Uma frase para minha lápide

Se algum dia eu tivesse parado pra organizar as ideias desencontradas que me vão pela cachola em algo semelhante a uma filosofia de vida, ela poderia ser resumida em um único tópico: “não atravanque o corredor”.

Não é das coisas mais difíceis. “Não atravanque o corredor” é um pequeno guarda-chuva sob qual se abriga um punhadinho de códigos de boa convivência e civilidade.

Um exemplo bobo é uma das regras de comportamento que carrego comigo no transporte coletivo: se há dois bancos vagos lado a lado, eu jamais me sento no corredor; sento na janela. Assim, eu facilito o acesso ao assento para o próximo passageiro e evito que ele precise praticamente saltar sobre a minha cabeça para finalmente poder descansar o esqueleto.

(Como eu tenho um metro e noventa de altura, é ainda mais importante que eu evite que as pessoas precisem saltar sobre a minha cabeça.)

É uma miudeza, mas é um aborrecimento a menos para o pobre-diabo que subiu no ônibus depois de ter uma terça-feira terrível. Quero crer que assim colaboro para deixar o dia dele um pouco menos miserável.

Na semana passada, eu já estava perfeitamente acomodado dentro do ônibus quando as portas da estação tubo se abriram e o ligeirinho Barreirinha-Guadalupe desenrolou sua língua metálica com estrondo sobre a plataforma.

Um velhote e um garoto entraram.

O velhote não era tão velhote assim. Tinha uns sessenta anos e bigodões grisalhos alourados pelo fumo. O garoto era só um garoto, mochila nas costas, uniforme do Colégio Estadual, óculos no rosto e o semblante blasé de quem ainda acha que sua trajetória rumo ao triunfo final será uma linha reta.

(Estou absolutamente certo quanto a essa última observação, eu já tive aquela mesma cara insolente.)

Dois bancos estavam disponíveis, lado a lado, mais para o fundo do ônibus, bem longe dos lugares preferenciais. O velhote seguiu rápido e se sentou no assento do corredor. O garoto, logo atrás, pediu:

– Dá licença pra eu passar?

O velhote o olhou com um espanto genuíno. Parecia que o garoto o tinha mandado saltar pela janela e trocar os pneus do ônibus em movimento. Ele esperava desfrutar do espaço, um pequeno e ordinário feudo no transporte coletivo, e aquele garoto de cara arrogante estava impedindo isso.

Um velhote folgado, igualzinho aos folgados de todas as outras faixas etárias.

Foi uma bobagem, uma disputa idiota por um banco de ônibus, não durou mais do que cinco segundos, mas é o tipo de coisa que me causa um desgosto profundo, uma irritação surda, e dá mais uma volta no torniquete que estrangula a minha fé no ser humano. Um camarada que tenta evitar que alguém ocupe o lugar vago em um ônibus não tem a mínima condição de viver em sociedade.

Imagino como é que um sujeito desses sobreviveu a todos os vizinhos, colegas de trabalho, parentes, porteiros, garçons, funcionários de estacionamento e atendentes de loja que ele aborreceu na vida, criando sempre pequenos entraves, barreiras, contrariedades, minuciosamente polvilhando reveses pelo mundo.

Ninguém está imune a um dia ruim, e parece que os dias ruins se acumulam com cada vez mais frequência nesses tempos. Eu também sou impaciente, às vezes mentalmente irascível, e não raro traço planos de vingança infernais na minha própria cabeça contra alguém que acabou de me enervar.

No entanto, seguro a onda, respiro fundo, e mais uma vez explico educadamente à moça do telemarketing que não, eu não estou interessado nas maravilhas de seu novo plano de telefonia móvel; e não, não me importa que ele inclua, sei lá, um voo de asa-delta.

No fim, ela só está fazendo o seu trabalho. Alguém está bufando em seu cangote, forçando ela a me empurrar uma inutilidade qualquer. Não vou entrar no jogo, mas pelo menos posso fazer com que ela não se sinta ainda pior.

Acima de tudo, eu tento não atravancar o corredor, impedir você de pegar seu assento no ônibus e seguir em frente. Me parece algo perfeitamente razoável. Tenho dificuldades para entender quem tem dificuldades para entender isso.

Há pouco tempo, li “A arte de ser desagradável”, as memórias do jornalista e escritor norte-americano Jim Knipfel. (O livro não é novo, foi lançado no Brasil em 2010, mas sou um homem insatisfatório.)

Knipfel foi a mais detestável das pessoas em sua juventude. Um punk cachaceiro com tendências quase homicidas, dedicado integralmente a infligir danos físicos e emocionais a todas as pessoas cujas vidas ele pudesse alcançar. Um misantropo mesmo, mistura de Johnny Rotten com Átila, o Huno.

A velhice mudou a perspectiva dele, ao contrário do velhote que se recusou temporariamente a liberar a passagem de alguém no ônibus. E Knipfel dá a receita para que você não morra sendo um completo babaca e dedique alguma gentileza às pessoas: “Quanto mais você tenta, mas fácil fica”.

É uma boa receita. Simples e boa.

Tenho 32 anos e, pelo menos por ora, não fiz muito pelo mundo. Não tive filhos, não plantei árvores, não escrevi livros. Meu único legado é nunca ter sido o idiota que tenta impedir alguém se sentar no ônibus.

Se por acaso amanhã eu tropeçar em uma dessas calçadas de Curitiba e rachar a cabeça no meio-fio, escrevam em minha lápide:“Nasceu e morreu. Nesse meio-tempo, tentou desesperadamente não encher o saco”.

Sobre o/a autor/a

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