Gentileza canadense

No Canadá, há um sentido comunitário ainda escasso no Brasil

Alguns flashes do Canadá. Cena um. Você está em um supermercado, manobrando o carrinho de compras. Alguém vem na sua direção. Não está muito perto, mas achou que poderia te atrapalhar. Esta pessoa seguramente vai te pedir desculpas pelo transtorno. Cena dois. Você está em um cruzamento de trânsito sem preferencial. Em teoria, a preferencial é de quem está à sua direita. Mas o que quase sempre acaba acontecendo, caso dois carros parem na preferencial, é que o outro motorista, com um sorriso nos lábios, faz um sinal com a mão, pedindo para que você passe antes. Cena três. Você está em uma balsa e um canadense desconhecido te convida para ficar uns dias na casa dele. Bom, esta história vale a pena ser contada com calma.

Após dias memoráveis na Península Olímpica, soubemos de um ferry boat saindo de Port Angeles, próximo de onde estávamos, direto para Victoria, na Ilha de Vancouver. Chegando no guichê para comprar a passagem, descobrimos que a embarcação estava lotada para os próximos dias. Porém, os funcionários nos deram instruções para conseguir vaga na primeira balsa da manhã. Do lado externo, havia a rua de acesso ao embarque. A partir das 21h30, quando a última embarcação da noite sairia, deveríamos estacionar o Paçoca ali, pernoitar e, às 6h30 da manhã do dia seguinte, tentariam nos encaixariam para a próxima partida. Como sempre há desistências de última hora, provavelmente conseguiríamos vaga.

Paçoca na fila de motorhome aguardando a balsa em Port Angeles. Foto: André Tezza

Chegamos às 21h30 em ponto e uma fila de motorhomes que tentaria o encaixe estava se formando. Estacionamos atrás de um camper e fui conversar com o proprietário, para saber se ele tinha mais informações sobre a balsa do dia seguinte. Henry não sabia muito mais do que nós. Ele estava com a filha, Tiffany, e assim como a gente, havia passado alguns dias na Península Olímpica. Conversamos sobre a minha viagem e ele ficou realmente interessado quando soube que éramos brasileiros e que iríamos fazer uma longa jornada pelas Américas com o Paçoca.

Dormimos na rua com os novos vizinhos. Além de Henry, havia uma família californiana e outros canadenses nos primeiros lugares da fila. É interessante como há um sentido de comunidade entre campistas, algo muito mais carinhoso, por exemplo, do que os vizinhos de apartamento – talvez porque ninguém precise participar de reunião de condomínio. Às 6h da manhã do dia seguinte, os campistas já estavam de pé, ansiosos se conseguiriam ou não embarcar. Os funcionários da empresa chegaram e todos que estavam na fila conseguiram embarcar. Conversei novamente com Henry e ele comentou que iria me procurar dentro do ferry.

Orla de Victoria, na Ilha de Vancouver. Foto: André Tezza

A balsa faz um translado rápido – 1h30 de viagem. Conforme havia prometido, Henry nos achou no saguão central do ferry. E fez uma proposta irrecusável. Perguntou se já tínhamos um lugar para dormir em Vancouver Island. Comentei que não tinha reservado nada, mas aparentemente um cassino afastado do centro aceitava motorhomes para pernoite sem custos no estacionamento. É a minha nova vida: estacionamentos de cassinos e Wallmarts, postos de gasolina ou áreas de descanso nas rodovias se tornaram excelentes hotéis.

A família de Henry tem uma propriedade em Sooke, ao lado de Victoria. Eles têm uma pequena estrutura para motorhome, com água e eletricidade. Se quiséssemos, poderíamos passar uns dias por lá. Perguntei quanto custaria e ele nos disse que não sairia nada. Era uma oferta irrecusável.

Bald eagle, a águia careca, na propriedade da família de Henry. Foto: André Tezza

Em todos os livros que li de viagens longas no estilo overlander sempre há este tipo de convite. Em um deles, Mundo por Terra, Roy Rudnick e Michelle Weiss combinaram que nunca recusariam um convite. Comentei com a Fran que este também poderia ser o nosso plano. A Fran gostou da ideia, mas impôs uma regra: se o convite vier de uma mulher sozinha quando eu estiver viajando sozinho, então precisarei recusar.

Combinei com Henry que a primeira noite dormiríamos no estacionamento do cassino, porque queríamos conhecer Victoria. Mas depois partiríamos para a casa dele em Sooke. Quando o ferry aportou, fizemos a primeira fronteira da viagem. Foi tranquila, feita de dentro do carro, em estilo drive-thru. Não pediram nem o RG do Paçoca. Perguntam o motivo da viagem, onde moramos, como vivemos e se estamos levando armas. Pediram para ver também o visto canadense. Para quem entra por terra ou mar, é preciso fazer no Brasil um visto chatinho, bem mais burocrático do que o visto de quem chega de avião – é preciso ir até São Paulo. Tudo durou no máximo uns dois ou três minutos, mas depois Henry nos explicaria que poderíamos ter sido presos, porque não declaramos o spray de urso, que é considerado um tipo de arma no Canadá.

Escrevendo o texto do Plural, de frente da praia particular de Henry. Foto: Francis Haisi

Quando eu e a Fran nos conhecemos, cogitamos migrar para o Canadá. Eu já tinha uma certa simpatia pelo país. Gosto até da bandeira – reverenciar a folha do plátano diz algo sobre os canadenses. É diferente, digamos, de Moçambique, que tem uma metralhadora AK-47 na bandeira. Ou da nossa bandeira, que está lá com aquela esquisita ordem positivista. Digo esquisita porque não representa quem somos. Não é complexo de vira-lata – se ao invés de “ordem e progresso” tivéssemos, digamos, um “deixa a vida me levar, vida leva eu”, seria mais honesto e carinhoso.

Victoria é a capital da British Columbia, um dos estados de língua inglesa do Canadá. A língua é o inglês, mas o lugar é completamente diferente do oeste dos Estados Unidos, que está ao lado. A arquitetura da cidade é mais acolhedora, com ruas menores e muito mais árvores. Há pequenos comerciantes por todos os lados, o que tem se tornado raro nas cidades americanas.

De dentro do Paçoca, café da manhã com vista privilegiada

Victoria nitidamente tem um jeitão europeu, com calçadões exclusivos para pedestres e arquitetura antiga preservada em abundância. Dirigir o Paçoca é mais complicado, porque as ruas largas dos EUA facilitavam muito. Porém, a gentileza no trânsito é maior aqui. De todo modo, mesmo nos EUA, achamos o trânsito bem mais civilizado e seguro do que no Brasil. Na estrada, a diferença é brutal. A gentileza no trânsito é sempre um indicativo infalível do grau de desenvolvimento de um país.

Victoria é conhecida como cidade das flores e de fato há flores por todos os lados. É relativamente pequena, com pouco menos de 100.000 habitantes, e se esparrama por uma orla comprida, em forma de curva. Depois de uma boa caminhada, fomos ao cassino e, com alguma burocracia, autorizaram o nosso pernoite. Foi uma noite bem tranquila – éramos o único motorhome do estacionamento.

A casa que está para alugar no airbnb. Foto: André Tezza

No dia seguinte, à tarde, finalmente fomos para a casa de Henry. Ficamos de queixo caído. É uma propriedade grande, com várias casas – uma delas disponível no airbnb – todas de frente para um braço de mar. O espaço do motorhome era ao lado de uma praia privativa, debaixo das árvores gigantescas que temos visto desde que entramos na costa noroeste dos EUA. Henry nos recepcionou deixando a chave de uma pequena casinha, de frente para a praia. É um abrigo para o frio e ali há uma mesinha com cadeiras e poltronas. Já sabia onde seria o meu escritório para escrever os textos do Plural.

A vida selvagem é intensa na propriedade de Henry. Eles já hospedaram um urso durante um ano. As baleias (orcas e jubarte) costumam nadar pertinho, bem como as focas. De tarde, ouvimos um barulho novo, em altos decibéis – eram bald eagles, as gigantescas águias carecas. Estavam fazendo ninho bem em cima de onde o Paçoca estava estacionado.

Com pouca poluição luminosa, a praia tem uma excelente visibilidade da via láctea. Foto: André Tezza

O grande privilégio deste convite não foi o lugar em si, mas conhecer Henry e sua família.
Henry é um comandante experiente da aviação comercial do Canadá. Viajou o mundo pilotando, e uma das rotas que mais fez foi do Canadá para Cuba, Venezuela e Equador – são os países que conheceu da América Latina. Ele é canadense, mas a família paterna é inglesa. A materna, finlandesa. No lado paterno, os avós foram violinistas da Orquestra Sinfônica de Londres. Seu pai era médico. Mirian, a esposa de Henry, é uma médica alemã. Ela não conseguiu revalidar o diploma no Canadá e quando veio morar na ilha de Vancouver, ganhava a vida como professora em um jardim de infância. Atualmente, trabalha com design de interiores. Entramos na casa que está para alugar no airbnb e é linda, em estilo nórdico. Henry e Mirian têm duas filhas, Tiffany e Victoria – são gêmeas adolescentes. Victoria ama plantas e Tiffany ama fotografia – vejam a sorte que tivemos. Passamos uma tarde conversando sobre fotografia com Tiffany e Henry. O pai de Henry era fotógrafo amador e tinha uma Leica analógica incrível – só isso deu assunto para uma conversa de horas.

A família era toda muito simpática e acolhedora. Eles estavam extremamente curiosos sobre o Brasil e a América do Sul. Henry queria dicas, perguntou se seria possível conhecer o Brasil de camper e como eram as estradas na Patagônia. Comentei que se um dia eles fossem ao Brasil, seria um grande prazer recebê-los – a única forma que teríamos para retribuir tanta hospitalidade.

O que descobriríamos depois é que Henry não era uma exceção. Em poucos dias, entendemos o quanto o canadense é hospitaleiro e gentil. Conversei com vários amigos brasileiros que vieram para o Canadá e a impressão é a mesma. Há uma confiança entre as pessoas e um sentido comunitário que é escasso no Brasil. O Canadá não é perfeito. Mas dos países que visitei, este é o menos violento de todos – e eis um sentido fundamental do que deveria ser a civilização.

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