Mulamba, 2,8 milhões de vezes Mulamba

Seis mulheres conquistaram uma geração com uma música que mistura melodia, crítica social e uma boa dose de solidariedade. Cris Castilho conferiu o último show da Mulamba.

Sábado, 26 de janeiro. O bis da banda Mulamba acaba e uma fila de fãs serpenteia com empenho para tentar contato com aquelas minas. É que elas promovem e difundem, mais do que arte e entretenimento, crítica social embasada e acolhimento para quem sabe o que é ser mulher num país que registra um feminicídio a cada duas horas.

Historicamente, a crítica musical brasileira subjuga narrativas sociais contemporâneas de artistas ainda não “consagrados” à análise estética, sempre mutante e subjetiva. Em alguns casos, a forma de produção millenial da indústria fonográfica (singles efêmeros, clipes sem aviso, memes como forma de divulgação e resenhas preguiçosas) fazem de possíveis músicas simbólicas e representativas apenas uma brisa fugidia. A banda Mulamba parece ter invertido, de maneira naturalmente engajada e musicalmente competente, a ordem das coisas. Ao menos por enquanto.

Formado em 2015 em Curitiba como um grupo cover de Cássia Eller, a Mulamba apresentou a cerca de 60 pessoas naquele sábado o show de seu primeiro álbum, homônimo, gravado no estúdio Red Bull Station, em São Paulo, e lançado em novembro de 2018. Elas eram maioria. Garotas de cabelo colorido estampavam camisetas com frases empoderadoras; casais de meninas trocavam selinhos antes da apresentação; e guris já vestiam samba-canção para emendar algum bloco de pré-carnaval logo depois. Caberia mais gente, não fosse o irônico e simbólico espaço em que se meteram: o Paço da Liberdade.

O cruzamento de dois mundos

Construído em 1916 e sede da prefeitura de Curitiba até 1969, o prédio de arquitetura art nouveau esbanja imponência e sobriedade. Em sua fachada, estátuas, armas e o brasão do município traduzem o poder político local. No teto da sala de atos, onde aconteceu o show, pinturas paranistas de João Ghelfi, João Ortali e Anacleto Gaubaccio entraram em interessante e bem-vindo conflito com o seminu da violoncelista Fer Koppe.

“Foi muito estranho. É um lugar meio palaciano. Não se pode tocar em nada, sentar em nada”, disse Cacau de Sá, uma das vocalistas. “Me parece que é um lugar para poucos. Mas tocamos onde der. O que importa é a mensagem”, completou a também vocalista Amanda Pacífico, que de certa forma representa a Mulamba ao aliar assertividade, atenção e sensibilidade na mesma medida.

Completam o time Mulamba Caro Pisco (bateria), Érica Silva (baixo, guitarra e violão) e Naíra Debértolis (guitarra, baixo e violão). Em sintonia não deliberada com as novas formas de consumo musical, o sexteto ganhou grande visibilidade em 2016, quando lançou no YouTube o clipe da música “P.U.T.A”, sobre violência contra as mulheres – já são mais de 2,8 milhões de visualizações. A sacada foi perceber que no confuso mercado musical brasileiro faltava representatividade sincera. Minas falando para minas sobre tudo o que está aí.

“As músicas surgem de maneira orgânica. Contam um pouco do que vivemos no nosso cotidiano. Em 2016 uma mulher foi esquartejada no Centro Cívico, em Curitiba. Aí descobriram que era uma moradora de rua e ficou por isso mesmo. São histórias que permeiam nossa vida”, diz Amanda, referindo-se ao assassinato brutal de Julia Alvarenga Fornimazo, de 37 anos.

Consultório sentimental improvisado

Por isso, fãs da Mulamba se sentem à vontade para estabelecer uma relação horizontal com a banda por meio das redes sociais, que se transformam num consultório improvisado. Ali denunciam e desabafam, o que reforça a importância do grupo como um porto seguro, não só feminista, mas radicalmente humano.

“Várias meninas nos procuram para dizer que foram estupradas. Alguns meninos também mandam mensagem para dizer que estão em depressão. Nós conversamos, simplesmente. Sabemos que falamos o que muita gente reprimida pela sociedade gostaria de falar”, diz Amanda. “Às vezes nem nós temos suporte ou estrutura para amparar estas mulheres. Porque também estamos em transformação.”


Guitarrada, cúmbia, MPB, samba, gospel, rap, funk e “bagaceiras”, às vezes com o toque erudito do cello de Fer Koppe, perfazem a geleia sonora urbana-engajada da Mulamba. Intervenções poéticas também são predileções da banda que, com o primeiro disco, entrou em diversas listas de melhores lançamentos nacionais de 2018.

Foram nove faixas gravadas, entre elas uma versão de “P.U.T.A” em parceria com Ju Strassacapa, da banda Francisco, el Hombre; “Desses Nadas”, na companhia de Lio Soares, da banda Tuyo (que dividiu o palco com a Mulamba no show daquele sábado); a visionária “Lama”, sobre a tragédia humana e ambiental em Mariana (MG); “Vila Vintém”, sobre a violência policial; e a instrumental “Tereshkova”, cujo título se refere à cosmonauta russa Valentina Vladimirovna Tereshkova, primeira mulher a viajar pelo espaço.

O que vem por aí

A próxima composição é um sintoma da essência artística visceral deste grupo, que a cada dia ganha mais importância e reconhecimento – elas participaram de diversos festivais pelo país e estão escaladas novamente para o Psicodália, evento multicultural que acontece no carnaval em Rio Negrinho, Santa Catarina.

“Em breve lançamos a música ‘Dandara’, sobre violência contra travestis e homossexuais. No Psicodália vamos fazer umas marchinhas, porque é hora de marchar!”, sorri Cacau, ironicamente colocando a mão estendida na testa como se cumprimentasse um capitão recém-aparecido.

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