Amores, no plural

Podemos falar do amor de diversas maneiras, não raro contraditórias. O texto mais conhecido a mostrar os paradoxos do amor é o soneto de Camões, aquele do “Amor é fogo que arde sem se ver / É ferida que dói e não se sente” etc, que eu não consigo declamar sem que me venha a voz do Renato Russo cantando. O poema ainda termina com a interrogação retórica sobre esse sentimento inapreensível: “… se tão contrário a si é o mesmo amor?”. Há versos que dariam um post inteiro (alguém melhor que eu faria um tratado inteiro), caso do “É querer estar preso por vontade”, o que nos diz muito sobre a liberdade – somos livres para nos prender àquilo que o nosso desejo quiser? E aí poderíamos relativizar esse querer, enveredar para o conceito de vontade em Schopenhauer e o de desejo em Freud e Lacan. Tudo isso, de minha parte, seria filosofice de orelhada, já que não sou estudioso. Mas é uma delícia especular.

Quem tem dinheiro, especula no mercado financeiro. Como não tenho condições sequer de sofrer essa tentação, especulo no amor.

O amor é um sentimento especial? Ele faz com que – a depender de quão pop você seja –, dentre dezenas, centenas, milhares de pessoas que você conheça, uma delas te chama a atenção de modo diferente, exclusivo. Não sou adepto da cara metade única, há peças e peças capazes de dar o clique exato do encaixe. Mas quando uma delas faz isso, as outras dão uma esmaecida, perdem o apelo. O encaixe te dá menos mobilidade, te deixa mais preso, já que agora há outra pecinha ali grudada em ti. Seria isso o estar preso por vontade?

Aí vem o ensinamento cristão – que apareceria antes, em Levíticos, mas é retomado em Mateus – dizendo que devemos amar o próximo como a nós mesmos. Sendo o amor um recorte especial em meio à multidão, é possível amar a todos os próximos sem distinção? E da mesma forma? Você consegue? Seria isso o ser tão contrário a si o mesmo amor?

Obra de Pablo Picasso

Claro, então, que falamos de amores, no plural. O primeiro, me parece, ataca a gente e nos comanda, não escolhemos quem amamos, é o amor quem escolhe, quem nos acende a chama da paixão e faz nosso pescoço virar sempre naquela direção – ainda que paixão derive do pathos e isso garanta aos apaixonados também um estado patológico e patético. O segundo aparenta vir de uma tentativa consciente, algo que impomos a nós mesmos, moralmente, ainda que em tom sacrificial. Porque é fácil amar do primeiro jeito, é gostoso – até, arrisco dizer, quando não somos correspondidos. O segundo jeito exige de nós uma torção do desejo, um freio na força da vontade (vontade no sentido schopenhaueriano, de uma força irracional), o que, ironicamente, pode causar sofrimento. E como chamamos o sofrimento de Cristo? Paixão de Cristo, né? Gente, a paixão está em tudo, no erotismo, na doença, no patético, no sofrimento. Só não está na a-patia. Não à toa, Hegel falava que “nada de grande no mundo é feito sem paixão”.

Ainda podemos imaginar, com Freud, que toda pessoa que escolhemos para cantar no ouvido o “por onde for, quero ser seu par”, guarda alguma semelhança com quem, na nossa primeira infância, exerceu o papel da figura materna e a quem nos alienamos. Depois, pode ser entendido como um espelhamento narcísico, pois me enamoro de alguém que devolve para mim uma imagem bonita de mim mesmo (“a relação sexual não existe”, diz Lacan, e ele armou um barraco com isso e o barraco ainda não caiu, continua de pé, havendo quem discuta até a tradução precisa do termo, se Lacan quis mesmo dizer isso ou não).

Caramba, então o outro sou eu? Ou: amo no outro o que o outro devolve de mim? Mas o eu não é obrigatoriamente feito do outro, do discurso e do corpo do outro na constituição do eu-sujeito? – só o Mogli da Disney seria do jeito que é sem outro humano a constituí-lo. Continuo: o outro (portanto, a alteridade) é amado nas partes em que é idêntico (portanto, tem a mesma identidade) ao eu? Amamos por assimilação (pela similaridade) e não pela diferença? Desse ponto de vista – mais um s a pluralizar os amoress – todo amor é homossexual, já que amamos o que é similar, o que espelha em nós uma esperança de idêntica identidade.

Obra de Matisse

Isso tudo tem dado um nó na minha cabeça. Em vez de desatá-lo, chacoalhando os fios na esperança de magicamente tudo se desdobrar e alisar, os nós se apertam: porque o eu é precedido pelo outro. A mãe, em geral o primeiro grande outro da nossa vida, é confundido com o eu. Nós, quando bebês, achamos que somos uma totalidade, corpo único unido ao de nossa mãe. A experiência do espelho, lá pelos 6, 8 meses de vida, vai marcar uma separação que não tem volta: eu sou só eu, limitado pelo meu corpo. Mas: poroso e dependente desse outro que me permeia e por isso me constitui. Há um corpo que ganha contornos definidos, mas não há um eu que se fecha para sempre. Assim, a experiência do amor exige sempre um grande encontro com o outro. Se experiência tem a ver etimologicamente com travessia, estranho, estrangeiro, ela se dá quando sou deslocado de meu lugar para chegar a outro (travessia), para chegar ao outro, que me abre e invade, que desconcerta meu mundo simbólico e imaginário. Para que eu me desloque e reorganize minha rede de representações, o outro não pode ser igual a mim, preciso da sua diferença para ser diferente também, para não ser mais idêntico ao que eu era. O xénos é a figura do héteron, ou seja, o estrangeiro (estranho, diferente) é a figura do outro. Agora, nesse sentido, toda experiência de amor é hétero – e o mesmo Lacan vai falar sobre isso também, noutro contexto.

Então, não importa se uma mulher é apaixonada por outra, se um homem é apaixonado por outro, ou se os casais tenham anatomias sexuais iguais ou diferentes. Haverá sempre um encontro com o outro que, na experiência do amor, nos expande. Muitos casais anatomicamente heterossexuais não fazem a experiência da heterossexualidade, porque não enxergam o outro como sujeito, apenas objeto para satisfação dos desejos próprios.

Nem todo encontro é de amor, nem todo mundo nos abre o mundo, há com muito mais frequência encontros traumáticos e, na melhor das hipóteses, inócuos. Raro – e por isso precioso – é o encontro de amor.

Quando conseguimos fazer esse clique, ser o outro significativo um do outro, podemos falar em experiência de amor. Ou, de novo, de amores, já que tal experiência não se dá apenas na forma do encontro convencional entre casais, pode se dar em um livro, em um professor, em uma obra de arte, em vários lugares.

Reli o texto e achei que ele acaba abruptamente, fica meio sem conclusão. Depois pensei: essa inconclusão é muito coerente.

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