“Inventando Anna” premia a canalhice com uma boa história

Numa lógica em que o dinheiro é um fim em si mesmo, série de Shonda Rhimes absolve golpista que roubou milhares de dólares em Nova York

Se tem algo que o passar do tempo documenta com rigor é o apreço humano por boas histórias. E sua consequente consagração de pessoas estúpidas à fama. Não é uma novidade do mundo 100% on-line, dos tuítes e posts de Instagram que viralizam. Mas tem lá suas particularidades graças ao jeito particular com que a vida em redes sociais e as manchetes virais criam e destroem reputações com base em pirâmides de areia.

A história de Anna Sorokin – a.k.a. Anna Delvey – tem tudo para ser um daqueles contos de fada que contamos para as crianças para instigar nelas alguns medos úteis. “Olhe só o que pode acontecer quando nos deixamos enganar pelo estranho bondoso”, dizemos. “Quando aceitamos o doce da velhinha, quando a autoridade é sovina e pensa só em si mesma.”

Como a história recente nos mostra, é uma lição que insistimos em não aprender.

Mas calma aí. Antes de mais nada é preciso saber, afinal, quem é Anna e por que a rainha do binge-watching na Netflix decidiu se dedicar a ela. A série inteira é baseada na reportagem de Jessica Pressler sobre a prisão e as dez acusações de roubo, furto e tentativa de furto contra Anna Sorokin publicada em 2018. Sorokin foi presa em 2017 depois de dar calote em diversos hotéis de luxo em Nova York, por ter “emprestado” sem pagar um jato particular, por ter gastado mais de US$ 60 mil nos cartões de crédito de uma amiga, por ter passado inúmeros cheques sem fundos e por ter fraudado documentos para tentar emprestar milhões de diversos bancos (e conseguido pelo menos US$ 100 mil em crédito com isso).

O lema

O modus operandi de Anna é perfeitamente resumido por Todd no seriado: ela estava vivendo o lema dos nossos tempos: “fake it until you make it” (algo como: finja até que se torne real). Vestida em roupas de grife (nem sempre compradas com recursos próprios), Anna convenceu um bocado de gente milionária em Nova York de que ela era de uma rica família alemã e herdeira de um fundo fiduciário que somava 60 milhões de euros. Óbvio, os pais eram convenientemente distantes e Anna estava tentando se estabelecer sozinha.

Com essas credenciais, se misturou com gente realmente cheia de dinheiro, frequentou restaurantes, lojas e festas exclusivos. Mas, principalmente, promoveu uma série de fraudes para obter dinheiro e com isso chegou a ser considerada para um financiamento de US$ 20 milhões que iria permitir o estabelecimento de uma Fundação Anna Delvey, um clube superexclusivo sediado na Park Avenue, um dos endereços mais caros de Manhattan.

A farsa era tão completa que Anna, tendo conhecido o sócio de uma empresa de locação de jatos particulares, conseguiu usar uma aeronave para viajar sem pagar um centavo. E conseguiu um crédito de US$ 100 mil em um banco que usou para manter outro banco analisando a possibilidade de conceder a ela um empréstimo de milhões.

O limite

O problema é que, eventualmente, Anna chegou ao limite de amigos que podia enganar, cheques sem fundos que podia passar e hotéis que podia enrolar. O que ela decidiu fazer? Convenceu duas amigas e um cinegrafista a irem para o Marrocos, onde passariam férias com a conta supostamente paga por ela. E uma das amigas, que não era rica, acabou com uma conta de US$ 62 mil no cartão de crédito e uma promessa de que seria ressarcida antes de precisar quitá-la.

Essa história toda está em “Inventando Anna”, mas Shonda Rhimes vai além: transforma a canalhice em algo digno de pena e as pessoas que são afetadas por ela nos verdadeiros vilões.

Esse tom é consagrado na cena do último episódio do programa em que a jornalista Vivian Kent e o advogado Todd Spodek lamentam o sucesso que vão ter graças ao envolvimento deles com Anna, enquanto ela vai passar 12 anos na cadeia (Anna acabou cumprindo apenas 4 anos, mas voltou a ser presa por extrapolar o prazo de estadia nos EUA previsto no visto dela). O único problema: Anna foi condenada por crimes que realmente cometeu, enquanto Todd e Vivian colhem os louros de terem desempenhado com competência o próprio trabalho (defender Anna na Justiça no caso de Todd e contar a história dela com precisão no caso de Vivian).

Claro, é da natureza da televisão fazer concessões ao pegar uma história real e fazer dela bom entretenimento. Rhimes é conhecida por ser competente nisso: ela cria obras que seguram o público do primeiro ao último capítulo. “Inventando Anna”, não há como negar, é uma obra perfeita desse ponto de vista. Difícil largar um episódio antes do fim.

A brincadeira

Mas não é uma obra completa de ficção. Na vida real, Vivian Kent é a jornalista Jessica Pressler, que compartilha vários dos detalhes da vida de Kent (Pressler trabalhou como produtora da série) e Todd realmente é o nome do advogado de Anna. A própria série brinca com a mistura entre o real e o fantasioso, declarando no início de todos os episódios que é uma “História real, exceto pela partes completamente inventadas”.

Quem, como eu, trabalha diariamente no pântano que é buscar a verdade num mundo em que as forças que promovem a mentira são muito mais intensas, sabe que toda mentira eficiente é sempre, em parte, verdade.

Rhimes, porém, consegue criar uma protagonista completamente insuportável, grosseira e inconveniente que inspira empatia (algo parecido com o que fez em “Anatomia de Grey”, outra de suas séries de sucesso). Ela é só uma menina, repetem diversos personagens. Não é o que o mundo espera dessa geração? Que se invente e tente construir algo?

A desculpa de Anna era ter tentado construir o tal clube superexclusivo. Parte do esforço de apuração de Kent é justamente para descobrir se Anna entendia desde o começo que seus planos não tinham a menor chance de se concretizar, afinal dependiam de um fundo milionário que nunca existiu.

A sacrificada

Nessa narrativa, o cordeiro oferecido para o sacrifício é a ex-amiga Rachel DeLoache Williams, cujas férias com Anna no Marrocos viraram um pesadelo. A certa altura, outra amiga questiona a suposta deslealdade de Williams para com Anna, que estava presa, depois de ter se aproveitado por meses da generosidade dela em jantares, aulas particulares de ginástica, presentes e drinques.

O único problema: a “generosidade” de Sorokin era patrocinada por terceiros alheios a caridade que estavam fazendo e era parte justamente do personagem criado por ela para enganar tanta gente. Williams só foi para o Marrocos porque acreditou que a amiga teria condições de pagar pela viagem e só entregou o cartão porque tinha certeza de que ela, no fim, quitaria o débito.

Na teia de relações sociais entre pessoas de situações econômicas diversas, muitas vezes quem não é rico se vê em situações em que manter a relação implica em gastos que, do ponto de vista racional, não são possíveis. Oras, a própria indústria da moda é quase inteiramente construída em cima dessa vontade que temos de pertencer a grupos, mesmo quando nossa condição financeira não permite. Faz sentido gastar mil reais numa bolsa? Quase dez mil num celular? Outros cinco no casaco de grife?

A situação de Williams é perfeitamente compreensível. Ela foi tola? Superficial? Até se aproveitou da amizade de Anna? Sim. Mas não é ela a vilã. Não é ela a criminosa. O único crime dela é o de se distrair com coisas brilhantes. Mesmo assim, em “Inventando Anna”, Todd aparece “demolindo” a personagem porque ela ganhou mais de US$ 300 mil vendendo os direitos da história para a revista “Vanity Fair” e a HBO e escrevendo um livro sobre o assunto. Limões em limonada, né não?

Anna, ao contrário, tem mais em comum com outros vilões famosos da história recente. Notadamente Elizabeth Holmes, a menina prodígio do Vale do Silício que convenceu dezenas de nomes fortes da tecnologia e das finanças a investir na Theranos, sua empresa que prometia fazer centenas de diagnósticos a partir de uma única gota de sangue. E Billy McFarland, criador do infame (e também tema de um documentário popular na Netflix) Fyre Festival. Este último é retratado na série como alguém com quem Anna morou brevemente e depois citado quando o Festival apareceu nas manchetes não como um grande evento, mas sim como um golpe.

Holmes e McFarland compartilham do destino de Sorokin. A ex-startupeira foi condenada há 20 anos de cadeia, já McFarland foi preso e condenado em 2018. A história de Holmes pode ser lida no livro “Bad Blood” e vista num documentário da HBO.

O sonho

Os três, Holmes, McFarland e Sorokin, “tinham um sonho”, para usar a frase icônica. Acho que o problema aqui era, afinal, que tipo de sonho era esse. A História está cheia de sonhos que realmente mudaram e mudam o mundo. Martin Luther King sonhou com o fim da discriminação racial, um sonho que levou ao fim da segregação racial no sul dos Estados Unidos, ao fim do Apartheid na África do Sul e à luta permanente dos negros contra a violência racista. O mundo é melhor porque dr. King existiu, e sonhou, e fez.

O sonho de Sorokin e afins é diferente. É um sonho de luxo, de privilégio, de riqueza. Uma riqueza que tem seu fim em si mesma. Claro, o dinheiro realiza sonhos. O próprio King e seus seguidores entenderam que não bastava a liberdade aos negros. Eles deveriam poder sonhar, comprar suas casas, ter empregos bem remunerados, andar de carro e viajar sem medo de não encontrar um hotel que os aceitasse.

Mas, para os negros, o dinheiro é um meio. Para Sorokin, o dinheiro e só o dinheiro é o fim. O castelo dela era oco e se desmanchou. Sonhadores como ela não deixam nada além de ressentimento e um mundo pior.

O problema

Quando a jornalista fictícia Vivian Kent é questionada sobre o tema da história que está apurando, ela diz que é sobre mobilidade social, sobre os EUA de Trump, sobre imigração. Claro, todo jornalista quer encontrar aquela história que é fundamental justamente porque toca em muitos nervos expostos da sociedade. Aquela matéria que, na terminologia do mundo instagramável, provoca “engajamento”, mas também acende a chama da dúvida e planta a semente da mudança no público.

O problema é que, nessa busca, frequentemente há atalhos que provocam o mesmo “engajamento”. É, curiosamente, o mesmo atalho de Anna Sorokin: o de sacudir objetos brilhantes diante dos olhos do público distraído. Ah, como é bom discutir, dissecar gente irrelevante que fala bobagem sem pensar. Mas no fim de todos os cliques, os comentários, a obsessão, o que fica?

Rhimes tem um toque mágico. O problema é que, no fim e lamentavelmente, quem continua raciocinando fica com um gosto amargo na boca que não desaparece.

Streaming

“Inventando Anna” está em cartaz na Netflix.

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