Devagar: máquinas preguiçosas trabalhando

A atividade de tradutor tem sido uma experiência que anda me agitando. Tão profundamente que na superfície quase nada aparece, como um movimento grande tão lá no fundo do mar que deixa a última camada, a de fora, quase parada. Porque traduzir é uma atividade (também física) cansativa, justamente – e paradoxalmente – porque exige do tradutor uma imobilidade externa, um jogo de estátua consigo mesmo: só o globo ocular vai de um lado a outro da tela bipartida, colhendo o texto original para plantar outro no terreno vizinho. Recodificando para que depois seja possível redecodificá-lo. A mão mexe minimamente o mouse, os dedos tamborilam o teclado quando me canso do recurso do ditado (capítulo à parte que merecia ser contado).

Esse movimento externo mínimo não corresponde aos movimentos internos, que se agitam e dançam e se alegram e choram desesperados em posição fetal. A tradução é uma leitura tão vagarosa comparada à leitura “normal” que nos permite ir preenchendo o conteúdo do texto com os nossos conteúdos de um modo bastante privilegiado. Se o Umberto Eco falava do texto como máquina preguiçosa, que precisa do leitor para se mover e se completar, o ambiente de um escritório onde se traduz é de uma modorrência beneditina. Devagar: máquinas preguiçosas trabalhando. O que, antiteticamente, torna a atividade dos pensamentos um formigueiro que, como tal, é aparentemente desordenado, formiguinhas correndo para lá e para cá, desesperadas, o que está acontecendo?, uma grita; não sei, não sei, tá todo mundo correndo e eu também, responde outra, mas no final, voilà, formigueiro montado, comida garantida para o inverno e ainda de quebra a companhia de alguma serenata de cigarras.

Eis que eu estava traduzindo um desses livros impactantes (minha maior bênção é ter me deparado só com livros dentro de uma escala “muito bons” até “arrebatadores”) quando o editor me escreveu perguntando se eu não podia interromper a tradução que eu fazia para que outra furasse a fila. Concordei. Disse claro, sem problemas, acertamos prazos e tal, até porque o livro que me chegava era de uma autora que eu já havia traduzido antes, tinha gostado muito e tal.

Eu estava, no entanto, envolvido com o livro de então, havia feito postagem em rede social, o formigueiro à toda, escrevi ensaio longo a respeito. Ao receber o livro fura-filas, resmunguei, meio desconfiado.

I marrani.

I marrani? Que diabos é isso? E que espécie de tradutor não sabe uma palavra tão importante a ponto de ser título de um livro. Acalme-se, vá ao dicionário, oras. Marrani = marranos.

Nossa, quanto esclarecimento.

Pude experimentar em cheio a resistência que às vezes opomos em relação àquilo que não sabemos. Chama-se a isso preconceito? Comecei resistindo ao livro, @%$*X):, abandonar, ainda que provisoriamente, um formigueiro pela metade para começar outro de que já de cara não gostei.

Contudo.

Aos poucos, eu fui entendendo na prática o que outro personagem que traduzi recentemente falava: a raposa, em O pequeno príncipe, diz que para cativar é preciso ir se acercando aos poucos, ir ganhando a confiança por meio da presença, da aproximação gradativa, sobretudo quando o texto despertou já na largada uma hostilidade (que não estava nele, mas na minha ignorância) devido ao fato de eu sequer saber do que se tratava.

Marrano é um termo usado, de forma muitas vezes pejorativa, para judeus obrigados desde priscas eras – mais priscas do que a palavra priscas – a se converter ao cristianismo para fugir de perseguições e torturas.

Essa simples (para quem está de fora) ação gera uma miríade de efeitos, mais ou menos exemplificando na prática o que a imagem da asa da borboleta tenta de modo metafórico. Refiro-me à ideia de que uma brisa mínima gerada pelo bater de asas de uma borboleta pode desencadear grandes ventanias e mudar o destino de multidões. No caso, a autora de I marrani, Donatella di Cesare, diz ser a conversão forçada de judeus o embrião do homem moderno e da modernidade. Claro, todo embrião tem seu embrião e isso vai remontar ao Big Bang, mas ela vê o homem moderno, marcado pela cisão e pelo refúgio em seu mundo interior, da maneira como o entendemos e vivemos hoje, como resultado das conversões forçadas, pois isso obrigava o judeu a esconder-se, a ocultar-se, a mascarar-se, dizendo-se um (cristão) e sendo outro (judeu).

Estou simplificando, claro. A matemática não é assim tão exata. Houve quem se converteu de fachada, houve quem se converteu de verdade, houve quem buscou outra via, inclusive no secularismo, negando ambas as práticas religiosas e seus fundamentos. Havia espaço, como sempre há – desde priscas eras, pois estamos falando de sujeitos humanos, – para a boçalidade (termo definido de forma certeira pelo nosso, ah, saudades, Contardo Calligaris). Diz a autora:

Com o passar do tempo, porém, ao lado dos marranos judaizantes, foram aumentando os conversos que tinham aceitado o cristianismo. E distinguiram-se ao menos dois tipos diferentes, senão opostos. Movidos por um forte ressentimento, alguns esconderam a sua proveniência até reprimi-la nos outros, tornando-se vigilantes católicos ferozmente antijudaicos.

Dá o que pensar, em tempos atuais, a onda de repressão e observância fanática de costumes, quando, agora sim de acordo com o Calligaris, ele define o boçal:

Boçal, para mim, é quem se preocupa em obrigar todos os outros a seguir as regras de conduta que ele acha certas. Qualquer terapeuta sabe que isso acontece sobretudo quando um indivíduo é ele mesmo incapaz de seguir sua própria regra. Ou seja, a vontade de mandar nos outros aparece quando não conseguimos mandar em nós mesmos. Ela aparece e nos torna boçais. – em Cartas a um Jovem Terapeuta.

Sempre me interessei também por momentos de quebra na história da narrativa literária. Há momentos de transição em que a noção de herói muda, saindo de cena – ou perdendo a hegemonia – o herói inteiriço, representante de uma narrativa sólida, soberana, normalmente identificada com o suposto bem, para o herói dividido, cindido, que carrega dentro de si as marcas de sua civilização e ao mesmo tempo uma força pulsional amoral, que é obrigada a ser reprimida, ou recalcada, para que a convenção social assinada em contratos coletivos se cumpra. O mal manejo dessas duas forças gera mal-estar, sofrimento psíquico, embora a convivência em constante tensão entre ambas as instâncias seja inescapável. O herói moderno, portanto, não encarna a integralidade de um valor social que vai se contrapor ao vil vilão, àquele bárbaro, estranho, estrangeiro, encarnação do mal, das forças incultas, do primitivismo mais infantil, ainda que isso sobreviva nas narrativas mais estereotipadas de Hollywood e quejandas (depois de priscas, vem aí quejandas). O herói moderno carregará a divisão dentro de si e seu conflito, antes de ser com o outro externo a ele, é com o Outro dentro de si. Isso faz do encontro com outros sujeitos igualmente cindidos uma urdidura complexa, um mato labiríntico sem cachorro do qual não sairemos. Isso tudo nos ajuda a pensar por que paz, harmonia social e assinatura de contratos coletivos sejam tão difíceis, instáveis. Só não digo impossíveis porque algum resquício ingênuo de utopia ainda insiste em me habitar.

Veja os marranos: nasceram marcados por uma crença – pense com força no sentido de “marcados” –, mergulhados nela a ponto de se banharem de sua linguagem, de suas práticas e costumes religiosos. Cresceram alienados (grudados, unidos, totalmente identificados) à religião como um bebê nasce alienado à figura materna, pensa formar com ela figura única, sem alternativas fora da relação. Seu mundo é seu rito. Ao serem forçados à conversão, a violência do ato é uma machadada disruptiva que gera grande dispersão comunitária, o grupo coeso se despedaça não pelo arbítrio subjetivo, individual, mas nada menos do que pela força bruta da Inquisição. Muitos marranos aceitam a conversão como forma de se proteger das perseguições, mas em segredo preservam as antigas práticas. Nem sempre conseguem ocultá-las, e são importunados por isso; outros convertem-se completamente – alguns, como vimos, ainda perseguem os ex-parceiros de fé; outros se convertem e levam consigo marcas do judaísmo, “contaminando” o cristianismo; assim como há conversos que judaízam o cristianismo, também há o movimento inverso. Isso não se dá sem trauma, tanto físico quanto psíquico.

O que achei bonito nessa história foi a tendência que alguns seguiram de se libertar de ambos os jugos (figuras materna e paterna, amigos psicanalistas?), podendo escolher seu destino de acordo com o desejo, dando origem a um secularismo (que não é necessariamente ateísmo) que se desprendeu da palavra opressora desse Outro pesado – ou desses Outros (judaísmo e cristianismo). Não falo de religiosidade, de espiritualidade, falo de uma Igreja que angariava fiéis por meio do medo, da ameaça, da culpa, do sacrifício, do gozo prometido apenas no além.

Enfim, é muita terra para o meu formigueirinho aqui, eu reservei um arsenal de citações para continuar desenvolvendo minhas muitas conexões rascunhadas (com a nossa subjetividade, com o Brasil de hoje, com a neurose-obsessiva, com o conceito de Nome do Pai na psicanálise, com o fanatismo, etc). Estou apenas na metade da tradução e já cheio de trechos sublinhados e caraminholados.

Entre metáforas apressadas de formigueiro e mar profundo, termino meu breve jorro com esse eureca de Santa Teresa D’Ávila (pense numa mulher f***), que a autora que traduzo usa no capítulo reservado a ela: “o outro mora no eu, o eu no outro. Nenhuma identidade integral”.

***

Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada (1515 – 1582). Esse parágrafo era só isso mesmo.


Para ir além

A crônica não mata – parte 2

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