O levante feminista que abriu o Bar Palácio para mulheres “desacompanhadas”

Em 1984, o gerente do tradicional bar de Curitiba se recusou a atender quatro estudantes e o caso foi parar na delegacia

“Bar Palácio terá que enfrentar feministas”, anunciava a manchete do jornal O Estado do Paraná na edição de 4 de fevereiro de 1984. A reportagem da jornalista Adélia Lopes falava de uma marcha agendada para a semana seguinte, em repúdio à discriminação do proprietário, o espanhol José Lopes, conhecido como “Pepe”. Na época, a lei máxima do estabelecimento era não servir mulheres “desacompanhadas”.

Aos 80 e poucos anos, seu Pepe ainda é dono do bar, mas está debilitado e não concede mais entrevistas. A gerência da casa ficou com Laurindo Graciano, ou apenas “Graciano”, como é chamado pela clientela. Ele começou a trabalhar no estabelecimento exatos dez anos depois do episódio e herdou as histórias contadas pelo proprietário.

“Eu soube que essa regra foi uma maneira que eles encontraram de manter o ambiente familiar. Naquele tempo o Bar Palácio ficava ao lado do Centro de Convenções, numa rua com muitas garotas de programa. Elas entravam para conquistar os clientes”, fala Graciano.

Em 2006, a historiadora Mariana Corção escreveu um livro sobre o bar que corrobora a declaração do gerente. “O Palácio é um espaço tradicional que foi aberto na década de 1930, na rua do Palácio do Governo, para ser frequentado por políticos e homens da alta sociedade. Como o bar era noturno, eles evitavam que prostitutas utilizassem os serviços para manter o nível de sociabilidade elevado”.

“Entre as décadas de 1960 e 1970, com a revolução sexual, a regra começou a ficar deslocada”, acrescenta a pesquisadora. No entanto, a diretriz machista permaneceu inquestionada pela conservadora sociedade curitibana até a madrugada do dia 27 de janeiro de 1984, quando os funcionários se recusaram a atender quatro estudantes boas de briga: Sonia Cristina Bittencourt, Cláudia Sigmalt, Vera Lúcia Bittencourt e Isabel Cristina Oliveira. 

A farra acabou na delegacia

Em 1984, Babel – apelido de Isabel – era uma estudante universitária de vinte e poucos anos que gostava de se divertir com as amigas pelos bares, festas e casas noturnas da cidade. Mas naquele 27 de janeiro, a noitada foi um bocado diferente e terminou na delegacia.

“A gente saiu do London e foi ao Palácio pensando: eba, vamos comer, recuperar as forças e depois vamos pra casa, né? Geralmente era lá que rolava o fim da noite. Dava pra ir de longo ou de jeans, a gente encontrava gregos e troianos. Só que eu nunca havia percebido que sempre estava acompanhada dos namorados ou dos amigos”, resgata.

Ao chegar no estabelecimento, elas receberam o aviso indigesto. “O garçom nos disse que eles não serviam mulheres desacompanhadas. Quando ele começou a falar, nós achamos que era brincadeira, mas aí percebemos o bar todo olhando pra nós. A Sonia levantou pra dez e falou: ‘Como assim? Vamos pedir pra alguém sentar aqui’. Mas ele repetia que não podia, não podia e não podia: era a regra da casa”.

Após ouvirem as mesmas palavras da boca do gerente, elas saíram em busca da delegacia mais próxima. “A Sonia queria fazer o boletim na mesma madrugada. Andamos várias delegacias e não achamos nenhuma aberta – o que foi muito estranho, porque se fosse qualquer outra coisa mais grave, não tinha como fazer o boletim de ocorrência”.

As quatro combinaram de prestar queixa na manhã seguinte, tempo suficiente para o burburinho se estender pela cidade e atrair a mídia. No mesmo dia, a mãe de Babel soube do ocorrido pelo rádio e ficou chocada ao ouvir que a filha havia transgredido a moral curitibana. 

Quando os fotojornalistas chegaram na delegacia, Babel diz que virou para Claudia e disse: nós parecemos assassinas. Imagem: Gazeta do Povo/acervo da Biblioteca Pública do Paraná

“Toda luta tem muito sofrimento, não tem glamour. Tivemos que prestar depoimento com todo mundo apontando o dedo pra nós, perguntando por que as moças não estavam em casa. Lidamos com a família e também com a opinião pública”, diz a bibliotecária.

Direito garantido

No dia 29 de janeiro de 1984, o jornal O Estado do Paraná publicou o desfecho do caso. A nota intitulada “Mulher já pode ir sozinha ao Palácio” dizia que o gerente do bar foi intimado, depôs na delegacia e se comprometeu a não mais discriminar mulheres. “É contravenção penal. Ele não sabia”, informou a redação. 

O mesmo texto registrou que as moças voltaram ao espaço acompanhadas de mais oito mulheres, “formando uma caravana disposta a fazer valer a condição de cidadãs em dia com seus direitos políticos”, e finalmente foram aplaudidas e servidas.

Imagem: acervo da Biblioteca Pública do Paraná

“De fato, houve uma mudança. Depois desse episódio, eles começaram a servir mulheres desacompanhadas, principalmente nesse perfil de estudantes, intelectuais e filhas de clientes”, afirma Mariana Corção.

Quase 40 anos depois, Babel celebra o direito conquistado. “Todos ganharam: a cidade que deixou de ser um tantinho retrógrada e conservadora, as mulheres que foram ouvidas e o Bar Palácio que passou a atender as lindas senhoritas ‘desacompanhadas’, como eles chamavam. Cá entre nós: a gente nunca esteve desacompanhada”. 

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4 comentários em “O levante feminista que abriu o Bar Palácio para mulheres “desacompanhadas””

  1. Francisco Manoel de Assis França

    Parabéns Sonia Cristina Bittencourt, Cláudia Sigmalt, Vera Lúcia Bittencourt e Isabel Cristina Oliveira. 1984 foi um momento importante na história do Brasil que precisamos recuperar nestes tempos agora do GENOCIDA.
    Sobre o Kamikaze não sabia. Cheguei a comer lá e podia ter feito um protesto.
    Avante Mheres da Boa Luta.
    #ForaBolsonaro

  2. Tinha também aquele restaurante japones Kamikaze (em Santa Felicidade, na Manoel Ribas), onde o dono se orgulhava de dizer que não servia mulheres desacompanhadas. Isso já era fim dos anos 80 ou começo dos 90.

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