“Karaíba”: a sobrevivência indígena no palco do Festival de Curitiba

Espetáculo usa a arte para provocar a reflexão sobre o genocídio indígena e para promover o reconhecimento da identidade dos povos originários; até mesmo quando esse reconhecimento precisa acontecer no espelho

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“Karaíba” conta uma história sobre a chegada dos portugueses ao Brasil, mas na visão dos povos originários e colocando os “descobridores” no seu devido lugar, monstros, que segundo um sonho premonitório de um sábio – o Karaíba – destruirão tudo e todos, e três aldeias precisam decidir como enfrentarão o inimigo. O espetáculo musical é baseado no livro infantojuvenil “O Karaíba: uma história do pré-Brasil” (2018), do escritor e ativista indígena Daniel Munduruku, mas a montagem que chega ao Festival de Curitiba ampliou o público para todas as idades. 

Apesar de falar de um pesadelo que se repete até hoje, do genocídio dos povos indígenas (inclusive identitário e cultural), a mensagem de resistência de “Karaíba” tem o toque tranformador do teatro, conforme explica o diretor Rafael Bacelar sobre o desafio de transformar o livro de Munduruku em uma obra cênica. “O livro é denso, é difícil; fala-se muito sobre morte, sobre luto, sobre guerra, sobre esse fantasma colonial que chega para cumprir com o que a gente sabe que é o genocídio no Brasil. É como fazer uma peça sem ter que falar disso o tempo inteiro?”, diz Bacelar. O diretor curitibano também desenvolve trabalhos com o projeto Capela, que envolve artistas declarados indígenas de São Paulo-SP e de Belo Horizonte-MG.

Jéssica Meireles, atriz do espetáculo, conta que o primeiro contato com a idealizadora do projeto, Juliana Gonçalves, foi para esclarecer se a produção era restrita para atores aldeados ou se autodeclarados em contexto urbano poderiam atuar na equipe. “Eu sou uma mulher indígena autodeclarada, que é o resultado desse apagamento, dessa diáspora que aconteceu dentro do Brasil”, fala Meireles. 

Leia aqui a série de reportagens do Plural “Contra os indígenas”, que mostra como o sistema carcerário desrespeita a legislação e maltrata os povos originários no Paraná.

O reconhecimento da identidade e de pertencimento ao povos originários que a peça também propõe, mesmo que não de maneira óbvia, remete a questões sociais como a descaracterização étnica das pessoas indígenas, os crimes sofridos, e o descompasso que existe entre as regras do Estado e as das aldeias. Por isso perguntamos à equipe de “Karaíba” como a arte pode ajudar a quebrar esse ciclo de opressão, apagamento e violência. 

“Você já comeu gente, já comeu macaco?”

Yumo Apurinã, ator nascido em Rondônia, é filho de um Apurinã do estado do Amazonas e de uma mulher não indígena. Cresceu convivendo com seus parentes em aldeias e também em contexto urbano, com seus pais o ensinando a ter orgulho de quem ele é, mas a chegada na escola colocou em xeque sua identidade diante do racismo existente ali. Eram piadas e perguntas como “você já comeu gente, já comeu macaco?”, que despertaram nele o desejo de negar suas vivências e ancestralidade. 

Ele mora no território onde está a maior reserva de diamantes do Brasil, onde os conflitos são frequentes. “A gente é visto como assassinos, então quando cheguei na cidade eu disse ‘não quero ser visto dessa forma'”. O ator conta que outro ponto abalou o reconhecimento como indígena: o que era mostrado pela professora nos livros de história. Ali era ensinado o estereótipo. 

O teatro como salvação

A arte mudou esse cenário, Apurinã escreveu e atuou em uma peça contando a história de seus pais e sobre terras invadidas. “O teatro estabeleceu um encontro comigo mesmo, com a minha própria identidade”, diz ele explicando que as artes, o cinema e o teatro despertam sonhos no público. “A possibilidade de transformação de uma sociedade é quando o indivíduo começa a sonhar e querer transformar sua vida”. 

Jéssica Meireles considera que o sonho, o projetar o futuro, é intrínseco ao conceito de ser humano. A presunção de que os indígenas não têm direito a isso resulta na descaracterização como humanos, torna-os seres sem alma, assim, não há uma ideia de punição divina quando são assassinados, torturados e escravizados. “O processo ainda é tão intenso que a gente precisa provar que somos humanos, que somos gente, que estamos vivos. Parece que esse imaginário do índio, que foi colocado, é muito selvagem; é alguém que precisa ainda ser doutrinado, que precisa ser civilizado”, afirma a atriz. 

Os povos indígenas, não só do Brasil, são organizados e têm sistemas políticos. Ela continua explicando que, sim, eles possuem táticas de guerra, mas – acima de tudo – têm ética: “Têm um código moral que não permite o massacre do outro, como se não fosse vivo e não tivesse sonhos”. E isso está no palco com “Karaíba”. As lutas justas desses guerreiros, no passado e no presente, é um dos pontos do livro de Munduruku que está na dramaturgia desenvolvida por Idylla Silmarovi para a montagem.

“O pardo é uma violência”

A questão identitária também ainda passa por outros pontos, a titulação ou autoidentificação como pardo é um deles. “O pardo é uma violência”, segundo opinião do escritor e líder indígena Ailton Krenak, com a qual Meireles afirma concordar. Ela explica que não se trata de culpar os indígenas que se consideram como tal porque, em muitos casos, é a única saída para se identificar no mundo. Mas sim de apontar que quando nas diferentes esferas sociais o indígena passa a pardo, está se fazendo um apagamento. 

 “É como se ter um celular fosse me fazer deixar de ser indígena”

O ator Danilo Canindé também fala sobre a violência que se enfrenta no processo de autodeclaração. Segundo ele, apesar de não existir caminho de volta a partir do reconhecimento de sua identidade, é preciso sempre se reafirmar. “É como se ter um celular fosse me fazer deixar de ser indígena, só porque eu peguei o celular. É como se ter um fio de barba, porque imaginam que o indígena não tem pêlos no rosto, possa me fazer deixar de ser indígena a qualquer momento”, diz ele. Apesar de sutis, essas situações são enfrentadas todos os dias, conta ele e finaliza: “Se autodeclarar [indígena], não é uma opção. É a única forma de se manter vivo.”

Canindé ainda fala que o processo de autoconhecimento é individual, contudo passa pelo coletivo mesmo. Ele vivenciou a experiência de ao longo de sua vida ouvir da mãe que sua bisavó era indígena, que era a cara de seu avô e, mesmo assim, só aos 20 anos de idade passou a se enxergar verdadeiramente como uma pessoa de um povo originário. “É isso, “Karaíba” é também essa possibilidade de se enxergar pela primeira vez”.

“Karaíba”, no Festival de Curitiba

Espetáculo musical com sessões no Festival de Curitiba nos dias 28 e 29 de março, às 20h30, no Teatro Sesc da Esquina (R. Visc. do Rio Branco, 969). Para outras informações, clique aqui. Programação e ingressos no site do Festival de Curitiba.

Ficha técnica do espetáculo no Festival de Curitiba

Idealização: Juliana Gonçalves. Direção: Rafael Bacelar. Dramaturgia: Idylla Silmarovi. Assistente de direção: David Maurity e Marcus Liberato. Direção de Produção: Juliana Gonçalves. Produção executiva: Marcus Liberato. Assistente de produção: Tainá Campos. Elenco: Danilo Canindé, Jéssica Meireles, Ludimila D’Angelis e Yumo Apurinã. Atriz convidada/voz off: Carolina Virgüez. Direção de arte: Winona Evelyn. Direção Musical: Felipe Estorino. Iluminação: Lilian da Terra.

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