Perturbação do sossego é a causa mais comum de acionamento da PM. Mas por quê?

Será que os curitibanos fazem tanto barulho e bagunça assim? Ou tem algo de errado com as nossas leis e com a ação da polícia

Há um acionamento das forças de segurança, em específico, da Polícia Militar, que supera e muito todos os demais acionamentos de Curitiba e região metropolitana. Ele chega a ser três vezes maior – 160.939 casos em 2022 – que o segundo colocado, a violência doméstica – com 52.546. O campeão estadual de alocação de recursos e controvérsias é a perturbação do sossego, contravenção penal tipificada. Se, porém, por óbvio, os curitibanos não são mais ou menos desordeiros que os habitantes de qualquer outra capital nacional, o que pode dar à Cidade Sorriso este tão desonroso título de malcriada?

Não é de hoje que aqui na coluna nos debruçamos sobre o tema. Há tempos que as batalhas entre a população – de vez em quando via Consegs (Conselhos de Segurança dos bairros) – e os bares, restaurantes e eventos vêm acontecendo. Há muita desinformação e alguns exageros cometidos, diga-se de passagem. Desde a tentativa inconstitucional da proibição da venda de bebidas alcoólicas nas ruas, bares que não respeitam a legislação municipal, até a truculência da AIFU (Ação Integrada de Fiscalização Urbana), a população se vê perdida com relação ao que se pode ou não fazer, no que diz respeito ao ruído de suas atividades.

A verdade é que ninguém está satisfeito e o atrito entre vizinhos, na falta de mediação estatal, começa a surtir seus efeitos deletérios. Em recente desacordo municipal, o Conseg do bairro Abranches está prestes a judicializar suas disputas contra a operadora do parque da Pedreira, a DC Set Eventos. Das alegações principais dos moradores, a maioria norteia faltas da ordem pública como o trânsito, lixo deixado nas redondezas e a atuação de flanelinhas – responsabilidade conjunta da prefeitura – porém, apenas uma pode ser atribuída diretamente aos espetáculos que tomam lugar no mítico palco curitibano: a perturbação do silêncio.

Moradores alegam que o ruído se estende para além da noite de shows na Pedreira Paulo Leminski. A montagem e desmontagem dos eventos, além das festas na Ópera de Arame – administrada pela mesma empresa – que varam a madrugada (em claro exagero), andam causando desconforto insuportável, dizem os vizinhos. A judicialização será feita com o apoio do Ministério Público do Paraná através da Promotoria de Justiça de Meio Ambiente, por meio da confecção de um abaixo-assinado, aberto a qualquer morador que se sinta prejudicado, desde que devidamente identificado.

É lamentável que o diálogo tenha se esgotado; porém, é satisfatório que as instâncias adequadas estejam envolvidas na resolução da situação. No entanto, não é assim para muitos outros estabelecimentos. “A sociedade como um todo desconhece o que significa a AIFU, a que ela se presta e como atua. Na abordagem que sofremos no sábado, eu estava com a casa lotadíssima e os clientes não estavam entendendo absolutamente nada do que estava acontecendo”, me conta Fabíola Nespolo, sócia-proprietária da Rua Pagu, que teve seu estabelecimento invadido pela polícia de arma em punho para acabar com uma roda de samba que acontecia em seu espaço.

“Não há razão de ser para a AIFU. Ela atua, pelo que sei e me foi dito, até por policiais da ação, de acordo com demandas. Se um estabelecimento acumula muitas reclamações feitas pela comunidade, eles são acionados. Via de regra, a denúncia é por perturbação do sossego. Só que quem vai efetuar a fiscalização não é a secretária de urbanismo e meio ambiente, e sim a ação integrada como um todo”, explica a empresária. Assim sendo, existem dois problemas. Um deles é deixar na mão de um amontoado de denúncias aleatórias, baseadas em opinião, a discricionariedade da fiscalização municipal, e outra, como contravenção penal que é, a denúncia de perturbação do sossego demanda um Boletim de Ocorrência, que via de regra, não é feito, justamente por conta desta acusação difusa, ainda que o estabelecimento alvo seja obrigado a lidar com a investida policial beligerante.

Não é só isso, “em geral, a polícia não dispõe do equipamento necessário para fazer a aferição da emissão de decibéis no local fiscalizado, além disso, na maioria dos casos, os soldados desconhecem o que há de ser feito, não há objetividade na fiscalização”, conta Fabíola, que também é advogada. Não só a denúncia mas também a execução da fiscalização carece de consistência. Se há um limite e protocolo de medição de decibéis, ele deve ser executado, justamente por se tratar de uma legislação pensada para proteger a coletividade de abusos individuais. O problema não pode ser resolvido entre o vizinho e o bar mais chatos, muito menos baseado em opiniões dos cidadãos de uma ponta ou outra.

“Se a perturbação do sossego é o que mais faz a polícia trabalhar em Curitiba e na RMC, será que é tanta gente assim fazendo barulho, ou será que a nossa legislação não é conservadora e desconforme com o comportamento da sociedade de hoje em dia?”, pergunta a sócia da Rua Pagu. No Paraná, muitas pessoas pensam que a perturbação do sossego é para problemas a partir das 22h, porém, não há horário específico que limite a ocorrência das queixas e qualquer um, mesmo sem provas, pode fazê-las quantas vezes desejar, sobre a queixa que lhe convenha, a qualquer hora do dia. Um exagero que não deve encontrar par em nenhuma outra capital nacional.

Além de tudo isso, o conceito de entretenimento em que se baseiam os alvarás pedidos para o funcionamento dos bares e restaurantes que almejam executar emissão sonora, está preso no modelo de “boate” e pede adequações físicas aos estabelecimentos que destoam da cultura emergente dos polos festivos de hoje em dia. Atualmente a cultura transborda e toma a rua e Curitiba parece querer manter a sua inércia. Ainda povoa o imaginário de muitos a austeridade de um povo imigrante preferido de outrora, quando hoje sua população destoa em absoluto desta ideia ultrapassada.

Enquanto a Pedreira tem a seu favor os ritos jurídicos e a intervenção do Ministério Público, os bares e restaurantes têm a mira de uma arma para lidar e proteção jurídica nula. Antes de alçar aos grandes palcos, as manifestações culturais começam nos pequenos polos e a administração municipal tem se esforçado para sufocar essa gênese. Ninguém é a favor da bagunça, mas a falta estatal parece deixar com que se instale propositadamente a guerra entre cidadãos. E nesta omissão potencialmente calculada, seus efeitos deletérios são determinantes para promover a cultura curitibana ao segundo plano e vizinhos que seguem sem se cumprimentarem.

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