Despedida a Paolo Grossi

Autor fundamental do Direito, o mestre florentino foi meu grande guia acadêmico

Ontem, dia 4 de julho, em Florença, aos 89 anos, faleceu a personalidade que em tantos sentidos diferentes eu considero como a mais importante que conheci no mundo acadêmico, o mestre dos mestres, “maestro general”, como disse uma vez Bartolomé Clavero: Paolo Grossi.

Como sempre acontece nesses casos, ontem pulularam os obituários nas redes sociais lamentando seu falecimento e registrando a sua imensa importância. E não há como contestar como o seu impacto e seu peso sejam gigantes na Itália, na Europa e na América Latina (no Brasil, creio que ainda muito aquém do que deveria).

Li comentários ontem sobre a importância do que ele escreveu sobre o medievo jurídico (ao qual ele imprimiu uma interpretação original e bem-sucedida), sobre o direito canônico, sobre o direito de propriedade (Tomás y Valiente o definiu como “el gran historiador de la propriedad”), sobre o seu olhar crítico sobre a modernidade jurídica (e sua crítica ao formalismo, à codificação, ao “absolutismo jurídico”) e, mais recentemente, sobre a atual crise das fontes do direito, sobre a globalização jurídica e sobre o papel atual do jurista. Em cada um destes temas ele foi de fato gigante e decisivo. Já até escrevi, na introdução de uma coletânea de textos seus para a língua portuguesa, uma avaliação sobre esses “eixos” de sua obra.

Li também sobre seu relevante papel que ele teve como Juiz da Corte Constitucional Italiana (e de presidente e depois presidente Emérito deste Tribunal) após sua aposentadoria na Università degli Studi di Firenze. Mas acho ocioso repetir isso neste momento, pois tudo isso já é notório. E acho que isso não expressa, nesse momento difícil, o alcance da perda que acabamos de ter. Para mim, para além do que aprendemos lendo seus textos, ele excedia a tudo isso.

Paolo Grossi era generoso. Sem isso ele não teria aglutinado tantas pessoas e não teria sido um “caposcuola” que manteve até o final um grupo de professores solidários e coesos como Pietro Costa, Maurizio Fioravanti, Paolo Cappellini, Bernardo Sordi, Luca Mannori, Giovanni Cazzetta, Irene Stolzi e Alberto Spinoza (para falar apenas de alguns do seu círculo florentino e sem contar o inesquecível Mario Sbriccoli). A mesma água florentina que se bebia na segunda metade do século XV pelo visto há de ter circulado também no mundo histórico-jurídico florentino, que concentrou em torno de si uma constelação de talentos e vocações, todas despertadas por Grossi. Para quem presenciou tantas vezes no meio acadêmico brasileiro um atavismo do sentimento autofágico, competitivo e de traições, eu considerava notável o modo como ele tinha criado um sentido de pertencimento, lealdade e de afetos, que sempre foram a força de sua escola.

Grossi também foi generoso comigo: sem jamais ter me conhecido pessoalmente antes, ele me acolheu para um estágio de pós-doutorado de um ano no seu Centro di Studi per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, que ele havia idealizado e fundado e que sempre foi uma verdadeira Meca para quem é da nossa área. Tantos haviam sido ali acolhidos, inclusive em momentos difíceis de suas trajetórias profissionais (como por exemplo André-Jean Arnaud e António Hespanha).

Paolo Grossi. Foto: Diego Pisante

Fiquei nesse ano inteiro, entre 2003 e 2004, numa sala ao lado da sua (eu dividia a sala com o professor mexicano Ramón Narváez, amigo de toda a vida), absorvendo de tudo. E – sorte minha – senti que fui por ele adotado. Por meio dele, conheci e fiz laços de amizade que duram até hoje com praticamente toda a sua “Escola”. Vários dos meus camaradas de área e orientandos na UFPR e fizeram depois também seus percursos florentinos (Luis Fernando Pereira, Sergio Staut Jr., Walter Guandalini Junior, Rebeca Dias).

Nossas instituições fizeram laços que duram e funcionam até hoje. Tornei-me membro do “consiglio scientifico” da revista que ele fundou e dirigiu por trinta anos, os “Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno”, que considero até hoje o mais importante veículo da nossa área. Ele veio à minha universidade duas vezes e recebeu o doutorado “honoris causa” da UFPR em 2011 (um dentre os tantos que ele acumulou pela carreira). Recebeu também essa distinção da UFRGS (iniciativa da professora Judith Martins Costa) e tinha como destino habitual a UFSC (hospedado pelo professor Arno Dal Ri Junior, que fez a primeira tradução de um livro seu ao português – o belíssimo “Mitologias jurídicas da modernidade”). Acompanhou o novo impulso da história do direito no Brasil (e nele teve um protagonismo imenso). Abriu-me portas e deu conselhos. Sempre com muito afeto, com muita generosidade.

Apesar de generoso e afetuoso, Grossi também era austero: tinha a mão firme de líder. Protegia a escola como um leão e cuidava dos seus como um pai. Formal, ao cumprimentar uma mulher beijava-lhe a mão. Autodefinia-se como um mero camponês (e dizia que tirava daí seu interesse pela relação entre as pessoas e as terras), mas na verdade parecia um lorde do século XIX (ou da “belle époque”). Cultivava com disciplina e elegância a prática de mandar cartas a seus interlocutores – hábito que parecia pertencer a outros tempos mas que sedimentou uma rede de relações acadêmicas impressionante.

Com elegância e postura sempre impecáveis, levava muito a sério os critérios de cortesia, tanto pessoal quanto acadêmica. Avesso a lugares barulhentos, tinha rotina quase monástica: praticamente não circulava durante a noite e acordava para trabalhar em torno das 5h00 – o momento mais apropriado e mais calmo, ele me dizia (nunca consegui seguir o mestre nisso…).

Quando vi seu quarto e seu lugar de trabalho em sua casa nas colinas do Chianti, lugar de onde brotaram alguns dos clássicos da historiografia jurídica mundial e onde ele passava os escaldantes verões, me veio a impressão de que ele trabalhava como se estivesse num mosteiro medieval: ele realmente precisava de pouco para fazer muito. Era sofisticadíssimo e ao mesmo tempo simples e frugal. Amante da poesia, eu o vi recitar longos poemas de Manzoni de memória.

Era professor dedicado, comprometido e dizia não ser possível desvincular a sua atividade de pesquisa acadêmica com a sua docência. Dedicava-se aos alunos, cultivava relações (sempre, certamente, em seu jeito formal) e os hipnotizava. Eu segui seus cursos (de história do direito moderno e de história do direito medieval), em 2003, na antiga sede da Facoltà di giurisprudenza, na Via Laura, no centro de Florença, de onde se podia ver a colina de Fiesole (ela a seguir seria transferida para Novoli, numa sede mais distante, numa mudança que ele detestou). Para meu embaraço, ele me pedia para sentar na mesa do professor, no tablado, na frente de todos, enquanto ele falava de pé para uma multidão de estudantes verdadeiramente magnetizada.

Sua fala era precisa, clara e ao mesmo tempo rica e metafórica. O passado jurídico, na voz de Grossi, era cheio de cores. A fala dele, com um impacto retórico imenso, parecia ter sido antes toda ela escrita e registrada mentalmente. A transcrição de uma aula sua não creio que precisaria de uma revisão para ser publicada: estava já perfeita e acabada. Eu creio que nunca vi uma presença numa sala de aula ou em um auditório – tanto em forma quanto em conteúdo – tão forte como a de Paolo Grossi. Tinha a história do direito como paixão e como missão, na escrita e na sala de aula.

Eu o vi pela última vez há um mês, no dia 3 de junho, quando fui visitá-lo em sua casa em Florença. Estava debilitado. Ele – lúcido como sempre – disse que viveu toda a sua vida até os 88 anos e seis meses como um jovem, mas se desolava muito que nos últimos meses a sua pouca mobilidade e suas dores o restringissem tanto. Tentei animá-lo, sugerindo que ele se envolvesse em algum projeto intelectual, fazendo uso de sua memória e inteligência prodigiosas. Ele sorriu, com a gentileza de sempre, mas me respondeu que estava cansado.

Ao me despedir dele, marquei o nosso próximo encontro para outubro desse ano de 2022, quando ocorrerá um congresso para celebrar os cinquenta anos dos Quaderni Fiorentini – esse filho legítimo do talento e da inteligência de Paolo Grossi. Saindo na rua, depois da visita, uma tristeza tomou conta de mim ao ver a fragilidade e desolamento do maestro. E ele não me esperou até outubro.

Amanhã, 6 de julho, ocorrerá o seu velório em Florença na Basílica Santíssima Anunziata – mesmo lugar onde os irmãos Cappellini um dia levaram meu filho João, quando recém-nascido, para uma benção. Meu filho João, aliás, que Paolo Grossi dizia ser “il fiorentino”, por ter sido concebido nesta cidade maravilhosa em que viveram Dante e Maquiavel. Meu coração (e de tantos brasileiros que o adoravam) estará lá amanhã, compartilhando a dor com a família dele, seus amigos, seus alunos, com a senhora Alma e com todos os que pertencem à ‘Scuola Grossi’.

Por ironia do destino, exatamente três anos atrás, dia 5 de julho de 2019, eu escrevia um texto dolorido a propósito da morte de António Manuel Hespanha. Eu dizia naquela ocasião que como acadêmico “eu tinha uma bússola em Lisboa e outra em Florença; agora estou órfão de uma delas”. Hoje, sem mais nenhuma bússola e ainda desorientado, sinto-me completamente órfão. Paolo Grossi, sei que sua obra e seu exemplo vão ficar; mas você vai me fazer muita falta.

Ricardo Marcelo com seus dois mestres: Grossi (esq.) e Hespanha (dir.). Foto: Diego Pisante

Sobre o/a autor/a

3 comentários em “Despedida a Paolo Grossi”

  1. Ariani Cavazzani Szkudlarek

    Texto belíssimo, sobre alguém extraordinário, que impactou tanto a vida de muitos, mas que eu, em minha ignorância jurídica, ouvi falar pela primeira vez na segunda-feira, durante o necessário e dolorido discurso de nosso reitor na colação de grau do Direito. Ler este texto, me fez querer saber mais sobre este homem, docente, pesquisador e ser humano singular e despertou até mesmo um certo interesse na área do Direito, a qual sempre foi uma estranha para mim…

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