Estudos mapeiam 56 novas cavernas em área cortada pelas linhas da Engie na Escarpa Devoniana

Levantamento foi feito entre 2019 e 2020; número consta em artigo premiado no mês passado

Estudos exploratórios realizados entre 2019 e 2020 mapearam 56 novas cavernas em apenas um dos trechos cortados pelo projeto das linhas do Sistema de Transmissão Gralha Azul (STGA), em implementação desde 2019 pela francesa Engie na região dos Campos Gerais. As obras ganharam repercussão nacional por demandarem o corte de 4 mil araucárias.

O dado consta no artigo vencedor do 1º Prêmio Nacional de Espeleologia Michel Le Bret, submetido pelo Grupo Universitário de Pesquisas Espeleológicas (GUPE), que reúne pesquisadores e docentes das universidades Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e Federal do Paraná (UFPR). A premiação foi no dia 21 de abril.

O trabalho “As cavernas no caminho das linhas de transmissão de energia – um relato sobre a defesa do patrimônio espeleológico paranaense” aponta a descoberta, entre 2019 e 2020, de 56 novas cavidades nas áreas de influência do grupo 2 do empreendimento, onde foi erguida uma linha de transmissão de 525 kV entre Bateias, nos limites Campo Largo, na Grande Curitiba, e Ponta Grossa.

O levantamento considera trabalhos exploratórios de empresas especializadas contratadas pela Engie após determinação judicial, por meio dos quais foram identificadas 48 cavernas, e incursões feitas pelo próprio GUPE. Apenas em uma área de cerca de 25 hectares – o empreendimento completo cruza 27 cidades do Paraná com 2,2 mil torres distribuídas por mil quilômetros de extensão –, o grupo identificou oito novas cavidades.

No conjunto, grande parte das novas cavernas catalogadas concentra sedimentos resultantes de processos de formação muito peculiares, uma espécie de impressão digital do espaço. A fauna é rica por abrigar, além de animais típicos, como aranhas, grilos, besouros e morcegos, a primeira espécie troglóbia – crustáceo característico das cavernas – descrita no sul Brasil. Segundo os pesquisadores, as cavidades do entorno têm ainda um incomparável valor geossistêmico por constituírem locais de recarga do Aquífero Furnas, na Bacia do Paraná.

As novas cavernas, no entanto, só entraram para o registro oficial após alerta do GUPE ao Instituto Água e Terra (IAT), órgão vinculado à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Sustentável (Sedest), responsável pelos licenciamentos ambientais, e consequentes determinações dos tribunais. Membros do grupo, que já vinham monitorando parte dos Campos Gerais como objeto de pesquisa, apontaram insuficiência nos estudos espeleológicos conduzidos a mando da companhia francesa, em paralelo a manifestações de entidades ambientais que descobriram o risco iminente do corte das milhares de araucárias e de outras plantas nativas no traçado do projeto .

Com a obra já em curso, os pesquisadores constataram a falta da análise do patrimônio espeleológico referente ao lote 2, apesar do critério previsto em lei. “Mesmo assumindo o equívoco, afirmando a alta potencialidade para a ocorrência de cavernas em rochas da Formação Furnas, o IAT não exigiu estudos completos sobre o patrimônio espeleológico e cárstico, em toda a área de influência direta do empreendimento, evidenciando clara negligência do referido órgão ambiental”, diz trecho do artigo, que agora vai ser publicado na Revista Espeleo-Tema da Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE).

Para atender às exigências legais feitas pelo IAT após provocação, a empresa contratou novos estudos, porém ainda insatisfatórios. Ignorou-se, afirma o artigo, a prospecção de toda área diretamente afetada pelo empreendimento, e o recorte ficou limitado à Escarpa Devoniana, embora áreas do entorno também fossem de alto potencial para ocorrência de cavernas. A revisão do material referente ao grupo 1, diametralmente maior, se pautou em bancos de dados e cadastros de cavernas, sem trabalho em campo.

Na retaguarda de novos ofícios, o IAT determinou a entrega de análises complementares. Mais abrangentes, por fim, as avaliações elevaram de 21 para 48 o número de novas cavernas nos limites das obras do lote 2. No lote 1 não foram relatadas formações. No grupo 7, outra área em que as linhas interceptam a Escarpa Devoniana, não foram apresentados os estudos espeleológicos necessários.

O Plural não conseguiu falar com os autores do artigo. Mas à equipe de comunicação da UFPR, Rodrigo Aguilar, um dos que assinam o texto, afirmou ainda haver falhas a serem corrigidas nos estudos espeleológicos do empreendimento, bem como no de outras atividades e obras em fase de licenciamento ambiental no Paraná. “É evidente a necessidade de trabalho contínuo de fiscalização e de educação patrimonial”, disse.

Em resposta, o IAT disse que não poderia responder à reportagem no tempo solicitado, pois precisa de tempo para se inteirar do artigo.

A Engie também não se manifestou. Em setembro do ano passado, a empresa iniciou a operação comercial do sistema, projetado para dar mais segurança ao complexo de transmissão e distribuição de energia nos estados da região centro-sul, onde estão concentrados os maiores parques industriais do país. A autorização dada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) colocou no mercado a energia gerada nas linhas 230kV de Ponta Grossa a São Mateus do Sul e Ponta Grossa a Ponta Grossa Sul. 

A expectativa era de que a implantação da totalidade do sistema fosse finalizada em dezembro de 2021, mas não houve atualização das informações.

Impasses mantiveram as obras do sistema paralisadas por cerca de três meses entre 2020 e 2021. A primeira decisão foi em resposta a uma ação civil pública movida por entidades ambientais pela derrubada em massa de araucárias ao longo do trajeto das linhas nos trechos 1 e 2, barrada posteriormente pelo ministro Humberto Martins, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em ação paralela, o Ministério Público do Paraná (MPPR) e o Ministério Público Federal (MPF) apontaram inconformidades no projeto de instalação das linhas em relação à legislação ambiental e tiveram o pedido de paralisação de todos os trechos do sistema acatado pela Justiça Federal do Paraná. As duas liminares foram suspensas pelo STJ sob entendimento de que as decisões poderiam interferir na regulação do setor elétrico.

Um dos maiores questionamentos feitos pelo MPPR indicou uma suposta manobra adotada pelo empreendimento para diminuir os trâmites de licenciamento. Para dispensar exigências técnicas e cautelas, sustentou o órgão, a empresa teria, então, fracionado artificialmente a totalidade da obra em sete grupos distintos.

A Engie assumiu as obras de implantação e operação por 30 anos das linhas do Gralha Azul após vencer leilão da Aneel em 2017. O nome do sistema leva o nome da ave-símbolo do Paraná e da resistência da mata de araucárias.  

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