Ombro de gigantes

Não nos enganemos: só sabemos de tantas coisas sobre o mundo porque nascemos em cima do ombro de gigantes. Uso essa expressão porque Isaac Newton a tornou famosa – depois de se apropriar de um bordão do século XIII. É que, na verdade, somos ladrões de palavras – já essa expressão eu roubei de um livro do Michel Schneider, mas como ele também não a deve ter inventado, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão (essa é domínio público, desconheço autoria). Tudo isso, afinal, prova a minha tese: roubamos as palavras – ou, que seja, emprestamos e nunca mais devolvemos.

O sentido da frase de Newton é simples: nascemos herdeiros, herdeiros daquilo que a humanidade produziu, cultivou e que até por isso veio a chamar de cultura. Cabe muita coisa nessa cultura. Estão aí as ciências – o método mais objetivo que encontramos para tentar agarrar a realidade e fixar verdades sobre ela. Eu gosto da ciência, admiro-a demais, estou com a terceira dose no braço e até agora o chip instalado no meu corpo não bugou.

Graças à ciência, temos condições de saber, por exemplo, que vivemos em um planeta redondo, que existem agentes microscópicos capazes de nos causar doenças. A ciência causa estupefação – ou desconforto, a depender do sujeito – porque desafia aquilo que os nossos sentidos não conseguem perceber. Nós, como herdeiros, podemos usufruir desse conhecimento que nos precede.

Mas herdamos também muitas esquisitices. Se cada sujeito é único, singularíssimo, a despeito de todo o pacote básico que o assemelha a outros seres humanos, é porque existe uma herança sutilíssima e ao mesmo tempo poderosa, que se instala e se inscreve no corpo, transformando-se em linguagem, ainda que sempre deixando um resto intraduzível, difícil ou mesmo impossível de simbolizar. O desejo que temos por fazer coisas, o desejo que temos por fazer a coisa x e não a y, os medos, as inseguranças, a timidez, a extroversão. Não nos fazemos sem o Outro que nos escreve, herdamos dele(s) elementos que vamos combinando e com os quais vamos modelando no melhor estilo work in progress o ser único que seremos após nos banharmos de suas linguagens. Após deixarmos de ser apenas pedacinho de carne e ossos moles e ganharmos o estatuto de sujeito. De humano.

Quando brinquei, alguns parágrafos acima, com o chip instalado no meu corpo, já quis ali lançar a semente da discussão. A ciência nos dá a sua verdade e com essas verdades conseguimos alguns acordos sobre o entendimento material e objetivo do mundo. Mas alimentar teorias a respeito de chips implantados no corpo diz respeito mais a uma verdade de outra ordem, complicada de desmontar, porque é uma verdade do sujeito, entranhada nele – muitas vezes estranhada pelo outro. Que nem por isso deixa de ter a força da verdade, de uma verdade pessoal tão difícil de demover porque dá conforto, lastro, proporciona identificação e certamente algum gozo (que nem sempre é sinônimo de prazer).

Não estou sugerindo que o mundo está dividido entre quem se guia pela verdade científica e quem se guia pela verdade subjetiva. As duas moram dentro de nós. Aposto um galho de arruda como há cientistas que, só por via das dúvidas, entram com o pé direito no laboratório. Aposto um gato preto que existem ateus desvirando o chinelo que estava de ponta-cabeça porque (bate na madeira três vezes), vai que, né? Informações do mundo real nós temos, mas a moça ainda não depila a perna com gilete porque o pelo vai nascer mais grosso, o moço evita arrancar os primeiros fios de cabelo branco “porque senão” nascem mais ainda. Tem uma turminha que pode até ser cética, rir das crendices coletivas, mas está lá pisando em lajotas sem que o pé encoste no rejunte.

Em geral, as verdades subjetivas se dão bem, com o sujeito e com quem convive com ele (aliás, quem convive com ele está cheio de verdades subjetivas também. Ninguém que seja sujeito vive sem elas). Parece algo muito semelhante ao que alguns chamam de realidade psíquica, e ela não tem menos peso na vida diária do que a realidade externa, convencionada coletivamente, ou cujos fenômenos podem ser explicados de maneira mais científica.

Não conseguir se descolar de determinadas (ou indetermindas) realidades psíquicas pode, no entanto, causar uma série de sofrimentos ao sujeito e a quem o cerca. Indo mais longe: até a uma comunidade inteira, como é o caso dos movimentos antivacina, que têm colocado em risco a saúde global.

O mundo complexo, difícil de entender por meio de fórmulas simples do tipo “a + b = c”, gera temores, angústia, apreensão. Gera derivas e naufrágios quando o que se busca é porto seguro. Quem está equipado para navegar na incerteza? Não é melhor distinguir de uma vez o claro-escuro, sem tanta penumbra cinzenta?

No final de 2021 eu finalizei a tradução de mais um livro da admirável filósofa italiana Donatella di Cesare. O livro ainda não foi publicado, mas sairá em breve, com o título O complô no poder. Em primeira mão, gostaria de citar dois fragmentos em que ela reflete sobre a existência de grupos que se encontram e se unem em torno da ideia de que para tudo há um complô, sempre uma maquinação, trama, urdidura malévola por trás de fatos apenas aparentemente conhecidos.

O complotismo é a reação imediata à complexidade. É o atalho, o caminho mais simples e rápido para fazer vir à tona um mundo atualmente ilegível. Quem recorre ao complô não suporta o desassossego, a questão em aberto. Não tolera habitar uma paisagem mutável e instável, não aceita a estranheza. Mostra-se incapaz de se reconhecer, junto com os outros, exposto e vulnerável, desprotegido, mas por isso mais livre e mais responsável.

E então:

Por isso, seria um erro considerá-lo [o complotismo] uma bizarrice isolada, um modismo da subcultura, o resíduo de uma mentalidade pré-lógica ou uma obstinada superstição. O complotismo não é uma regurgitação do passado que não passa, o retorno de um velho fantasma cujo desaparecimento esperamos confiantes. Nisso ele mostra afinidade com fenômenos estritamente correlatos, como o negacionismo, o antissemitismo, o racismo. Pode-se dizer, aliás, que esse prisma seja espelho do tempo. Se as narrativas complotistas logram um enorme sucesso, se influenciam profundamente a opinião pública, é porque compartilham demandas atuais e mobilizam aspirações comuns.

Encerro me repetindo: são verdades difíceis de ser removidas, revolvidas, arejadas, tanto porque selam uma identidade, um pertencimento, uma distinção, um empoderamento, quanto porque encerram temores, medos, angústias. Muitas vezes em âmbitos inconscientes que, a meu ver, uma análise pode ajudar a reescrever.

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