Mais da metade das investigações de mortes de civis por policiais são arquivadas no PR

Levantamento da Defensoria Pública analisou 260 casos; 38% das vítimas não respondiam a processos na Justiça

Na tarde do dia 10 de outubro de 2018, um sábado, o jovem Deyvid Luigi Fronza estava jogando bola com os amigos em um campo no bairro Pilarzinho, em Curitiba. Com sede, ele se dirigiu à casa de sua avó para pegar dinheiro e ir até um bar comprar refrigerante. No caminho de volta, ao atravessar um terreno vazio que pertencia a sua família, ele foi baleado por um policial militar e morreu. Deyvid tinha 18 anos e cursava o Ensino Médio. Não tinha antecedentes criminais.

De acordo com a versão da PM, os policiais estavam atendendo uma ocorrência de assalto, ocorrido na cidade de Almirante Tamandaré. Após os assaltantes saírem do local de carro, foram avistados abandonando o veículo e fugindo a pé, já no Pilarzinho. Deyvid foi confundido com um dos assaltantes e baleado por, supostamente, estar armado e reagir à abordagem da PM. A família do jovem nega envolvimento dele no assalto. Não foram encontradas armas próximas ao corpo de Deyvid e há suspeitas de que os policiais teriam forçado os assaltantes envolvidos no caso a dizer em depoimento que o jovem fazia parte do grupo.

A morte de Deyvid foi um dos casos analisados pelo Núcleo de Política Criminal e Execução Penal (NUPEP) da Defensoria Pública do Paraná (DPPR), que detalhou ações das polícias Civil e Militar envolvendo mortes de civis durante o ano de 2018. No período, foram registrados cerca de 330 casos em todo estado e o levantamento acompanhou 260 deles (pouco mais de 78%).

De acordo com o levantamento, 38% das vítimas sequer respondiam a ações penais na justiça, enquanto outras 15% respondiam a ação, mas ainda não estavam condenadas. “Fundamental ressaltar que se não está a sugerir que a existência de condenações ou antecedentes criminais, por si só, justificariam a ação letal da polícia. Considerando, porém, a narrativa corrente no sentido de naturalizar a grande quantidade de mortes por violência policial no Brasil, é bastante relevante o registro de que 53% dos indivíduos mortos não tinham condenação criminal”, descreve o documento.

Entre as investigações abertas para averiguar as ações, mais da metade (58%) já foram arquivadas; 101 investigações (39%)  ainda estão em andamento; existem  quatro casos em que sequer foi aberta investigação e, em apenas três dos 260 casos analisados (pouco mais de 1%), foi oferecida denúncia contra policiais. O arquivamento da investigação sem denúncia aos policiais envolvidos ocorre quando é constatada ação em legítima defesa.

Mesmo entre as investigações que seguem em aberto, a Defensoria apontou que boa parte delas tem avançado pouco: das 101 em andamento, 58 não registram movimentações em seus respectivos processos desde 2019. O caso de Deyvid é um desses: foi aberto um Inquérito Policial Militar para apurar o caso e, por se tratar de um crime comum, a Justiça Militar foi considerada incompetente para julgar. A Polícia Civil abriu investigação, com posterior remessa ao Ministério Público (MP-PR) no dia 26 de fevereiro de 2019. Desde então, não foram registradas movimentações no processo.

Quando a PM investiga a PM

Boa parte das investigações em casos do tipo são iniciadas por meio de um Inquérito Policial Militar (IPM). Ou seja, é a própria PM que apura os casos que envolvem mortes de civis em ações da corporação. O estudo da Defensoria apontou que, dos 260 casos analisados, em 184 (71%) a investigação partiu de um IPM. As outras opções de investigação são por meio de inquérito da Polícia Civil, ou Procedimento Investigatório Criminal (PIC) do Ministério Público.

Na teoria, investigações da PM servem para apurar questões ligadas a crimes exclusivamente militares, e que serão julgados pela Justiça Militar. De acordo com o coordenador estadual do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP-PR, Leonir Batisti, a definição das responsabilidades nas investigações para apuração de ações letais da PM ainda representa um grande impasse jurídico no Brasil. “São confusões legislativas que envolvem o entendimento de juízes tanto da auditoria militar como do juízo comum a respeito da validade dos procedimentos”, explica.

Nos casos de ações letais da PM é importante pontuar que existe a etapa anteprocessual, referente à investigação, e o estágio seguinte, que é perante qual instância da justiça vai correr o processo ou vai ser determinado o arquivamento. “Quando é um crime doloso (com intenção de matar), independente de ser cometido por policial ou não, a competência para julgar é sempre do Tribunal do Júri (justiça comum). A Vara Militar, ao receber o inquérito, se for constatado homicídio culposo (sem intenção de matar) pode julgar o mérito, agora, se houve dolo a competência deve ser declinada para a Justiça Comum”, pontua Battisti.

Em relação aos casos de 2018 estudados pela Defensoria, em ao menos 46 (16%), a própria Vara Militar se reconheceu competente para analisar o mérito do caso a partir do IPM e arquivou os autos pelo reconhecimento de ação em legítima defesa.

Contrassenso

Na visão do especialista em Direito Penal e Criminologia, pesquisador do Centro de Estudos de Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Vyctor Grotti, as investigações por meio de IPM representam um contrassenso. “No Paraná, a investigação da PM é, às vezes, tocada pelo próprio batalhão envolvido na ação letal. Quem vai investigar o caso é o oficial imediato do policial envolvido. Isso traz muitos problemas, especialmente quanto à  imparcialidade do inquérito. O ideal seria haver uma padronização nos procedimentos, de preferência com a Polícia Civil sendo acionada para a investigação logo após o ocorrido”, argumenta.

Para o pesquisador, independente do órgão que irá julgar, o problema está na investigação ter se baseado em procedimento da própria Polícia Militar. “Se houver declinação de competência para a justiça comum, por que a apuração se iniciou por IPM?”, questiona.  “Pode acontecer de um promotor do júri comum pegar um procedimento militar – sabendo que não é atribuição da PM investigar – e arquivar a denúncia, o que endossa toda a irregularidade processual anterior.”

No estudo da Defensoria, uma das soluções propostas é justamente a inversão desse fluxo. “Havendo morte de civil, a Polícia Civil e o Ministério Público encarregam-se da investigação preliminar e, caso a Justiça Comum conclua se tratar de crime culposo ou outro crime militar, ela é que remeterá os autos à Justiça Castrense [militar]”, diz o documento.

Resistência

Conforme mostrou o levantamento da Defensoria, pouco mais de 28% dos 260 casos analisados tiveram investigações iniciadas pela Polícia Civil ou pelo Ministério Público. Mesmo assim, para o promotor Leonir Batisti, existem algumas dificuldades para que essas investigações consigam elementos que contradigam o que os Policiais Militares narram.

“No Gaeco nós apuramos, vamos atrás de imagens de câmeras ou testemunhas, mas nem sempre elas existem, ou às vezes a pessoa não quer depor. Se não há elementos que digam que não foi da forma narrada pela polícia, o PM tem também presunção de inocência”, pontua Battisti.

“O crime de homicídio no Brasil – cometido por policial ou não – tem, de maneira geral, uma taxa muito baixa de resolução”, acrescenta o promotor. Sobre a lentidão nos processos, Battisti cita também todo um sistema que é “travado e burocratizado”. “São muitas variáveis que influenciam, recursos interpostos pelas partes, troca de delegados, ordens de outros juízes, desautorização de inquéritos e por aí vai”, diz.

Para o pesquisador Vyctor Grotti, eventuais dificuldades na obtenção de elementos que contraponham a versão da PM são o resultado do atual fluxo das investigações. “O homicídio praticado por policial militar é como qualquer outro, só muda o autor. O problema está no fato de que, desde o início do confronto, a Polícia Civil sequer teve conhecimento da situação e pôde participar da colheita de provas e pedir perícias e laudos”, diz.

“A manutenção da capacidade investigativa da PM é um controle discursivo da própria corporação, mas que anda de mãos dadas com o poder judiciário, que não inova nos inquéritos e não determina novas diligências para esclarecer alguns pontos”, reforça o pesquisador, pontuando, também, que a própria Polícia Militar muitas vezes não colabora com as apurações posteriores. “Quando outros órgãos investigam, os policiais militares não se apresentam para ser ouvidos, e a própria corporação garante que isso não aconteça”, comenta. 

A resistência na colaboração de policiais militares em investigações foi também um dos apontamentos de um estudo elaborado pelo Centro de Apoio Operacional às Promotorias (CAOP) do MP-PR, disponível aqui: “(…) a Polícia Militar tem se recusado à apresentação de milicianos para serem ouvidos perante a Delegacia de Polícia, bem como à apresentação de armamentos relacionados aos fatos em apuração. São situações que têm se tornado recorrentes nas mais diversas Comarcas do Estado, gerando inclusive provocações junto ao Poder Judiciário para fins de trancamento de investigações simultâneas”, descreve o estudo.

Violência policial

Ao menos nos últimos cinco anos, o número de mortes em ações da polícia no Paraná tem crescido. De acordo com o Gaeco do MP-PR, em 2015 foram registradas 247 mortes por policiais em todo estado. Gradativamente, com exceção de 2019, esses números crescem a cada ano. Em 2020, mesmo com a pandemia, a alta nesse número bateu recorde, sendo computados 380 óbitos em ações das polícias, 375 deles derivados de ações da PM.

Levantamento do Gaeco aponta aumento da letalidade policial no Paraná. Fonte: MPPR
Fonte: MPPR

Considerando apenas as mortes registradas no primeiro semestre de 2020 em ações da polícia, o Paraná apresentou taxa de 1,6 óbitos por 100 mil habitantes, bastante próxima da média nacional no período, que foi de cerca de 1,5 óbitos por 100 mil habitantes, de acordo com números do Anuário brasileiro de Segurança Pública. No mesmo período, morreram três policiais em todo Paraná e 110 em todo o Brasil. 

Sem resposta

A reportagem procurou a Polícia Militar do Paraná para esclarecer como funciona o fluxo de investigações do Inquérito Policial Militar e sobre a resistência da corporação em colaborar com as investigações de outros órgãos. Também questionamos quais seriam as explicações para o aumento do número de mortes em ações da PM em 2020, mesmo com a pandemia e a restrição de circulação. Até a publicação desta reportagem, porém, não houve resposta da PMPR.

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