Divagar devagar

Divagar e devagar são palavras que combinam, não só pela sonoridade. As boas divagações são vagarosas, assim elas conseguem costurar uns nexos que a pressa muitas vezes não deixa – a agulha se enfia nos dedos e largamos a linha para acudir os feridos. Divagar com pressa faz os pensamentos entrarem e saírem em fluxo rápido, entulhando a memória. E uma característica do nosso tempo é o das memórias entulhadas.

Depois do susto, acabei gostando de saber que um dos sentidos de divagar é “falar coisas sem lógica, desvairar, disparatar”. Às vezes uma divagação se perde nela mesma, vira esquecimento, permanecem reminiscências e olhe lá. Outras vezes – e essas são as melhores vezes – a divagação continua voando até esbarrar em outra divagação. No início tímidas, começam a criar um clima, sentam pra conversar e tal. Aí já viu.

Se eu fosse místico, entenderia o encontro entre divagações como um sinal cifrado do universo. Acabo tratando isso como uma parte importante do processo criativo. Que pode fazer nascer um pensamento novo. Ou pode dar em nada.

Eis que, divagando, perguntei: “a humanidade está produzindo tanta coisa! Mas por que mesmo?”. Foi uma divagação que me divertiu – e talvez diversão tenha a ver com cindir a versão oficial e conhecida, deixando nascerem outras versões, inesperadas. A di-versão – esse talho no concreto da Verdade – abre espaço para a versão escondida, o que leva à subversão, que me leva à flor do Drummond que fura o asfalto. Assim a cadeia de significantes vai deslizando, fazendo suas associações e eis que outra divagação surgiu aqui, ao vivo!

Retomo: eu estava deslumbrado com a inventividade humana, só que no meio da sombra do assombro um flash piscou perguntando “mas por quê?”. Uma pergunta dessas faz você se sentir um pouco bobo, com medo de parecer ignorante a si próprio e – principalmente, para um neurótico – ao outro. Eram bem essas as qualidades da minha divagação, que tinha tudo para não dar em nada.

Só que, num intervalo de menos de dois dias, em dois livros diferentes, encontro os seguintes raciocínios:

“Nossa espécie tem um problema de amnésia. Nós, os supermacacos que somos, estamos num ritmo bastante interessante, mas esquecemos por que seguimos nesse ritmo e para onde ele vai. Esse é o único tema interessante de conversação que deveríamos ter, em vez de falar do último carro, da última televisão, do último vestido ou do que quer que seja. Deveria ser uma pesquisa permanente, mas constatamos que é o último tema abordado na nossa sociedade”.

E, no dia seguinte, n’outro livro:

“O único objetivo, caso reste algum, é o de intensificar os meios enquanto tais. Assim, por exemplo, a economia liberal globalizada funciona com base num princípio de concorrência que proíbe que algum dia paremos para contemplar as finalidades do aumento incessante das forças produtivas. Independentemente do que possa acontecer e de quanto possa custar, é preciso desenvolver para desenvolver (…) sendo que ninguém mais sabe dizer ao certo se o desenvolvimento enquanto tal (…) produz no final das contas mais felicidade e liberdade…”

O primeiro raciocínio é do Philippe Starck, designer francês; o segundo é do também francês Luc Ferry, filósofo, ex-ministro da Juventude, da Educação Nacional e da Pesquisa da França (2002-2004).

(Caramba, Luc Ferry ministro da Educação, um suspiro longo e desolado brotou agora).

Certo, o mundo artificial que a humanidade produz pertence à humanidade. O que essa humanidade produz acaba sendo seu objeto de uso. Ela é quem cria e, portanto, é senhora de todo a criação.

Só que um dia inventamos a roda. Muito legal, ficou mais fácil dar um rolê pra lá e pra cá. Depois pusemos animais pra puxar isso, dava pra levar produtos e pessoas, eram carroças flex, podendo ser puxadas por cães, cavalos, bois, pessoas; aí criamos motor, carros puxados – ou empurrados – com a força da combustão; eram carros pretos; depois vieram os coloridos; daí inventamos carros mais potentes, e com espelho na cor da lataria; aí carros conectados; aí carros gigantes que não cabem na vaga de estacionamento e atrapalham a cidade toda; aí carros retrô, que imitavam os carros antigos; aí carros e carros e, de repente, não dá mais pra parar de produzir esse negócio, se não inovar vai se perder uma “fatia importante do mercado”, as ações vão despencar, se pararmos a produção haverá desemprego, o trânsito é um caos mas corra que a promoção é só até a semana que vem e gente beijando o carro no comercial e as pessoas irritadas achando que simplesmente caíram num engarrafamento sem nunca pensar que estão contribuindo para ele.

O automóvel é apenas um exemplo, claro. Poderia ser tanta coisa.

Eu até me senti mais inteligente e encorajado depois de o raciocínio de Starck e Ferry ter esbarrado na minha divagação. Se eu sou bobo por pensar bobeira, estou bem acompanhado. Produzimos num ritmo alucinante, mas, lá no meio, se alguém perguntar “por que mesmo que a gente faz tudo isso?”, a chance de levar uma risada na cara é maior do que a de levar uma boa resposta. É que a pergunta parece tola demais para que alguém dedique tempo a respondê-la. Mas o humor trabalha com a ruptura de uma lógica esperada, e por isso gera desconcerto. Vai ver é esse o motivo que faz a pergunta levar à risada, talvez ela seja entendida só como uma piada mesmo, que a gente logo esquece porque precisa trabalhar.

Jacques Lacan (ando muito francês?), de quem já falei aqui em outras ocasiões, fez uma releitura de Freud e renomeou alguns dos termos do psicanalista alemão. Lacan vai trazer a ideia de gozo, entre outras coisas, como a ausência de limite no sujeito. Mesmo sabendo que algumas coisas podem até nos fazer mal, não conseguimos parar. A psicanálise parte do indivíduo, tentando interrogar o sujeito do inconsciente, por que ele faz coisas que o eu até reconhece como ruins, mas não consegue lutar contra: posso querer um bombom, mas se não tenho limites (que seria a voz do Outro entronizada em mim), a expectativa do gozo é comer a caixa inteira; o gozo busca satisfação a todo custo e faz o eu sofrer porque sabe que exagerou. É assim nas toxicomanias, nos distúrbios alimentares, na busca pela satisfação sexual valendo-se inclusive da violência. Outra divagação, que fica como questão, é se podemos pensar em uma humanidade que busca o gozo, algo como um pensamento coletivo que diz “nós podemos tudo, nós queremos tudo, nós faremos tudo”, mesmo que, com isso, a própria humanidade sofra e, em último caso, se destrua.

Em tempo I – sugestão: o conto “O homem que procurava a máquina”, do Ignácio de Loyola Brandão, fala sobre isso que eu tentei explicar aqui. Com muito mais talento, é claro. O conto está no livro Cadeiras Proibidas.

Em tempo II – o trecho citado do Philippe Starck está num livro de entrevistas chamado Entre Aspas, do jornalista Fernando Eichenberg.

Em tempo III – o trecho citado do Luc Ferry é do seu livro O Que É Uma Vida Bem Sucedida? Antes de qualquer torcida de nariz, acredite em mim: apesar do título, não é um livro de autoajuda. A “vida boa” é uma preocupação filosófica.

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