Nada mudou

Ao lado do prédio onde moro há um edifício desocupado, à espera de novos inquilinos. Trata-se de um edifício discreto, quase invisível. Poucos meses atrás, no entanto, alguém o escalou durante a madrugada, a fim de pichar seus últimos andares. Analfabeto que sou, nada compreendo do que foi escrito ali em cima, a não ser uma única frase em caixa alta, perfeitamente legível, e que me parece servir de título ao que seria uma longa mensagem cifrada: NADA MUDOU.

De manhã cedo, o sol ilumina aquele enunciado como um leitor que assinalasse num livro, com uma caneta marca-texto, a sua passagem favorita. Logo em seguida, um bando tagarela de papagaios surge do nada e se acomoda, aos berros, no terraço do prédio, bem em cima da frase. São seis, às vezes oito aves, todas gritando ao mesmo tempo. Desconheço o que tanto teriam a comunicar. Talvez discutam entre si, com a sabedoria e as limitações que lhes foram concedidas, as implicações políticas, filosóficas e/ou metafísicas do picho que emolduram de verde-amarelo. Não sei. Fato é que, se os entendemos ou não, pouca diferença faz. Estamos há anos, talvez séculos, nos habituando ao desentendimento. 

NADA MUDOU. Enquanto amanhece e passo o café, na cozinha, sempre penso na intenção do autor daquela sentença. Penso na estratégia que precisou elaborar para atingir o topo do edifício com um mínimo de segurança e estampar justamente ali, à vista de tantas janelas, a frase que, por alguma razão, lhe assomava tão importante, inadiável, irreprimível. Penso no momento em que, passando pela Rua XV, talvez num ônibus, talvez a pé, decidiu que aqueles ladrilhos mal lavados seriam o suporte ideal para o seu testemunho de desesperança, ou de conformação, ou de reafirmação, ou de desafogo. Calculo quantas semanas terá passado estudando as rotinas do lugar, a arquitetura sóbria do prédio alto e os materiais de que foram feitas e revestidas as suas pálidas paredes. Mas também penso no arquiteto que há não sei quantos anos desenhou o edifício, harmonizando suas cores, suas curvas e arestas. Quem sabe se também não o terá rabiscado durante uma madrugada de entusiasmo juvenil, sem jamais supor, contudo, que cada traço que riscava no papel, cada reta e cada ângulo de seu projeto, seriam esquadrinhados no futuro por um pequeno escalador noturno, um menino que, a seus olhos de profissional dedicado, pareceria então absurdo.

Sim, falei em menino porque, admito, é num menino que eu penso. Num homem muito jovem, embora eu saiba que posso estar errado. Pode ser que se trate de vários meninos, ou de uma menina solitária, ou então de um coletivo de meninas, ou de uma delegação mista de moços e moças sem medo. Só não consigo imaginar gente de meia-idade escalando prédios à noite com a urgente intenção de escrever, no topo da cidade, que nada, absolutamente nada, está mudando entre nós.

Gente de meia-idade, em geral, gosta de falar que as coisas mudam, que tudo está sempre se transformando. Envelhecem dizendo que a vida não é mais aquela, e morrem alegando não mais reconhecerem o mundo à sua volta, pois antes tudo era melhor e mais puro, e até mesmo a crueldade e a injustiça seguiam padrões mais compreensíveis. Isso até o dia em que alguém as contradiz. Acontece sempre, mas nunca estão preparadas. Certa manhã, abrem a janela de suas cozinhas e, enquanto esperam a água do café ferver, notam que, durante a madrugada, um menino escalou o edifício desocupado vizinho a seus prédios, e que ali em cima, em elegantes caracteres latinos, escreveu duas palavrinhas simples: NADA MUDOU.

Alguns, por essa contrariedade, sentirão ódio do menino. Outros sentirão dele uma inveja jamais admitida, um apetite pelo seu corpo funcional, pelo seu destemor, ou pela forma audaciosa que soube dar à sua raiva. Haverá inclusive quem o responsabilize pelo atual estado das coisas, pela deterioração das relações de respeito entre nós, e até o use como prova cabal de que, sim, tudo mudou, pois antigamente menino algum escalaria edifícios para deixar lá no alto, por escrito, a confissão de sua imaturidade. Afinal, a parte externa dos prédios pertencia apenas à chuva e ao vento ou, vá lá, aos lavadores de vidraça, aos pintores de fachada, aos trabalhadores do abismo.

Outros ainda dirão que o menino é louco, ou que é irresponsável, ou que é uma vítima, um incapaz, um idiota. Dirão que sua mera existência seria, por si só, um dos muitos indícios da falência moral de nossa época. Argumentarão que tal menino é cria do colapso de nossas ideias tortas de educação, que é filho do afrouxamento de nossa sanha punitiva, que é fruto de perniciosas doutrinações.

Mas o menino, a essa hora, enquanto seus muitos juízes assopram e bebericam seu café da manhã, já estará dormindo. Ou então planejando uma nova escalada. Porque um menino, não importa qual, não se deixa ler assim, tão facilmente. E porque não há ódio, ou reprimenda, ou autoridade que o impeça de fazer seus planos, que o desanime em seu desejo de querer subir e decretar qualquer coisa lá do alto, ou de simplesmente ir passear, no escuro, sobre o grande vazio que abriram sob os seus pés. Os meninos sempre foram assim.

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