A matemática da desigualdade

Uma reflexão para o Dia Internacional da Menina. Pela vida de meninas de bairros nobres. Pela vida de meninas de bairros da periferia.

Um.
Dois.
Três.
Quatro.
Cinco.
Seis.
Sete.
Oito.
Nove.
Dez.
Onze.
Doze.
Treze.
Quatorze.
Quinze.
Dezesseis.
Dezessete.
Dezoito.
Dezenove.
Vinte.
Vinte e um.
Vinte e dois.
Vinte e três.
Vinte e quatro.
Vinte e cinco.
Vinte e seis.
Vinte e sete.
Vinte e oito.
Vinte e nove.
Trinta.
Trinta e um.
Trinta e dois.
Trinta e três.
Trinta e quatro.
Trinta e cinco.
Trinta e seis.
Trinta e sete.
Trinta e oito.
Trinta e nove.
Quarenta.
Quarenta e um.
Quarenta e dois.
Quarenta e três.
Quarenta e quatro.
Quarenta e cinco.
Quarenta e seis.
Quarenta e sete.
Quarenta e oito.
Quarenta e nove.
Cinquenta.
Cinquenta e um.
Cinquenta e dois.
Cinquenta e três.
Cinquenta e quatro.
Cinquenta e cinco.
Cinquenta e seis.
Cinquenta e sete.
Cinquenta e oito.
Cinquenta e nove.
Sessenta.

E mais…

Foram mais de sessenta disparos que o homem – branco – em surto deu. Tiros em um bairro nobre, de uma capital que ainda vive o sofisma de cidade modelo: Curitiba. Apesar da presença dos policiais militares que chegaram rapidamente ao local – no início dos disparos – não houve troca de tiros. Os disparos foram unilaterais: do homem dentro da própria casa e depois em direção aos policiais. Não houve corre-corre. As ruas do entorno foram fechadas e a maior parte das residências, evacuada. Digo a maior parte, porque o lugar onde trabalho, por exemplo, não foi. E quatro pessoas permaneceram lá durante todo o tempo do ocorrido. Aliás, bastante tempo. Mais de quatro horas de negociação. Graças a Deus – e à desigualdade social – ninguém saiu ferido.

É claro que todo mundo se alegrou com o fato de não haver feridos e nem pessoas inocentes violentamente ou “infelizmente” assassinadas. Os familiares das pessoas que estavam na casa não evacuada ficaram aliviados. Os comerciantes que não tiveram suas lojas atingidas conseguiram dormir em paz depois do susto. As mães e pais que conseguiram se manter protegidos até o fim da situação choraram abraçando seus filhos, gratos, porque tudo acabou bem.

Mas, acabou bem, por quê? Foi com essa pergunta que uma amiga me atravessou. Ela é uma mulher, de 28 anos, negra, que mora na periferia da capital paranaense. Onde ela mora, por muito menos do que sessenta disparos por arma de fogo, tem troca de tiros multilateral, envolvendo os policiais. Tem corre-corre e desespero. Não tem residência evacuada e tão pouco negociação. Na verdade, ela me lembra que chega a soar estranho uma negociação tão longa, enquanto os disparos não cessam.

É porque ele é branco, Michele. Branco não comete violência, surta. Branco não é marginal, é colecionador de armas. Minha amiga tem a ferida ainda aberta pela morte da menina Ágatha. No lugar onde a menina morava assim como onde a minha amiga mora, há vidas que parecem valer menos. E isso tem que mudar!

Até o momento, 11 de outubro de 2019, Dia Internacional da Menina, o caso da morte de Ágatha ainda segue sem resolução. Sabe-se, por publicações de pronunciamentos oficiais e declarações de testemunhas, que, se houve tiros, eles foram muito menos do que sessenta. Se houve tiros, eles foram bilaterais. Os policiais militares envolvidos no caso afirmam que foram atacados e que houve cerca de… dois tiros disparados. As testemunhas dizem que não houve tiroteio algum e que por suspeitarem de um motoqueiro, os policiais atiraram – e a vida de uma menina foi interrompida. 

O que eu quero e o que a minha amiga quer é que a postura de policiais militares na periferia seja tão empática e disposta a preservar vidas quanto ao que vimos acontecer em um bairro nobre. Não queremos que a polícia chegue atirando para matar no bairro nobre. Queremos que ela não chegue atirando na periferia. No bairro nobre tem gente. Tem menina com sonho e que se veste de Mulher Maravilha, acreditando que pode tudo. Na periferia tem gente. Tem menina com sonho e que se veste de Mulher Maravilha, acreditando que pode tudo. Onde tem gente, tem vida. E nenhuma vida vale menos. Eu só queria que a gente lembrasse disso. 

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