É extremamente caro ser pobre (James Baldwin tinha razão)

O escritor americano James Baldwin dizia que é extremamente caro ser pobre. O financiamento tem juros maiores. A casa malfeita escorre com a chuva. Os repórteres Sandoval Matheus e Giorgia Prates mostram essa realidade no Parolin.

Na Vila Parolin, bairro da periferia de Curitiba, Janete Scabari atravessa os escombros para abrir à reportagem do Plural o portão de seu terreno. Três semanas atrás, o amontoado de tijolos e concreto formava as incipientes paredes da casa que ela começara a construir, para escapar das enchentes que rotineiramente assolam a região, mas uma tempestade de verão transformou tudo em entulho. “Do jeito que a parede subiu, ela desceu”, relembra. “Eu acho que a gente botou muita areia, muito cal e pouco cimento”, diz, explicando a tentativa de fazer a obra caber no orçamento estreito de uma desempregada.

No vizinho, que também pensava em começar a construir, um alagamento recente levou os montes de areia e pedra brita adquiridos e acumulados no quintal.

“Aqui, se começa a chover, eu já não durmo. Porque se a água não entra por baixo, ela entra por cima”, diz Janete, mostrando os buracos no telhado da residência em que mora atualmente com a filha Jéssica e mais três crianças. “Eu só descanso quando o rio baixa”.

Janete mostra os estragos da chuva em sua casa no Parolin. Foto: Giorgia Prates/Plural.

O prejuízo de Janete com a chuva foi de R$ 2 mil, ela calcula, um dinheiro completamente perdido. Agora, ela precisa começar de novo, e torce para que a temporada de tormentas fortes passe rápido, a fim de que possa usar os nove sacos de cimento que guarda dentro de casa, num local alto, antes que eles empedrem e também se percam.

Foi James Baldwin, o escritor americano negro e homossexual nascido no Harlem de um pai biológico viciado em drogas, quem cunhou a frase: “Qualquer um que tenha lidado com a pobreza sabe o quão extremamente caro é ser pobre”. Quem não tem dinheiro para construir uma casa dentro do padrão (ou em uma área segura), pode perdê-la de uma hora para outra – e ver tudo que investiu escorrer viela abaixo.

A pobreza muitas vezes é ver escorrer entre os dedos o pouco que se tem. Que o diga Sebastião João da Silva, ex-servente de pedreiro que agora arrasta um carrinho de materiais recicláveis pelas vielas da cidade. Ele já teve uma carroça puxada a cavalo, até que em 2015 o ex-prefeito Gustavo Fruet (PDT) sancionou a lei que proíbe o uso de animais em veículos de tração.

Antes disso, Sebastião trabalhou em Morretes, no litoral do estado, consolidando as fundações para a construção de uma nova pousada na cidade. Lá, deu expediente por 60 dias e, sem nenhum direito trabalhista garantido, tomou um calote de R$ 4 mil. “Pelo menos agora eu sou o meu próprio patrão”, comenta, como quem pensa alto, tentando ver o lado bom das coisas.

Quem é pobre paga mais

Intempéries climáticas e chefes gananciosos não são os únicos adversários da população pobre na lida pela sobrevivência. A lógica contra a pobreza é perversa: com salário baixo, não se compra à vista; no crediário, há juros altos, e tudo fica mais caro. Portanto, por um mesmo produto, quem paga mais caro é o mais pobre.

Não tendo estudo, a chance de perder o emprego é maior; e a de conseguir outro, menor. Quem está desempregado falha com a prestação e suja o nome. Com o nome sujo, não se consegue empréstimo no banco – nem conta se abre. O dinheiro não só não rende: custa mais.

O Estado tem um papel importante nisso tudo. No Brasil, a carga tributária é concentrada sobre o consumo, e não sobre a renda ou o patrimônio, o que faz com que os pobres paguem proporcionalmente muito mais impostos do que os ricos. Na Alemanha, a tributação sobre a renda pode superar 50%. No Brasil, não passa de 27,5%. E mesmo assim esse porcentual ainda pode cair, caso se concretizem os planos do ultraliberal ministro da Economia de Jair Bolsonaro (PSL), Paulo Guedes.

James Baldwin, escritor do Harlem: “Qualquer um que tenha lidado com a pobreza sabe o quão extremamente caro é ser pobre”

De acordo com o professor de Economia da UFPR Junior Ruiz Garcia, o topo da pirâmide social brasileira paga hoje relativamente até seis vezes menos impostos do que sua base. Em algumas famílias, o porcentual chega a irrisórios 6%.

Isso porque quem tem mais renda também tem mais possibilidade de driblar o sistema. Uma das brechas na legislação está no fato de pessoas físicas pagarem mais impostos do que pessoas jurídicas. Assim, pessoas com muitos bens acabam abrindo empresas com a desculpa de administrar o patrimônio. “Se a pessoa jurídica tiver um endereço residencial, por exemplo, elas podem inclusive trocar a mobília de casa e lançar isso como ‘investimento’, o que amortiza os impostos”, explica o professor. “É uma possibilidade que os pobres não têm.”

Junior Ruiz Garcia também contesta a política de juros brasileira, que, nas palavras dele, “é uma política de transferência de renda ao contrário, que contribui para aumentar a desigualdade”.

Quem no Brasil ganha até um salário mínimo e administra uma casa de quatro pessoas, deixará toda a sua renda em gastos básicos do dia a dia, como alimentação, aluguel, luz elétrica e água encanada. Essas pessoas não têm condições, portanto, de comprar uma geladeira, um bem básico, à vista. Precisam, então, recorrer ao mercado de crédito, onde quem tem dinheiro para emprestar não costuma fazer filantropia. Em novembro de 2018, a economia brasileira tinha uma taxa média de juros para o crédito de 122% ao ano, com os juros do cheque especial batendo em 305,71%, o que poderia fazer até mesmo um agiota corar.

“Com taxas desse tipo, não há planejamento financeiro que resolva”, avalia Junior Ruiz.

Uma legião de desamparados

Não é só a distribuição da carga tributária que é injusta, porém. O Estado também falha em outras frentes no combate à pobreza. “O que deveria ser prioridade de qualquer governo é a redução da desigualdade”, diz o professor da UFPR. “Por exemplo: será que uma pessoa trabalhando 44 horas por semana produz tão pouco pra ganhar apenas um salário mínimo? O salário de fato reflete a produção que ela gerou?”, questiona.

Carmelita Pereira Pinto chegou ao Parolin em 1979. Atualmente, mora em uma casa de madeira apodrecida e com o assoalho empenado pela umidade que range sob os pés, enquanto se prepara para mudar para um sobrado em outra parte do bairro, financiado pela prefeitura. “Faz 15 anos que começaram a falar dessas construções”, ela recorda.

Carmelita e a filha, Edneia: enchentes consomem a casa e os móveis repetidamente. Foto: Giorgia Prates/Plural.

Quando isso acontecer, uma outra família irá se mudar para a casa que hoje ela ocupa, onde, quando o Rio Guaíra enche, a água chega a subir um metro e meio. Precisará, como Carmelita, se acostumar à rotina de enchentes e de perdas.

Se as obras da administração municipal tivessem sido mais ágeis, Carmelita provavelmente não teria acumulado tantos prejuízos. Em março de 2018, durante a pior enchente já registrada no Parolin, as únicas coisas que sobraram para ela e a família foram uma geladeira e uma televisão. As crianças da casa perderam até o material escolar. “Você não pode brigar com uma força da natureza”, se consola a moradora, que reclama ainda da assistência prestada pela prefeitura. “É bem humilhante trabalhar com o pessoal da FAS [Fundação de Ação Social de Curitiba]. É como se a gente tivesse que ficar eternamente grato por ganhar um colchão.”

Futuro comprometido

Ainda na Vila Parolin, dona Adyr Machado dos Santos, de 83 anos, mora em um barraco de madeira apodrecido e caindo aos pedaços que rotineiramente fica cheio de água. Ela praticamente não tem móveis. Perdeu o guarda-roupa este ano e usa uma embalagem de papelão de TV para guardar as peças de vestuário. Também perdeu mantimentos. Na semana passada, na quinta-feira, 17, sua despensa consistia em sal, arroz e macarrão. Algumas galinhas que ela e filho, Ronaldo José dos Santos, criavam nos fundos da casa também haviam sido levadas pela água.

Mesmo octogenária, dona Adyr ainda trabalha de diarista, para complementar a aposentadoria. “Ela é nosso reloginho”, comenta a vizinha Andreia de Lima. “Às 6h30 já está de pé, organizando a casa, mandando quem tem escola ir pra escola, quem tem médico ir pro médico.”

A necessidade de trabalhar durante a velhice é típica das classes menos favorecidas, que muitas vezes vivem de bicos ou no mercado informal e perdem a possibilidade de ter uma aposentadoria mais digna lá na frente por não contribuir com o INSS. “É verdade que o brasileiro não tem a cultura de poupar e pensar no futuro, mas o que acontece é que muitas vezes ele nem ao menos tem renda para isso”, concorda Junior Ruiz.

A cozinha de Carmelita: tomada pela água toda vez que o rio sobe.
Foto: Giorgia Prates/Plural.

E o prejuízo não é só financeiro. A pobreza literalmente drena a vida da base da pirâmide social. Um estudo publicado na revista The Lancet, em 2017, e que reuniu 30 especialistas e incluiu 1,7 milhão de pessoas, mostra que a pobreza encurta a vida da população mais do que a obesidade, a hipertensão e o álcool.

Mesmo em uma cidade como Curitiba, a diferença na expectativa de vida da população de um bairro para o outro pode ser chocante. De acordo com o Atlas do Desenvolvimento Humano da ONU, de 2014, a esperança de vida da população do Água Verde era, na época, de 81 anos, a mesma de países desenvolvidos como Áustria e Canadá. Já em bairros como a Vila Parolin ou o Tatuquara esse número caía para 69 anos, semelhante ao do Cazaquistão e do Iraque convulsionado pela guerra.

Dívidas, dívidas, dívidas

Até 2013, a professora Ana Paula Cherobim coordenou o Laboratório de Orçamento Familiar da UFPR. Lá, recebia e auxiliava pessoas que queriam equilibrar as contas domésticas, a grande maioria sofrendo por endividamento, mas nem todas eram necessariamente pobres. “Você via pessoas ganhando R$ 8 mil, R$ 10 mil por mês e completamente endividadas”, conta.

O quadro é facilitado, segundo ela, por uma certa pressão dos bancos, mas também falta conhecimento financeiro para a população. “O banco fica te ligando, te mandando mensagens no celular, tentando te empurrar um produto financeiro que na verdade você não precisa”, exemplifica. “Os bancos exploram, mas se você tem educação financeira, você não se deixa ser explorado.”

Muitas vezes, no entanto, a população menos favorecida se vê obrigada a recorrer a um financiamento emergencial. “O descontrole existe, é verdade, mas a perda do emprego ou algum outro acidente da vida podem te obrigar a recorrer a uma instituição financeira”, reflete Junior Ruiz.

Casas para onde as famílias iriam: decepção com a demora. Foto: Giorgia Prates/Plural.

O professor defende a melhora nos serviços públicos como uma boa alternativa para promover “transferência de renda”. Para ele, as cotas nas universidades públicas não são apenas uma maneira de permitir aos filhos da população carente saírem do ciclo de pobreza, mas também de incremento imediato no faturamento dessas famílias. “O curso de economia numa faculdade privada custa mais ou menos R$ 1 mil. Então, pode-se dizer que quem entra na universidade pública está ganhando R$ 1 mil de renda”, computa ele.

O acesso a serviços públicos como saúde e educação, no entanto, não poupa a família de Rosane Amália, a filha que mora na casa ao lado da de dona Adyr, de conviver com a “rataiada” que vem junto com os alagamentos ou com o perene cheiro de mofo. Ela também já perdeu quase tudo: guarda-roupa, colchões, armários. “Até a esperança”, completa uma de suas filhas. “A esperança, não. Se não tiver esperança, vai fazer o quê?”, retruca Rosane. “Não sei, mas vai morrer com esperança?”

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