A chegada do skate em Curitiba: as tribos de bairro, os perrengues e os primeiros campeões

Um dos primeiros skates de que se tem notícia em Curitiba apareceu no começo da década de 70, quando Fernando Johnson desmontou alguns patins e prendeu as rodinhas em tábuas de madeira

Antes de ser um esporte olímpico, o skate já fazia parte da vida de milhares de pessoas dentro e fora do Brasil. Em Curitiba não era diferente. Considerada por décadas a capital do skate, a cidade paranaense foi, e continua sendo, berço de inúmeras competições, pistas, circuitos, marcas e campeões. 

Nos próximos dias, o Plural irá publicar uma série de três reportagens sobre a cultura do skate em Curitiba desde as primeiras aparições da prática na cidade até os dias atuais. Essa primeira reportagem é um pouco da história e do legado dos pioneiros no skate.

1970

Em 1970, mais de 50 anos antes das Olimpíadas de Tóquio, ainda não existiam skates em Curitiba. Fernando Johnson, então com nove anos, só tinha acesso ao mundo do skate por meio da Skateboarder Magazine, uma revista norte-americana veiculada entre 1964 e 2013. Foi então que, junto dos amigos do bairro, Fernando decidiu desmontar alguns patins e prender as rodinhas em tábuas de madeira, construindo os primeiros skates da cidade no quintal de casa. 

Assim surgiu a turma de skatistas do Bom Retiro, em 1971, formada por Fernando, os irmãos André e Francisco de Paula Soares, Newton Roberto Teixeira de Castro, o “Coroa”, Carlinhos e Marquinhos Viti, Luís Fernando Zgoda e Marcelo Linhares Frehse, o “Manco”, que continuam amigos até hoje. Quem conta é o próprio Fernando, aos 59 anos e carregando o título de presidente da Associação Paranaense de Desenvolvimento da Cultura e da Prática do Skate (Pra Skate). “O skate é o meu legado para a sociedade. O skate é uma família, é irmandade, união.”

Um recorte de jornal de 1975 dá ideia do tamanho da novidade que o skate era à época. Skatistas da rua Manoel Eufrásio, no Ahú de Baixo, pediram ao Diário do Paraná que explicasse aos leitores o que era um skate.

Diário do Paraná, edição de 15 de julho de 1975

No início, as tribos, como eram conhecidos os grupos de skatistas, se reuniam para andar nas ruas da capital. Uma das mais famosas era a Carmelo Rangel, no Batel, que logo se tornou um ponto de encontro importante dos skatistas. Por conta do íngreme declínio que formava a via, os adolescentes conseguiam praticar o downhill, uma das modalidades mais conhecidas na época, que consiste na descida de ladeiras na maior velocidade possível.

Em 1977, a poucas quadras da Carmelo Rangel, um amigo de Fernando teve a ideia de esvaziar um tanque de areia de formato circular que ficava na Praça da Ucrânia para criar a primeira pista improvisada de skate de Curitiba, a Panelinha. O local, no entanto, foi aterrado e é hoje uma floreira. 

Fernando na Pista do Gaúcho, em 1978. Foto: Arquivo pessoal

Durante anos, as tribos construíram não só seus skates como suas próprias pistas, rampas e obstáculos – muitas vezes com a ajuda dos pais – em terrenos baldios ou no fundo das casas. Utilizando tapumes, placas de compensado, madeira e pregos, os jovens montavam paredões com inclinação de 45º, que logo evoluíram para 90º, originando a modalidade vertical em Curitiba – praticada em uma pista no formato de U, conhecida como halfpipe

Enquanto o grupo de Fernando andava pelo Bom Retiro, outros bairros da cidade também começavam a ter suas ruas preenchidas por skatistas. No Ahú, por exemplo, formava-se a turma Oahu Skateboarding, com os integrantes Kico Westphalen, Luis Eduardo da Silva Wolff, o “Liba”, Estácio Seixas, Marco Antônio Campos, o “Negretty”, Carlos Caldart e Daniel Belloti, o “Jacaré”. 

Quem também fazia parte desse grupo era Maria Elaigne Ferreira, a primeira mulher a andar de skate em Curitiba e primeira vice-campeã brasileira, tendo conquistado o segundo lugar na categoria de velocidade do Primeiro Campeonato Nacional de Skate, em 1976.

Maria Elaigne no pódio em segundo lugar. Foto: Arquivo pessoal

Maria Elaigne conta que conheceu o skate em 1972, aos 12 anos, quando um menino canadense se mudou para o prédio onde ela morava. Trazia consigo um skate, que logo chamou a atenção de Maria Elaigne. “Na época eu andava de patins e fiquei louca pra andar de skate. Foi muito legal, aprendi de primeira. E daí em diante era todo dia.”

O lugar preferido da garota era o Parque São Lourenço, um dos poucos picos da época, ocupado pelos praticantes de carrinho de rolimã. Lá, os skatistas tentavam as manobras “hang-ten”, “hang-five” – vindas do surf -, 360º e a parada de mão, conhecida como bananeira. Foi lá, inclusive, que aconteceu o primeiro campeonato de velocidade de skate da cidade, em 1976, o Torneio Cidade de Curitiba.

No entanto, por se caracterizar como uma nova identidade cultural rebelde e transgressora, a prática do skate foi, desde o começo, marginalizada e reprimida. “Na real, as pessoas achavam que éramos uns maloqueiros. Pelo modo de se vestir, andar em bando. Mas nada disso acontecia. Era paz e amor e muito skate pelas ladeiras de Curitiba”, conta Maria Elaigne, hoje aos 61 anos. 

Maria Elaigne, em 2020. Foto: Arquivo pessoal

Ainda nos anos 70′, pressionada pelo crescente número de skatistas na cidade, a prefeitura construiu as primeiras duas pistas públicas de Curitiba: a Pista do Gaúcho, que ganhou o nome em função da sexagenária Sorveteria do Gaúcho, localizada na Praça do Redentor; e a Pista do Jardim Ambiental, que fica na Rua Schiller, esquina com a Rua Itupava. Ambas inauguradas em 1978. 

Pista do Gaúcho em 1977. Foto: Divulgação/Exposição Curitown

1980

A partir dos anos 80′, a cultura do skate começava a formar uma identidade estruturada e junto com ela surgia, gradativamente, uma indústria voltada à cena do skate. A década de 80′ foi fortemente marcada pela ascensão de marcas – como a Maha, criada em 1977 pelo curitibano Marco Antônio Cunha Imaguire, o “Maguila”, e a Nitro, de Luiz Cesar Ferreira, o “Cesinha”, em 1981 – que fomentavam a cultura do skate não só por meio dos produtos mas também de campeonatos e competições. 

Em Curitiba, as disputas nos circuitos fizeram com que as rampas e os halfpipes passassem a fazer sucesso, se tornando cada vez mais comuns na cidade. Como a construção dos halfs era mais complexa, os skatistas costumavam montar rampas na borda da pista do Gaúcho ou em terrenos abandonados. Um dos mais famosos foi o halfpipe que Márcio Coraiola criou em 1982, no Bom Retiro, onde hoje fica o Supermercado Condor, na rua Nilo Peçanha.

Em 1986, a prefeitura mandou construir o Half do Velódromo, no Capanema, considerada a maior estrutura de vertical do Brasil na época. Foi nesse half que Humberto Ramos do Prado, o “Pepeu”, desenvolveu manobras inéditas, se tornando o primeiro skatista profissional da cidade.

Pepeu, em 1986. Foto: Arquivo pessoal

Embora tenha nascido em Curitiba, como o pai de Pepeu fazia parte das Forças Armadas, a família costumava se mudar frequentemente. Em 1978, no caminho de volta de Porto Alegre para sua cidade natal, Pepeu passou pela Pista do Gaúcho e viu pela primeira vez o que se tornaria a paixão de sua vida. “Fiquei doido. Enchi o saco do meu pai para comprar um skate pequenininho como aqueles de antigamente. Então comecei a andar na calçada de casa”, conta.

Aos 20 anos, Pepeu trancou a faculdade e começou a correr campeonatos amadores, alcançando o primeiro lugar do pódio em todos eles. Quando passou para a categoria profissional, o skatista relembra que terminava sempre entre os 10 melhores do país. “Não me arrependo de nada. Hoje em dia o skate só me traz felicidade.” 

Hoje, policial aos 53 anos, Pepeu surfa mais no mar do que no asfalto, mas relata que nunca parou por completo, está o tempo todo subindo e descendo do shape

Para ir além

A cultura do skate em Curitiba é diversa, multifacetada e permeada por muitos nomes que não puderam estar presentes nesta série de reportagens. Com esta série que começa aqui, o Plural não teve a intenção de esgotar todas as facetas e espectros da identidade do skate na cidade. O texto é apenas um arranhão da superfície desta história múltipla e plural que é a história do skate e sua relação com cidade. 

Por isso, a reportagem buscou o historiador e fundador da Máquina de Escrever Editora – uma produtora de conteúdo voltada para pesquisa e publicações sobre a história cultural de Curitiba -, Victor Augustus Graciotto Silva, que em 2018 produziu o documentário “Curitown”, a respeito da origem do skate na capital paranaense.

Victor conta que a ideia para o longa metragem surgiu de dentro da família. “Foi meu sobrinho que realmente vivia do skate, respirava skate, que me inspirou a olhar com profundidade essa cultura e registrar isso de uma forma que a gente não perdesse essa memória. Eu comecei a reparar como o skate tinha uma presença tão forte na juventude, como tinha muito preconceito envolvido e como a gente não sabia das coisas.”

Depois de finalizar o trabalho, o historiador relata que entendeu que o skate é mais do que um esporte, lazer ou meio de transporte. Skate é uma cultura que envolve costumes, comportamentos, moda, roupas, músicas, fotografias, estilo de vida e identidade. “Eu tinha uma ideia do skate antes de fazer o projeto. Depois eu vi que é mais do que isso, não deixa de ser diversão, mas é também uma identidade cultural muito forte, um patrimônio.”

Além do documentário, o projeto resultou em uma exposição realizada no Museu Municipal de Arte de Curitiba (MuMA), em 2018, e em um livro homônimo. De acordo com Victor, a ideia este ano é estender a pesquisa para a história do skate no Paraná, abordando outras cidades como Londrina, Maringá e Cascavel. O novo projeto renderá um livro e uma websérie dividida em diversos episódios que ficará disponível no Youtube.

Assista o documentário Curitown no Youtube:

Reportagem sob orientação de João Frey

Sobre o/a autor/a

15 comentários em “A chegada do skate em Curitiba: as tribos de bairro, os perrengues e os primeiros campeões”

  1. Edmar Franco Da Luz - Dego

    Áureos tempos , as rodas de poliuretano, não eram tão acessíveis, lembro de ter ido comprar da marca “ Wave Park “ em uma loja que revendia peças de trator na 7 de setembro.

  2. Muito legal!!!! Com 17 anos eu andei muito no Ambiental, ali esquina da Itupava. Por volta de 1982 eu constriu um half pipe dentro da Vila dos Oficiais da Aero no Bacacheri… o Pepeu morava lá tambem!!! O apelido dele de pia era Bola, que amigo sensacional ele era. Nos andamos muito nesse meu half pipe. Outra lembrança do fim da decada de 70 eram os truck Wallace Bull, que eram feitos em Curitiba e comprei um par na casa do cara ali no Seminario. Ate hoje tenho o skate do jeito que montei por volta de 1986., com trucks que comprei do Pepeu premio de um campeonato que ele participou. Aurelio Backo

  3. Maria Cecília Zarpelon

    Olá pessoal, tudo bem? É muito bacana saber que a reportagem trouxe algumas memórias, tanto da cidade quanto do skate, de volta. Infelizmente, não foi possível abordar os nomes e as histórias de todos que fazem parte desse universo. Mas, pensando nisso, o Plural vai abrir um espaço para aqueles que quiserem relatar um pouco sobre quem são e sobre suas vivências com o skate. Quem se interessar pode encaminhar um depoimento, fotos e/ou vídeos (antigos e recentes) para o e-mail [email protected] que nos próximos dias iremos organizar e contar essas histórias! Abraços 🙂

  4. Mario Luiz Vendramini

    Bons tempos. Era da turma da Manoel Eufrásio. Fazia meus shapes e para colegas, na marcenaria de meu avô. Acho q fui o primeiro a quebrar o braço no São Lourenço, sobre o meu Torlay, comprado com a bolsa – salário de meu primeiro estágio. E das loucas descidas do Schaeffer, desde o Canal 4 até a frente do atual bosque Alemão. O skate serviu para forjar toda uma geração pioneira, numa Curitiba que não volta mais…

  5. Fernando José Johnson

    Gratidão pela oportunidade, contar o meu início e da piazada do Bom Retiro.. na certeza que tem vários ícones do skate, de vários bairros, assim como o nosso irmão Paulo S Urban (comentário acima) que tem muita estória da História do skateboard curitibano.. muitos como eu iniciaram no skate e depois foram ao surf… Esportes co-irmaos.. afinal o skate se originou do surf, é o que reza a lenda, será!? ou Não!?

  6. Boa noite.
    Tem mais gente que não foi relatada no texto. Tem o Ivan Carta. Vanderbill, Nescau, Marcolino, eu e tantos outros, mas tá valendo. O episódio praça ucrania foi gente da região que colocou a mão na massa para retirar a areia da bacia para formar o primeiro pseudo bowl de Curitiba, muitos carrinhos de mão eu puxei para podrt andar ali. Mas a história é linda e sem muito glamour, pois éramos sempre convidados a sair dali por conta do barulho. O Champagnat nunca mais foi o mesmo.

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