Cartão-postal do Paraná, reserva da Escarpa Devoniana pode virar areia

Área de preservação ambiental paranaense está na mira de gigante internacional da mineração

Alvo durante anos de um projeto de lei encampado por três dos mais poderosos deputados estaduais do Paraná, que tentavam lhe tomar nada menos que 70% de sua área original, a Escarpa Devoniana – uma Área de Proteção Ambiental (APA) que divide o primeiro e o segundo planalto paranaenses e em cuja peculiar formação geológica está o icônico parque da Vila Velha – tem um novo fantasma a colocá-la em risco: a mineração.

A Escarpa é uma área de campos entremeados por bosques de araucárias tão típicos do Paraná que batizaram a região a que ela dá acesso, já no segundo planalto: os Campos Gerais. Essa vegetação se apoia sobre uma estrutura rochosa com coisa de 400 milhões de anos de idade, originada no período devoniano – daí seu nome. É justamente na mais abundante dessas rochas, o arenito, que uma grande mineradora está de olho.

A bem da verdade, a mineração não é uma novidade na região. Pelo contrário, há décadas que a extração de areia é uma atividade econômica pujante. A riqueza mineral da Escarpa fomentou um dos mais antigos pólos de fabricação de cerâmica e porcelana do Brasil, em Campo Largo, região metropolitana de Curitiba.

Por isso, a APA da Escarpa Devoniana é um dos 194 pontos em que há risco de conflito socioambiental derivado da mineração no Paraná, de acordo com o projeto Latentes, um estudo realizado pela Agência Livre.jor com financiamento do Fundo Brasil de Direitos Humanos.

O estudo listou, ao todo, 4.536 pontos de conflito socioambiental latente no Brasil – áreas nas quais povos indígenas, comunidades remanescentes de quilombolas, assentamentos de agricultores e unidades de conservação ambiental são vizinhas ou sobrepostas a lavras de extração mineral legalizadas.

Inédito, no caso da Escarpa Devoniana, é o tamanho da empresa que pleiteia uma autorização para minerar por ali, a Jundu. Segundo o próprio site, a Jundu explora e vende areia para “os mercados de fundição, vidro, cerâmico, abrasivos, filtros, campos esportivos, produtos químicos, operações de fraturamento em poços de petróleo, entre outros”.

Fundada em 1959, em Minas Gerais – berço da mineração no Brasil e cenário de dois dos maiores crimes ambientais decorrentes desta atividade na história do país, em Mariana e Brumadinho –, a Jundu é associada ao gigantesco grupo francês Saint-Gobain, que está no banco dos réus em alguns dos maiores processos decorrentes das mortes causadas pelo amianto no mundo. Foi a assessoria de imprensa do Saint-Gobain que respondeu à reportagem sobre os interesses da Jundu no Paraná.

Uma jazida que vale 18 anos de espera

A Jundu não está brincando. Desde 2001 a mineradora tenta aprovar o licenciamento prévio da área que pretende explorar. Em 2003, ouviu das autoridades que não a receberia, “pelo fato da área estar inserida na Área de Proteção Ambiental da Escarpa Devoniana, com o agravante de englobar áreas adjacentes da nascente do Rio Tibagi, ser considerada Corredor de Fauna e ainda pelo fato de haver necessidade de represar o leito de Rio Tibagi, atividade não licenciável por tratar-se de área de preservação permanente.”

Inconformada, e após alguns recursos administrativos, a empresa foi à Justiça em 2005. Cinco anos depois, recebeu sentença favorável. Finalmente, em 2012, foi autorizada a produzir o Estudo de Impacto Ambiental da “lavra e beneficiamento de areia quartzosa” que deseja instalar na Escarpa Devoniana.

Na 425.ª das quase 600 páginas do estudo, a empresa brande o seguinte argumento: “As APAs, em sentido estrito, não devem ser vistas como unidade de conservação, mas, referencialmente, como áreas submetidas a um regime especial de gestão ambiental”.

“A legislação pertinente à Administração das Unidades de Conservação deixa clara a possibilidade de uso dos recursos minerais encontrados na APA, não impondo qualquer restrição além daquela de promover os trabalhos com obediência à conservação da natureza, propiciando, assim, o desenvolvimento sustentável”, argumenta a Jundu. É uma manobra semântica e tanto, a se considerar que as APAs são justamente uma das modalidades do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.

Segundo a definição legal, APAs podem ter “um certo grau de ocupação humana” e se destinam a “proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais”, a critério de um conselho gestor “presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes dos órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e da população residente”.

No site do Ministério do Meio Ambiente, lê-se que a APA da Escarpa Devoniana foi criada para “assegurar a proteção do limite natural entre o primeiro e o segundo planalto paranaense, inclusive faixa de Campos Gerais, que se constituem em ecossistema peculiar que alterna capões da floresta de araucária, matas de galerias e afloramentos rochosos, além de locais de beleza cênica com os ‘canyons’ e de vestígios arqueológicos e pré-históricos.”

Se acatado pelo IAP, o Instituto Ambiental do Paraná, combalido por denúncias de corrupção que envolvem gestores nomeados pelo ex-governador Beto Richa, do PSDB – que esteve preso recentemente numa investigação de desvio de dinheiro em obras de escolas públicas –, o argumento da Jundu coloca potencialmente em risco a sobrevivência de toda a Escarpa. Mais grave – se chancelada por um tribunal, a artimanha jurídica da mineradora pode embasar outras decisões em todo o país.

“[Os argumentos da Jundu são] Uma linha de abordagem que muitos dos empreendedores que trabalham com recursos naturais têm usado. Se prevalecer essa ideia, a sociedade enfrentará um problema muito grave”, alerta o geólogo Gilson Burigo Guimarães, doutor em Petrologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa – maior cidade dos Campos Gerais –, a UEPG. Também é membro do Conselho Gestor da APA da Escarpa.

“Em Áreas de Proteção Ambiental há uma série de itens a serem avaliados para a implantação de atividades econômicas. Se o órgão ambiental do Paraná assumir essa interpretação de que elas podem admitir, de forma irrestrita, qualquer tipo de atividade de extração, teremos um prejuízo muito grande em escala local, regional e nacional”, afirma Guimarães, que recebeu, em seu escritório, os jornalistas José Lazaro Jr., do Livre.jor, e Fabrízio Rosa, colaborador do Latentes.

O geólogo prosseguiu: “Os Campos Gerais foram identificados pelo Ministério do Meio Ambiente, nos anos 2000, como uma das áreas prioritárias para conservação no país. Naquela época, se propôs a criação de três unidades: o Parque Nacional dos Campos Gerais, a Reserva Biológica das Araucárias e o Refúgio da Vida Silvestre do Tibagi, que seriam conectados entre si e com a APA da Escarpa Devoniana”. Delas, o Refúgio do Tibagi não saiu do papel. “Isso comprometeu a funcionalidade do conjunto de unidades que se desejava existirem aqui na região. A principal força de resistência foi a mineração de areia.”

37,5 milhões de toneladas do terceiro recurso natural mais usado no mundo

A paciência da Jundu se explica pelo que está em jogo: a empresa informa ao IAP que pretende retirar quase 30 mil toneladas de minério por mês dos pouco mais de 117 hectares – o equivalente à área de 164 campos de futebol. Ali, técnicos da mineradora já mediram 37,5 milhões de toneladas de areia economicamente aproveitável. O investimento para instalação da lavra, apontado no estudo de impacto ambiental, era previsto em R$ 12,8 milhões há três anos.

É difícil imaginar a remoção de tal volume de minério sem danos consideráveis à paisagem da região, lembra Guimarães. “As principais consequências [da autorização do projeto da Jundu] seriam a mudança da paisagem e o comprometimento do valor dela para a identidade cultural da região. É graças à existência do arenito que temos um tipo de solo, um tipo de vegetação que caracterizam a região dos Campos Gerais. Além disso, haverá impacto sobre os processos ecológicos, a quantidade e a qualidade da água”, projetou.

“A Escarpa Devoniana são nada mais que montanhas de arenito. A partir de processos industriais, pode se transformar essa rocha em areia de boa qualidade. Já há trabalhos científicos que mostram isso”, explica o médico veterinário Clóvis Borges, fundador da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental, a SPVS, uma ONG que, ao lado do Observatório Justiça e Conservação, do qual é conselheiro, teve papel importante no arquivamento do projeto de lei que ameaçava a região. Em outras palavras, aos olhos de mineradoras, as formações rochosas que deram origem – entre outras paisagens – à icônica taça de Vila Velha são grandes jazidas de areia.

Num estudo apresentado em 2015, o diretor do Banco de Dados de Informações sobre Recursos Globais (GRID, na sigla em inglês) do Programa Ambiental das Nações Unidas, Pascal Peduzzi, argumentou que “a areia é mais rara do que pensamos”. A China, por exemplo, usa mais cimento – que usa areia como uma de suas matérias-primas – a cada quatro anos que os EUA em um século. Ainda que poucos se deem conta, a areia é o terceiro recurso natural mais usado no mundo – atrás, apenas, do ar e da água. E, mesmo que pareçam inesgotáveis, as reservas não dão conta da demanda atual, lembra outra publicação da ONU.

“Não existe construção civil sem areia, nem uma série de atividades industriais – por exemplo, fabricação de vidros. Por isso, aqui na Escarpa, o arenito, basicamente uma rocha formada por grãos de areia, tem despertado cada vez mais interesse”, lembrou o geólogo.

“Pode-se dizer que a qualidade desse material está muito próxima da ideal para que seja utilizado praticamente in-natura, após a sua desagregação por processos mecânicos. Através das análises químicas pode-se confirmar essa expectativa. Como a demanda desse tipo de produto é bastante favorável, o potencial da exploração dessa formação rochosa é bastante promissor”, resume o geólogo Clóvis Sidney Weber na introdução do trabalho que lhe valeu o título de bacharel, apresentado em 2017, na Universidade Federal do Paraná, a UFPR.

Um órgão ambiental que atropela documentos

O Plano de Manejo da Escarpa Devoniana, publicado em 2004 – longos 12 anos após a criação da reserva, em 1992, para celebrar a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Eco-92 –, replica uma resolução de 1988 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama, que veda em APAs “atividades de terraplanagem, mineração, dragagem e escavação que venham a causar danos ou degradação ao meio ambiente ou perigo para pessoas ou para a biota” (nome técnico dado ao conjunto de todos seres vivos de um determinado ambiente).

Mais que isso, o documento proíbe expressamente, na área da Escarpa em que a Jundu pretende instalar sua mina, a “exploração comercial de afloramentos rochosos”.

Bizarramente, não é o que informou o IAP, questionado pelo Livre.jor a respeito do interesse da Jundu. “Estamos analisando a situação ambiental e legal tendo em vista a judicialização do processo de licenciamento. Porém, de maneira mais abrangente, a atividade de mineração na APA é permitida em algumas porções”, disse o órgão ambiental do Paraná.

Também é curioso notar que, noutro trecho da resposta, o IAP admita que a Jundu pretende implantar uma modalidade de mineração inédita na escarpa: “As atividades minerárias de areia nesta região são desenvolvidas em áreas planas em cavas submersas e cavas secas, algumas em leito de rio e outras em barranco. No caso da Mineração Jundu, a extração pretendida visa à extração de areia quartzosa, de ocorrência mais rara com qualidade para o emprego industrial para fabricação de vidros e fundição, requerendo assim mais tecnologia na lavra e beneficiamento do minério em relação aos demais empreendimentos que extraem areia para uso na construção civil na região”.

Questionados diretamente sobre ter havido tratativas recentes a respeito do licenciamento da área, o novo governo do Paraná, agora sob administração de Ratinho Jr. (PSD), e a Mineração Jundu, não responderam este ponto específico. Em nota, reproduzida na íntegra ao final da reportagem, a Jundu diz ser “uma característica deste ramo de negócios que os estudos de implantação sejam feitos com uma visão de longo prazo”. A empresa não se manifestou sobre a tentativa de descaracterizar judicialmente a APA, nem sobre a propriedade da área, hoje com plantio de soja.

Sobre como tem operado a compensação ambiental nos outros sete estados brasileiros em que já atua, e a respeito dos cuidados a serem tomados no Paraná, a Jundu não deu exemplos concretos. “A empresa  ressalta que é pautada por uma atuação rigorosa e responsável social e ambientalmente, atendendo e superando as exigências legais em seus projetos, sendo reconhecida e premiada internacionalmente pelo seu trabalho de recuperação das áreas onde desenvolve as suas atividades”.

Cabe lembrar que a chegada de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência tem boas chances de enfraquecer a preservação ambiental de áreas visadas pela mineração. O ultra-direitista, que procurava ouro como passatempo e andava com uma bateia no porta-malas do carro, já prometeu flexibilizar as regras para mineração – inclusive na Amazônia. Ricardo Salles, escolhido por ele para cuidar do Meio Ambiente, é acusado de adulterar documentos para favorecer mineradoras.

Num ambiente desses, é de se imaginar que pode ocorrer, com a Escarpa Devoniana, algo similar ao que Carlos Drummond de Andrade retratou no poema “A Montanha Pulverizada”: “Esta manhã acordo e não a encontro/Britada em bilhões de lascas/ deslizando em correia transportadora/ entupindo 150 vagões / no trem-monstro de 5 locomotivas /— o trem maior do mundo, tomem nota —/ foge minha serra, vai/ deixando no meu corpo e na paisagem /mísero pó de ferro, e este não passa”.

Em vários de seus poemas, Drummond lamentou o sumiço do Pico do Cauê, que avistava de casa quando criança. Itabira, cidade natal do poeta, é um dos epicentros da mineração de ferro em Minas Gerais e o berço da Vale, que fez fortunas com a destruição da paisagem cara à Drummond e é uma das protagonistas dos desastres ambientais e humanos de Mariana e Sobradinho.

Se tal cenário irá se repetir na Escarpa Devoniana, cabe às autoridades paranaenses decidir.

Nota da Mineração Jundu

“A Mineração Jundu atua em 7 estados brasileiros com extração e beneficiamento de minerais não metálicos destinados ao segmento industrial (Vidraria, Fundição, Química e Petroquímica), e no momento não há operações no Paraná.

No Estado do Paraná foram iniciados processos de licenciamentos, no âmbito Mineral e Ambiental,  para a implantação de uma unidade operacional na região, compreendida entre os municípios de Palmeira e Ponta Grossa. É uma característica deste ramo de negócios que os estudos de implantação sejam feitos com uma visão de longo prazo, que podem ser viabilizadas conforme o desenvolvimento econômico da região. O estudo ambiental, que subsidia o processo de licenciamento foi apresentado ao órgão ambiental (IAP) e encontra-se em análise.

A empresa  ressalta que é pautada por uma atuação rigorosa e responsável social e ambientalmente, atendendo e superando as exigências legais em seus projetos, sendo reconhecida e premiada internacionalmente pelo seu trabalho de recuperação das áreas onde desenvolve as suas atividades”.

Sobre o/a autor/a

4 comentários em “Cartão-postal do Paraná, reserva da Escarpa Devoniana pode virar areia”

  1. Cezar Vavá De Castro.

    Lamentável TD isto quem vai sofrer é a natureza num geral e também gerações vindouras em minha região temos um deputado que estava a favor de liberar essa destruição pelas mineradoras mas tomara que não consigam sem recursos naturais não somos nada por isso nosso respeito a natureza sempre.

  2. Será que ainda existe algum político homem de caráter para pleitear contra esta mineradora? E eles já têm uma base na outra extremidade da devoniana, entre bairros de Santo Antônio, São Domingos, Rio Claro, pinhalzinho, Bom sucesso de itarare, vi umas placas indicando JUNDU, oq será estão fazendo por ali?

  3. JOSE CARLOS MORETES

    Quando a vida em cima da terra perde o valor , eles procuram no subsolo acreditam que existem riquezas, tesouros enterrados , nas montanhas e no fundo dos mares , a capacidade do homem em degradar não tem limites , No que isso vai deixar o Paraná mais rico. A verdade é que a areia de fundo de rio acabou, e agora estão focando nos barrancos, e nas montanhas e as escarpas estão na mira , até as pedra ferro já viraram areia, o tal pedrisco ou pó de pedra produto novo em substituição a areia na construção civil , mas nada comparado com esse arenito rico em sílica , para a indústria fina de vidros temperados então a pressão é grande e continuada e como eles trabalham com planejamento a longo prazo e nós humanos somos de curto prazo é possível que o primeiro planalto seja no futuro só um tobogã.

  4. Vamos liberar geral para dar o golpe final de misericordia, este paraiso nunca mais sera o mesmo. Primeiro veio a ferrovia que quase aniquilou com a araucaria nativa da região, agora chegou a agroindustria que polui os rios matando os peixes e anfibios com seus agrotóxicos e ninguem se manifestou. Então agora o golpe final que é a mineradora que vai transformar esse lugar em um deserto. ´Parabens vamos lá politicos , deixaremos um legado sombrio para nossos filhos e netos.

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