diretor garante que a modalidade continuará sendo oferecida, ainda que o governo estimule a opção pelo ensino diurno. “O Paraná vem trabalhando na perspectiva de que o Ensino Médio noturno é prejudicial para os estudantes, mas não podemos deixar de ofertar, porque há situações em que o estudante complementa a renda familiar, então precisa trabalhar”, explica.

Taxas de Rendimento para o Ensino Médio

Ao menos 10% dos estudantes de Ensino Médio reprovam nesta etapa de ensino ou ao final do ano letivo em todo o Brasil.

Fonte: Inep, 2019.

Em todo o Brasil, a experiência da pandemia obrigou as redes de ensino a buscarem rapidamente uma migração para o ensino a distância. Ao mesmo tempo, também explicitou as limitações desse formato e a desigualdade no acesso em um país onde 16,5 milhões de crianças e adolescentes de 9 a 17 anos ainda vivem em domicílios com conexão lenta ou sem qualquer acesso à internet. Em março de 2021, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou integralmente o  Projeto de Lei 3477/20, também chamado de PL da Conectividade, que destinaria R$ 3,5 bilhões para que estados e municípios ampliassem o acesso de alunos e professores à Internet. A justificativa? O investimento dificultaria o cumprimento da meta fiscal. 

Antes mesmo de a Covid-19 virar de cabeça para baixo a rotina das escolas, o Conselho Nacional de Educação já autorizava, em resolução de 2018, que 20% do currículo do Ensino Médio fosse realizado a distância – para o noturno esse limite sobe para 30%. Essa perspectiva causa preocupações na comunidade escolar. No Paraná, os professores já tomam como certa uma tendência de privatização gradual do ensino.

Para a professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Monica Ribeiro, que coordena o Observatório Nacional do Ensino Médio, essa característica da reforma abre um precedente grave: “Inaugura uma forma de oferta no Brasil que nunca tivemos, que é a oferta da escola pública com a parceria público-privada. E não só no itinerário técnico, mas também para parte do Ensino Médio que pode ser realizada a distância”, analisa. “É dinheiro público sendo canalizado para o setor privado”.

A Seed afirma que não há planos de ceder o ensino básico a grupos privados. “Existe intenção de buscar parceria na iniciativa privada apenas para o ensino técnico, para oferecer mais vagas”, ressalta a Secretaria.

Autônomos

Se, por um lado, a origem da oferta do ensino técnico é controversa, a carência do ensino profissionalizante é evidente. Segundo o IBGE, em 2018, dos alunos que concluíram o Ensino Médio na rede pública, apenas 36% ingressaram no Ensino Superior – entre as escolas particulares esse índice é de quase 80%. Em um país com altas taxas de desemprego como o Brasil, muitos especialistas defendem que a falta de um ensino profissionalizante contribui para o avanço da desigualdade. 

O presidente do Conselho Nacional de Educação, Eduardo Deschamps, destaca que o novo currículo traz um foco especial na formação profissional, além de preparar os alunos para o ingresso na universidade. “É algo que não acontecia no modelo anterior”, afirma. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) considera o ensino profissionalizante um dos principais indicadores educacionais para um país. No levantamento da organização, a parcela de alunos brasileiros nas etapas finais da educação básica que recebem ensino técnico ou profissionalizante é de apenas 11%, contra uma média de 42% entre os países membros da OCDE.

A Base Curricular torna obrigatório também o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, um módulo que foi chamado de “Projeto de Vida”. Nessa disciplina, os alunos aprendem a estabelecer objetivos profissionais e acadêmicos, além de métodos para planejar a carreira, como explica Gabriele Campelo, aluna de uma das escolas-piloto do novo currículo em Rio Branco, no Acre. Depois de um breve estranhamento – “logo pensamos: ‘pra que estudar projeto de vida?’” – a estudante, que se prepara para prestar vestibular para Medicina, destaca que as aulas têm ajudado muito. “A professora de Sociologia é a mesma que aplica Projeto de Vida, então tem uma dinâmica entre as duas matérias. A adaptação foi muito fácil”, confirma.

A autonomia e poder de escolha dos alunos esteve no centro da campanha a favor da BNCC. As instituições que pressionaram pela aprovação citavam os altos índices de evasão escolar. O IBGE registrou que os principais motivos para o abandono são a necessidade de trabalhar (39,1%) e o desinteresse pelos estudos (29,2%). Esse dado indica que o principal obstáculo para a formação dos jovens brasileiros ainda está relacionado à desigualdade na distribuição de renda e à pobreza, embora também deixe explícito que, para uma parcela significativa dos estudantes, a escola não é um ambiente estimulante.

Para Miguel Thompson, diretor da Fundação Santillana e conselheiro do Movimento pela Base, o que falta para que as escolas se tornem mais atrativas é dinamismo, diálogo e proposição de desafios. “A gente tem pouca conversa. São cinco horas de aula, com pelo menos quatro horas sentados, ouvindo palestras, aulas expositivas”, argumenta. “Eles [os estudantes] sentem falta de projetos, algo que eles escolhem e que pode ser feito coletivamente”.

Essa proposição de desafios e projetos já tem sido aplicada em algumas das escolas-piloto, como a Escola Senador Adalberto Sena, no Acre, onde Gabriele cursa o Ensino Médio. A estudante tem muitos elogios às disciplinas eletivas que sua escola passou a oferecer. “Eu escolhi uma de matemática, que eu achava que ia ser meio chatinha, porque não sou muito fã de matemática. Mas a proposta era muito boa e eu escolhi”, lembra. Empolgada, ela conta sobre uma das experiências que teve no primeiro ano: “A gente criou duas empresas dentro dessa eletiva, com produtos a partir de materiais reutilizáveis. Passamos quase o ano todo trabalhando nisso e fizemos até um evento na escola. Foi muito show”.  Essas disciplinas fazem parte do currículo flexível da BNCC, a parte na qual as disciplinas variam conforme a escola e são definidas pela rede de ensino.

A realidade das escolas-piloto, no entanto, dificilmente será a realidade de todas as escolas que vão implementar a nova Base Curricular. Monica Ribeiro, da UFPR, alerta para a possibilidade de uma “fragmentação” do Ensino Médio pelo Brasil. “Ensino Médio ainda é educação básica, é a última etapa da educação básica, então deveria ser comum a todos. Todo mundo deveria ter direito aos conhecimentos das mais diferentes áreas, da Ciência, mas também da Arte”, comenta.

Seguindo a premissa de ampliar a autonomia do estudante sobre sua formação, o novo Ensino Médio prevê até cinco opções diferentes de atividades formativas, cada uma contemplando uma área do conhecimento. Obrigatoriamente, cada escola deve oferecer ao menos duas opções. Para fazer a BNCC caber nos orçamentos já apertados, quase todas as redes de ensino devem contar com um número entre duas e três alternativas de itinerários formativos. 

Especialistas ressaltam que a ideia pode acabar ampliando as desigualdades no acesso à educação. Para muitos jovens, pode não haver possibilidade real de escolha. Segundo a Lei, caso o aluno deseje cursar um itinerário que sua escola não oferece, a rede deve obrigatoriamente cuidar para que ele consiga cursá-lo em outra escola. Para isso, distância e infraestrutura são grandes desafios. Dados do Censo Escolar de 2019 indicam que 52% dos municípios brasileiros contam com apenas uma escola pública de Ensino Médio, o que significa que alunos terão que se deslocar até cidades vizinhas caso queiram cursar outras opções de itinerários. 

Municípios com apenas uma escola pública de Ensino Médio

Em ao menos 11 estados metade dos municípios possuem apenas uma escola pública de Ensino Médio na rede.

Fonte: Censo Escolar, 2019.

Fazer chegar a todos

No estado mais avançado na implementação do Novo Ensino Médio, transporte e infraestrutura já se apresentam como desafios. Os itinerários formativos também estão exigindo da Secretaria de Educação de São Paulo novas soluções. Por lá, as escolas menores, com apenas uma turma de Ensino Médio, por exemplo, terão que ofertar dois itinerários que contemplem duas áreas do conhecimento diferentes. Dessa forma, a escola pode oferecer num único itinerário, conteúdos integrados de Linguagens e Ciências Humanas e um outro itinerário que reúna Matemática e Ciências da Natureza. “Com isso, a gente reduz o número de alunos que vão ter que se deslocar para fazer um itinerário do interesse deles”, comenta a coordenadora do Currículo Paulista, Maria Adriana Pagan. Contudo, ela explica que a Secretaria está fazendo um levantamento das escolas que precisarão executar esse formato, para mapear proximidade, tempo de deslocamento entre as unidades e o custo de transporte.

Para Adriana, fazer chegar o Novo Ensino Médio às escolas com necessidades específicas (escolas em comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas ou escolas rurais) é um desafio à parte. Para essas escolas, os itinerários que serão ofertados ainda estão em discussão e devem começar a ser implementados em 2022. “Estamos fazendo escutas com os líderes locais para que a parte flexível do currículo seja adequada à realidade de cada comunidade”, explica. “As comunidades quilombolas, por exemplo, gostaram bastante da ideia da formação técnica e profissional, uma vez que o número de estudantes que parte para o ensino superior é menor”.

Pedagoga em uma escola indígena da rede estadual do Paraná, Delmira Peres, teme que possa haver prejuízos na aplicação do novo formato nesses colégios. “A cultura é tudo para nós. Nossa preocupação é que se mantenha o ensino da língua original, do artesanato, dos festivais culturais”, afirma Peres, relembrando a experiência que teve com educação em Ensino Médio Indígena.

No Acre, a coordenadora de ensino da escola-piloto Senador Adalberto Sena (SAS), Letícia Lopes, reconhece que outras escolas da rede podem não ter a mesma experiência de sucesso com os itinerários formativos. O desafio – mais uma vez – é o transporte. Ela acredita que a tendência é que uma minoria dos estudantes escolham se deslocar semanalmente para outra escola em busca de uma opção de itinerário. “Só temos 10 escolas-piloto. Especulando, a gente acha que o aluno vai escolher a própria escola. Apenas aqueles que já sabem bem o que querem [perseguir como carreira] devem mudar”, prevê. No SAS, as disciplinas eletivas se concentram nos dois primeiros anos do Ensino Médio e os itinerários formativos serão trabalhados na 3ª série da etapa.

A aluna Mariana Lima identifica que o deslocamento é um desafio desde já. Na escola onde estuda, no município de Campo Largo, Região Metropolitana de Curitiba, por exemplo, não há transporte noturno. Um problema claro para estudantes como ela, que mora a 10 quilômetros da unidade.

No Paraná, a escolha é não seriar os itinerários, para dar mais espaço de manobra para as escolas. A ideia é reforçada como positiva por Eduardo Deschamps. “Alguns estados já fizeram testes e simulações com escolas pequenas e conseguiram entregar mais itinerários. Um dos pressupostos era que o itinerário não precisaria ter uma turma seriada. É uma questão logística que permite atender a um número maior de alunos”, explica. Nesse modelo, alunos de diversas séries poderiam dividir uma mesma sala de aula em um itinerário formativo. 

“Nossa única bandeira é a educação”, alertou Ana Júlia Ribeiro em uma fala na Alep durante período de ocupações secundaristas contra a reforma em 2016. Foto: Heloisa Nichele.
Oruê Brasileiro lembra que diversos grupos tentaram forçar os estudantes a desocupar os colégios. Eram chamados de “baderneiros” e “invasores”. Foto: Heloisa Nichele.

Nenhuma escola é uma ilha

O Brasil imprime na educação todos os seus contrastes mais feios. Em sua “Agenda da Produtividade”, o Banco Mundial destaca o papel do Ensino Médio na perpetuação das desigualdades no país: “alunos das escolas públicas têm dificuldade em progredir para o ensino superior, pois concorrem por vagas em universidades públicas gratuitas com alunos mais bem preparados egressos de escolas particulares”, diz o diagnóstico da instituição.

Segundo a OCDE, em 2019 o Brasil investiu 4,1 mil dólares anuais por aluno do Ensino Médio, equivalente à época a cerca de R$ 17 mil. A média dos países membros da OCDE é de 10 mil dólares anuais, quase duas vezes e meia o investimento no Brasil. Enquanto isso, não é incomum encontrar em cidades brasileiras escolas particulares de elite onde as mensalidades ultrapassam R$ 3 mil. 

As disparidades, no entanto, não se limitam à oposição entre público versus privado. Há abismos mesmo entre as escolas públicas do país. As Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, referência em educação pública em São Paulo, investem cerca de R$ 7 mil por estudante mensalmente, conforme levantamento da jornalista Carolina de Oliveira no livro “De Pinheiros a Itaquera: as políticas para o Ensino Médio Público a partir de São Paulo”. Essa desigualdade às vezes é também geográfica: ao visitar uma escola em Roraima, as chances de que você não encontre água potável por lá são de quase 2 em cada 5; no Distrito Federal essa chance é nula. Mas o que separa as escolas brasileiras é muito mais que a distância. “Eu trabalho em uma escola federal que tem toda estrutura, só que do outro lado da rua tem uma escola do estado que não chega a 1% da estrutura que a gente tem para trabalhar”, conta o professor David Chaves, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Infraestrutura Escolar

Um dos pontos sensíveis da implementação da reforma é a infraestrutura das escolas. Muitas não estão preparadas para receber as mudanças previstas na rotina. Em 12 estados, uma a cada três escolas não possui laboratório de informática.

Fonte: Censo Escolar, 2019.

As ilhas de excelência são um fenômeno bastante comum na educação brasileira. Essas instituições de ensino têm prédios bem equipados e oferecem disciplinas complementares, ainda que façam parte de uma enorme rede de escolas que não reúnem as condições básicas para garantir o direito à educação. A disputa por vagas nessas “ilhas” é grande, o que torna mais visível a desigualdade e faz com que muitas delas criem processos de seleção, chamados de “vestibulinhos”. Apelando para a meritocracia, essas instituições criam mais um obstáculo para jovens de classe baixa. “Existe uma pessoa mais pobre que mora em um bairro com água, com luz, com esgoto, que o pai e a mãe trabalham, mas também existe o pobre que mora numa favela sem a menor condição, que estuda de dia e de noite está no trem vendendo bala. Esses dois vão competir pela vaga nessa super escola”, comenta o pesquisador da UFRJ.

David Chaves explica que parte das ideias que hoje permeiam o Novo Ensino Médio foram testadas primeiro em escolas-modelo cariocas. “Uma série de questões fizeram com que o Rio de Janeiro saísse de uma das últimas colocações para o 5º lugar no Ideb de 2014”, entre eles, o pesquisador cita o investimento maciço em escolas-piloto, com participação da iniciativa privada e de Organizações da Sociedade Civil. “A escola de referência recebe investimento tanto público quanto privado, só que o investidor privado escolhe em qual escola vai investir: a que vai dar mais visibilidade, a que vai dar mais retorno. Essas escolas concentram cada vez mais o investimento e dentro da mesma cidade acaba se criando um abismo educacional gigantesco”, explica. 

Há seis anos consecutivos o Centro de Ensino Médio Integrado (Cemi) tem as melhores notas no Enem em sua região, ocupando também o topo do ranking do Ideb no Distrito Federal. “Aqui antigamente tinha prova de seleção, mas na pandemia a seleção foi por sorteio”, conta o diretor da escola, Lafaiete Formiga.  No Cemi, onde o carro-chefe é a iniciação científica, o Novo Ensino Médio não é um obstáculo.

“Nas ocupações, discutíamos a MP e recebíamos oficinas. Éramos bem organizados”, conta Gabriel Soares, que participou da ocupação no Colégio Estadual Humberto Castelo Branco, em 2016. Foto: Heloisa Nichele.
“Decidimos ocupar a escola para sermos ouvidos. Essa era a nossa luta”, conta Nicolas dos Santos, um dos primeiros ocupantes do Brasil. Participou da ocupação no Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen. Foto: Heloisa Nichele.

Avaliação

É revelador o fato de que escolas isoladas inspirem uma corrida de pais por uma vaga, em meio a um mar de unidades de ensino que amargam condições insalubres. Enfrentar as desigualdades no Brasil significa repensar como o país mensura seus resultados. As avaliações padronizadas de desempenho têm um grande peso no desenvolvimento de políticas públicas para a educação no Brasil. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), método criado pelo Governo Federal, foi inclusive um dos estopins para a maior mobilização em torno da reforma do Ensino Médio, após um resultado aquém do esperado em 2013. Outra avaliação frequentemente citada durante a formulação de políticas é o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), coordenado pela OCDE, que de três em três anos avalia o desempenho dos estudantes na faixa dos 15 anos de idade em Leitura, Matemática e Ciências. Os resultados são comparados entre dezenas de países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) para o Ensino Médio

O Saeb é outra avaliação nacional que diagnostica o nível de conhecimento de estudantes brasileiros. As categorias são distribuídas em níveis de proficiência em Português e Matemática

Fonte: Inep, 2019.

“Os países que participam do Pisa, de uma forma ou de outra, seguem as determinações da OCDE. O Brasil não é obrigado a nada disso, mas pretende melhorar seu ranqueamento. E uma das formas para isso foi importar da OCDE alguns estudos que apontavam como melhorar o desempenho”, conta David. A avaliação comparativa internacional é citada logo nas primeiras páginas da fundamentação pedagógica da Base Nacional Comum Curricular. No trecho, a Base destaca a adoção do conceito de “competências”. O texto define o termo como a “mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”. Desenvolver essas competências é o principal norteador do novo currículo. “Aquilo que um aluno precisa estudar para ser um cidadão está dentro da base, nas 1.800 horas”, define Deschamps.

Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Unesco no Brasil, acredita que a incorporação de competências é importante para adequar o currículo brasileiro à nova configuração da sociedade e do mercado de trabalho. Ela defende que as habilidades necessárias para um jovem em um mundo digitalizado estão profundamente relacionadas à comunicação, por exemplo. “[Com o avanço da tecnologia] as tarefas que vão sobrar para os humanos são as que têm uma interação, uma construção da informação”, comenta.

Professora da UFPR, Monica Ribeiro discorda. Acredita que a centralização do que será ensinado aos estudantes em torno de competências retoma um discurso antigo de desenvolvimento. “Falar em competências ao invés de falar em conhecimentos é parte de uma série de elementos que, em termos curriculares, são um prejuízo”, analisa a pesquisadora. O pesquisador da UFABC, Fernando Cássio vai além: “Essa lógica de exaltar a força do indivíduo, a competência, a habilidade, as profissões do futuro, a liberdade de escolha… Você pode montar uma lista de clichês que são usados, na verdade, pra incutir essa lógica neoliberal, que é uma forma de entender o mundo”, critica. Ribeiro destaca ainda que a BNCC “tem uma conotação muito pragmática, do ‘saber fazer’. Ela é extremamente vinculada às avaliações em grande escala e com isso fragiliza o projeto pedagógico”.

Apesar das muitas divergências que as avaliações padronizadas de grande escala suscitam, nenhum dos especialistas defende sua extinção. A conselheira do Movimento pela Base Anna Penido acredita que o Ideb, principal indicador nacional das políticas educacionais, foi “o melhor modelo possível” nos anos 2000, quando foi criado, e precisa ser valorizado. “É muito importante sempre ter um olhar mais amplo. Em muitos países você não tem nem meta, métrica ou sistemas de avaliação e nem sabe em que pé está a aprendizagem dos alunos”, defende. Segundo ela, o modelo é mantido, apesar de não ser o ideal, porque ainda não houve a mobilização necessária e propostas aplicáveis. “O que a gente precisa mudar é a concepção do ‘para que serve a avaliação’ e aí tentar de fato construir um sistema de avaliação que atenda a esse propósito, que é garantir o direito à aprendizagem.”

Daniel Cara, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, ressalta as limitações do Ideb como avaliação nacional da educação básica. “O [ex-ministro da Educação do Governo Dilma Rousseff] Fernando Haddad se equivocou demais quando tentou dizer que fluxo e desempenho é igual a qualidade. Não é qualidade para os filhos da elite. Para eles, qualidade é emancipação plena, desenvolvimento pleno. O Ideb não deve ser a única fonte de referência.” Ele advoga pelo Custo Aluno-Qualidade como sistema alternativo de avaliação nacional.Desenvolvido pela Campanha, o indicador é orientado pelo investimento necessário para que escolas e professores tenham a estrutura necessária para garantir educação de qualidade. O CAQ foi incluído na redação do Novo Fundeb em 2020, mas ainda precisa de regulamentação própria.

O especialista em tecnologias educacionais Miguel Thompson também concorda que as avaliações aplicadas hoje estão longe do ideal. Segundo ele, essas avaliações, apesar de importantes para o diagnóstico geral do sistema de ensino, “complicam demais e atrapalham, porque nem o professor sabe o que vai avaliar”. Thompson define que a melhor forma de avaliação deveria ocorrer com base em projetos executados dentro da escola, com participação mais ativa da comunidade escolar.

O Movimento pela Base reúne organizações privadas e não governamentais para monitorar a a implementação da BNCC.

Indefinição

Depois do longo processo que levou à implementação da BNCC e do Novo Ensino Médio, escolas, professores e alunos encontram um novo obstáculo: a inércia do Ministério da Educação em relação ao projeto de reformar também o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Sendo a principal porta de entrada para as melhores universidades do país, o exame ainda está baseado no modelo de Ensino Médio pré-reforma. Com a diluição das disciplinas em competências, alunos temem ser avaliados por conteúdos diferentes dos que estudaram. Professores estão em dúvida de qual conteúdo devem passar em sala de aula, em especial para as turmas do último ano do Ensino Médio, que dependem do bom desempenho na prova para ingressarem no Ensino Superior.

Responsável pelo currículo da rede pública no único estado onde o novo Ensino Médio de fato já começou para a maioria dos estudantes, a coordenadora da Secretaria de Educação de São Paulo, Maria Adriana Pagan, resume a expectativa nas redes de ensino com o atraso na adaptação do Enem à reforma: “Estamos apreensivos e os alunos mais ainda”, conta. Apesar de sinais pouco claros do Ministério, ela afirma que o estado de São Paulo tem conversado com o Inep para que o Enem se adeque ao novo currículo. “Como estamos seguindo à risca as determinações da reforma, esperamos que não haja problemas com o exame. Mas enquanto eles não se pronunciam, ficamos aflitos”, conclui.

Anna Penido, que, em governos anteriores, esteve bastante presente nas discussões sobre as políticas educacionais do país, afirma que o espaço para o diálogo na esfera federal diminuiu. Ela acredita que o momento vai exigir mais atenção, proposições e pressão da sociedade civil “O tempo de transformação social quando o Governo Federal se exime ou obstrui é muito mais lento, porque é uma força imensa de recursos e possibilidades de catalisação que a gente desperdiça”, lamenta. “O que posso dizer é que eu não confio no Governo Federal nesse momento, tudo que depende de uma ação mais protagonista desse governo, eu acho muito difícil”.

A reportagem do Plural questionou o MEC sobre os prazos de adaptação do Enem à nova base curricular. Por meio da assessoria de Comunicação, o Ministério respondeu apenas que “as avaliações externas estão sendo revistas para serem adaptadas ao Novo Ensino Médio e seu novo currículo”. As respostas oficiais ainda não resolvem problemas da Base: se o aluno troca de itinerário formativo ao longo da formação, por exemplo, como ele será avaliado? “O Enem ainda é uma incógnita”, lembra Helio Queiroz, presidente do Conselho Estadual de Educação do Mato Grosso do Sul. “A gente, infelizmente, amarra os nossos estudantes a uma prova e não ao que ele aprendeu ao longo dos três anos. Essa é uma variável que não depende dos estados e a gente precisa realmente que quem esteja à frente nos dê segurança para trabalhar”. 

Grau de instrução da população

Quase 60% da população adulta não completou o Ensino Médio no Brasil

Fonte: PNAD Contínua. IBGE, 2020.

Onde mirar?

O debate educacional no Brasil bem poderia ser confundido com uma aula de Geografia. Áustria, Finlândia, Alemanha e Estados Unidos são frequentemente citados como exemplos para o Brasil. Inclusive, o próprio sistema da Base Comum tem comparativos óbvios com o “Common Core” norte-americano. 

Também motivada pelo desempenho no Pisa, o modelo obteve amplo apoio entre democratas e republicanos, os dois principais partidos dos Estados Unidos. Mas disputas políticas, erros na implementação e resistência de familiares provocaram 20 dos 50 estados americanos a reverem sua participação no programa 10 anos depois da implementação. A acusação mais comum é a de que o processo não foi democrático. 

“Se você perguntar ao aluno ‘o que não está funcionando na sua escola?’ e ele tiver tranquilidade para responder, vai dizer que não está aprendendo, que o professor fica falando, ele fica olhando para o quadro e não consegue acompanhar”, explica Anna Penido. “Não é nada de extraordinário, que a gente já não saiba. A gente só precisa honrar o que já sabe”, reforça.

Com 38,3 milhões de crianças e adolescentes, o Brasil tem uma chance de ser referência na qualidade de ensino público. Para além de pagar as contas, o país precisa eliminar o primeiro problema estrutural que enfrenta: a permanência escolar. Isso exige, porém, que barreiras de desigualdade de renda e acesso à educação sejam derrubadas. Um relatório da OCDE mostra que, em 2015, o Brasil era um dos países com a maior taxa de adultos que não completaram a educação básica e só perdia para a Costa Rica no quesito desigualdade de renda. Esse passo é fundamental para que se possa focar na aplicação de novos modelos de ensino, sem ampliar as desigualdades já existentes.

Para o pesquisador e professor de Políticas Educacionais na Universidade Federal do ABC, Fernando Cássio, a educação não é uma tecnologia em que se possa estabelecer relações de causa e efeito. “A visão ‘currículo, avaliação e formação’ [tríade que norteia o novo Ensino Médio] tenta controlar o que não pode ser controlado”, diz. De acordo com o pesquisador, uma outra tríade seria mais justa: a valorização da docência, as condições materiais das escolas e as condições sociais das famílias. “Essa tríade também produz resultados positivos em avaliações internacionais. A gente só não sabe, porque nunca implementou”, conclui.

Entregar uma “escola ideal” passa por um processo delicado que exige resolver a distância normativa entre uma Lei Federal e o detalhamento exigido para a implementação no sistema. Do ponto de vista da sala de aula, “avaliar habilidades socioemocionais é mais complicado”, destaca Edileuza Costa, professora do Cemi. “Estamos absorvendo essas nomenclaturas, para saber como calibrar isso e não cometer injustiças”.

A ex-presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação Cleuza Repulho destaca que a base é passível de mudanças. “Ela é a Base dos Sonhos? Não. Mas é um ponto de partida importante”, afirma. Em nota, o MEC destaca que a revisão para a etapa secundarista da BNCC deve ocorrer conforme resolução do CNE: de 3 em 3 anos, a partir da data de implementação. 

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima