“Manual do Usuário” é um site de tecnologia contra o consumismo

"Manual do Usuário" evita discurso pró-mercado, não monitora leitores e tem obsessão por desempenho

Rodrigo Ghedin é o tipo do sujeito agradável de se conversar. Nos conhecemos em uma redação de jornal e dava pra ver desde o começo que ele tinha algo a dizer: não estava ali só pra preencher mais uma cadeira e fazer a máquina girar. Depois fiquei sabendo que ele era o autor do “Manual do Usuário”, um site que já vinha chamando a atenção de muita gente e que só tem crescido nos últimos anos.

Na entrevista abaixo, você vai ver um sujeito que é apaixonado por tecnologia, mas que também é um humanista: que se preocupa com os recursos naturais consumidos pelo uso da informática e que não quer ganhar dinheiro fazendo seus leitores irem à Amazon.

“Manual do Usuário”

Rogerio Galindo – Conta um pouco a história do Manual do Usuário.

Rodrigo Ghedin – Criei o Manual do Usuário no final de 2013. Na época, estudava Comunicação e Multimeios em Maringá, na UEM, e em paralelo era repórter do Gizmodo Brasil, um site de tecnologia cuja redação fica em São Paulo — já trabalhava remotamente muito antes da pandemia!

O Manual surgiu de uma necessidade e de uma vontade. A necessidade era de tempo. O pessoal do Gizmodo foi muito generoso em acomodar meus horários para que eu pudesse estudar e trabalhar (o curso era vespertino), mas mesmo assim era difícil conciliar as duas coisas. Com um site próprio, e a princípio sem muitas pretensões, acreditava que conseguiria dedicar-me mais ao curso sem sumir do mercado.

Já a vontade era a de me aprofundar nos assuntos que cobria. O estilo do Gizmodo e da maioria dos outros sites especializados da época era bastante frenético, sem muito espaço para apurar grandes histórias ou acompanhar de perto o desenvolvimento delas. Uma das bases do Manual, que persiste até hoje, é ser uma publicação “Slow Web”: dar tempo ao tempo, sem pressa, para as histórias amadurecerem. Uma das manifestações dessa filosofia é o fato do site ser publicado em edições semanais, sempre às quintas-feiras, quase como se fosse uma revista.

Lá se vão quase sete anos. Nesse período, o site passou por algumas mudanças de forma e conteúdo e teve fases bem distintas, como a passagem pela Gazeta do Povo. A maior mudança, acho eu, foi quando deixei de lado a cobertura de produtos para focar de vez em como a tecnologia nos afeta no dia a dia e o seu papel em outras áreas das nossas vidas, como os impactos sociais e a política. A cobertura de tecnologia no Brasil parece estar dentro de uma bolha; ela ainda vive uma ilusão coletiva de ser imparcial. Nessa, acaba reforçando um viés fortemente pró-mercado que eu, como pessoa, acho temerário — para dizer o mínimo. Com o Manual, consigo fazer um contraponto. Isso afastou alguns leitores, que foram embora me chamando de “esquerdista”, “neoludita”, coisas do tipo, mas atraiu gente que sentia a mesma urgência que eu. No fim, o saldo é positivo.

Quem é teu público hoje? Quantas pessoas assinam a newsletter?

Uma das premissas do Manual é o respeito absoluto à privacidade dos leitores. Isso significa, entre outras coisas, que a ferramenta de aferição de audiência que usamos não coleta dados demográficos — logo, não sei muito bem acompanha o site.

Em conversas com leitores mais assíduos e apoiadores, e nas pesquisas de perfil que fazemos anualmente, noto que o Manual atrai pessoas que percebem que a tecnologia tem consequências, que um celular nasce da extração de recursos raros e da exploração de mão-de-obra, e que os problemas graves das redes sociais no debate público não são necessariamente acidentais, para ficarmos em dois exemplos. É um pessoal legal e muito interessante, o que se reflete nos debates que ocorrem nos comentários, em outros espaços de socialização e no meu e-mail.

Desse pessoal mais próximo, tem muita gente da tecnologia (desenvolvedores, cientistas de dados, designers etc.), mas também de áreas das mais diversas (pesquisadores, economistas, advogados, funcionários públicos). Sempre me surpreendo com a amplitude das profissões e interesses dos leitores do Manual.

A newsletter está com 2,9 mil assinantes. Ela é gratuita e um dos produtos mais mutáveis do site — estou sempre experimentando novos formatos ali. Tenho comigo que a explosão de newsletters que estamos testemunhando é uma “resposta imunológica” à nossa exposição excessiva às redes sociais e todos os males que elas acarretam. No e-mail, as coisas são mais gerenciáveis, menos caóticas. Mais tranquilas. Valorizamos isso.

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Você conciliava isso com trabalho em jornal. Consegue ver o Manual te sustentando financeiramente?

Em 2018, o Manual do Usuário foi parceiro da Gazeta do Povo, onde eu trabalhava como editor de Economia. Como era algo integrado, editava o Manual dentro da minha jornada de trabalho. Era bastante corrido, mas com a ajuda inestimável das minhas colegas de editoria, foi viável enquanto durou.

Desde que fui demitido da Gazeta, no final de 2018, tornei o Manual o meu trabalho em tempo integral. Àquela altura, o site estava no ar havia cinco anos e nunca tivera minha dedicação total — meu tempo fora dividido primeiro entre ele e a faculdade e, depois, entre ele e o jornal. Senti que “devia” isso ao projeto, então nem cogitei buscar uma recolocação após a demissão. Imediatamente decidi que o Manual seria o meu trabalho.

Hoje, o site quase me sustenta. Com as multas rescisórias e o que consegui economizar no período no jornal, fiz um bom pé de meia. Nesses quase dois anos desde então, o que o Manual rende ainda não cobre as minhas despesas, mas evita que eu tenha que dilapidar muito aquele pé de meia. Em paralelo, vez ou outra faço freelas para outros veículos — os mais conhecidos foram para o The Intercept —, o que ajuda a complementar a renda.

O Manual tem duas fontes de receita: a assinatura mensal que leitores mais interessados e que têm condições pagam*, e as ações com anunciantes selecionados e que topam trabalhar nos nossos termos pró-privacidade. Ainda não chegamos à sustentabilidade; por outro lado, o faturamento não estagnou, ele segue crescendo. Estou otimista!

*Importante dizer que apesar de haver um programa de assinaturas, o conteúdo do site é aberto a todos, sem paywall. Acredito que a boa informação deva circular livremente.

Você me disse que é obcecado por desempenho. Explica isso.

Essa obsessão é meio transversal na minha vida. Tendo a evitar qualquer tipo de desperdício, o que inclui a gestão de recursos do site. (A gente nem se dá conta, mas toda vez que acessa algo na internet, como sites e vídeos por streaming, está consumindo recursos naturais.)

Em troca de facilidades e velocidade de desenvolvimento — e com o lobby de empresas como Google e Facebook —, muitas ferramentas e técnicas para criar sites se tornaram desnecessariamente pesadas ao longo dos anos. Há situações em que essa carga se justifica, mas não é o caso do Manual, que é, de forma bem objetiva, um punhado de páginas web com muito texto e algumas poucas imagens. Com paciência e foco, é possível entregar essas páginas consumindo o mínimo de recursos. É isso o que fazemos, eu e o James Pond, administrador de sistemas aqui de Curitiba e um grande parceiro que apoia o Manual há vários anos e que, não por coincidência, compartilha comigo a obsessão por desempenho. A expertise dele nessa área é tamanha e o trabalho deu tão certo no Manual, que estamos estruturando uma empresa, a Cipher Host, para oferecer esse serviço a outras empresas.

Ah, ajuda também o fato de não rodarmos publicidade programática nem scripts de monitoramento dos leitores — além de devassarem a privacidade alheia, eles são bem pesados. A ótima experiência que alguém tem ao navegar na web com um bloqueador de anúncios ativo existe no Manual sem que ali seja preciso usar um bloqueador de anúncios.

Alguns podem achar o Manual mais feio, ou menos moderno, que outros sites. Pode ser, mas na minha avaliação é uma troca que vale a pena. Quem acessa o Manual se depara com um site rápido, acessível e que se comporta de maneira previsível. É fácil lê-lo e, mais que isso, é agradável. Para mim, essa é a verdadeira prioridade — o ótimo desempenho é um dos ingredientes para alcançá-la.

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Achei bem bacana você ganhar um troco com vendas de livros em grandes varejistas mas dizer pro pessoal preferir livrarias locais. Como teu público tem se colocado quanto a isso?

O público recebeu bem a ideia. Por um lado, ele entende a necessidade do site de gerar receita, e por outro sabe que meu pedido para comprar de livrarias locais não é da boca pra fora. (Tanto que aquela área de livros gera pouquíssimo dinheiro, e que bom que é assim!)

Tento manter uma relação horizontal com os leitores, o que implica em ser transparente. Ser uma publicação pequena me permite um contato mais próximo com quem nos lê, e isso é tão rico, tão legal, que não encaro como uma estratégia de negócio; é algo mais natural, desejável. Nessas trocas, os leitores percebem as limitações do projeto e são compreensíveis com as inevitáveis falhas de um site editado por uma pessoa só. Em vez de tentar escondê-la, eu abraço essa falibilidade.

Aliás, desde que o site voltou a ser independente, na fase pós-Gazeta do Povo, aumentei ainda mais a transparência: os apoiadores (assinantes pagantes) recebem, todo mês, um diário de bordo com dados de audiência, ocorrências, planejamento e contabilidade.

Num mundo que já tem tanta informação sobre tecnologia, o que faz as pessoas assinarem e preferirem o manual?

A proposta do Manual é ser diferente de todos os demais sites de tecnologia do Brasil. Existem dezenas deles, cobrindo as mesmas histórias e, com frequência, da mesma maneira, e embora isso tenha um valor, no conjunto acabam gerando uma cobertura insuficiente, pois homogeneizada. Tento, com o Manual, preencher lacunas, fazendo questionamentos que outros sites às vezes não fazem e mantendo uma postura mais cética em relação ao “canto da sereia” das grandes empresas — que se beneficiam e exploram descaradamente uma certa complacência que existe por parte dos veículos especializados.

De uma maneira mais resumida, gosto de dizer que o Manual é uma publicação de tecnologia humanista. A área de tecnologia é bastante insensível e inconsequente em algumas questões vitais, como as sociais, e mesmo assim se enxerga como uma espécie de salvadora da humanidade, a nossa última ou melhor chance para superar todos os problemas que enfrentamos em nosso dia a dia. Isso não é verdade. A tecnologia é, sim, uma grande aliada, mas sem contribuições de outras áreas e limites, ela se torna um carro desgovernado, um perigo imenso. Sem falar que, às vezes, uma boa conversa é muito mais benéfica ao avanço de uma agenda do que um novo algoritmo. O Manual contesta o discurso das grandes empresas e, em alguma medida — pois um site pequeno tem severas limitações —, expõe suas falhas e cobra responsabilidades. Acho que, só por isso, a existência dele já se justifica.

Quem mais faz o Manual?

Além de mim, o Manual conta com mais três pessoas em sua pequena equipe. Temos o James Pond, já citado, que cuida do servidor e outros aspectos técnicos do site; a Gislaine Bueno, também daqui de Curitiba, que cuida do comercial do site, negociando ações com as empresas interessadas em anunciar no Manual; e o Guilherme Felitti, de São Paulo (SP), ex-jornalista e atualmente dono de uma empresa de análise de dados, a Novelo, que mantém uma coluna/podcast quinzenal chamada Tecnocracia.


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