O campinho

Ultimamente tenho convivido mais com crianças. Mais com crianças e com mais crianças – releia, tem uma diferença aí. Por terem idades diferentes, de 4 a 9 anos, suas brincadeiras não se estabelecem em um pé de igualdade etária, ou seja, nem sempre – o que equivale a dizer quase nunca – as quatro crianças embarcam no mesmo projeto, na mesma fantasia (aliás, que fantasia seria a mesma para todo mundo?). Então temos esses cenários: ora as mais velhas fazem gato e sapato das mais novas, ora as mais novas, na falta de palavras, ganham as coisas no grito, no choro, no espernear. Ganham o que querem e às vezes o que não querem, como é o caso da fala firme – vulgo bronca – e do convite adulto para que se retirem da brincadeira, dando-se a elas os motivos pelos quais o jogo não pode continuar se as regras não forem respeitadas. Que a palavra comece a ganhar o espaço dos chorinhos, que a palavra seja capaz de mediar as relações, de nomear as angústias, os conflitos e os desejos, ainda que seja insuficiente para abraçar o todo do real. Às crianças maiores, limitamos também o alcance do leve sadismo que lhes é peculiar, já que, em posição de superioridade física e verbal, tendem à imposição da vontade, a tirar vantagens das crianças menores em prol de seus interesses.

A questão é limitar o campo da brincadeira, onde o jogo pode ser jogado. Quando tudo vale, nada vale, quando não há lei, não há espaço para nascer um desejo que só é desejo devido à castração do gozo que tudo quer.

Nos momentos em que as quatro crianças conseguem colocar no mesmo campo suas fantasias pessoais, gosto de prestar atenção aos acordos que estabelecem. E gosto particularmente das propostas que começam com “finge que”. “Finge que eu tinha poder de fogo”, diz uma. “Finge que eu tinha poder de gelo”, diz outra. “Finge que eu podia voar”, “finge que eu era muito rápido”, finge que e mais finge que. Até aparecerem coisas do tipo: “finge que eu tinha um escudo que protegia de todos os poderes”. E outra em seguida: “finge que eu tinha um poder que vencia todos os escudos”. Pronto, a coisa degringola. O desejo da onipotência põe fim ao jogo. Daí, repito: poder tudo, ser capaz de tudo acaba com o jogo, acaba com o limite, acaba com o próprio desejo, transformando-se em uma vontade de satisfação do gozo que submete todos aos desígnios de um. Em última instância, é um finge que eu tinha um poder tão absoluto que nenhum outro poder que vocês inventem será capaz de derrotar ou de se proteger do meu. Eis o fim, eis a ultrapassagem do limite, das bordas que tornam possível ao jogo ser jogado.

Não à toa há a regra do impedimento no futebol, que só fui entender mais tarde. Sem essa regra, os esquemas táticos virariam as peladas da infância, quando, vejam só, sequer tínhamos linhas demarcatórias para assinalar onde o jogo estava valendo e onde ele era inválido. Éramos obrigados a traçar linhas imaginárias e entrarmos em acordos subjetivos para definir quando a bola tinha saído e quando não tinha. Um jogo ético de confiança mútua. Que, nem preciso dizer, não funcionava sempre, surgindo daí discussões calientes sobre o gol ter valido ou não. A bola tinha saído. Não, a bola não tinha saído, sim, tinha saído. Não, não tinha saído. E o impasse, sem direito a replay, estava formado para sempre. Para resolver o problema, quando eu jogava bola na rua, as linhas passavam a ser as grades e muros das casas. Bastava bater num portão que estava decretada a saída de jogo.

Futebol, de Cândido Portinari

O “finge que” é um dos exercícios básicos da ficção infantil – eu arriscaria dizer que continuamos a jogá-lo ainda adultos –, lembrando que fingir e ficcionalizar têm proximidade etimológica. E a ficção acaba sendo o material básico da literatura – e até da memória. Mas tanto literatura quanto memória precisam de algo que a teoria veio chamar de verossimilhança. Mesmo as mais loucas ficções literárias precisam daquilo que chamamos de coerência interna. Sim, é possível criar narrativa em que um defunto-autor narre sua vida (Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis), é possível criar narrativa em que um bebê ainda na barriga narre sua vida (Enclausurado, de Ian McEwan). Como leitores, precisamos aceitar o pacto ficcional, mas para isso é preciso que as narrativas nos convençam por meio de sua coerência, por mais impossível que sejam na vida real. Buscamos alguma coerência até nos sonhos! E sabemos que ela existe, embora não acessível de modo inequívoco à consciência. “Finge que eu posso tudo” é decretar fim ao jogo do desejo. Se não há falta e todos os buracos estão preenchidos de onipotência, o que mais podemos desejar daí em diante? A falta é motor do desejo.

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