Travesti, preta e cidadã honorária de Curitiba

Megg Rayara é primeira pessoa negra e trans a conquistar um título de honorabilidade na cidade

Megg Rayara Gomes de Oliveira nasceu na zona rural de Cianorte, na região Noroeste do Paraná. Logo pequena, foi morar na cidade e conta que a vizinhança era pobre e povoada por pessoas que migraram do campo para o centro urbano. Nas férias, ela trabalhava na roça a mando do tio. Durante o resto do ano, frequentava a escola que ficava a um terreno baldio de distância de sua casa. 

“No primeiro dia de aula do primeiro ano, a minha irmã mais velha disse pra eu me sentar na primeira carteira, porque lá ficavam as pessoas mais dedicadas. Eu entendi que aquilo era uma regra aplicada a todo mundo e me sentei, só que a professora me tirou de lá e me colocou na última carteira da última fila”, relembra. “Até eu começar a entender que havia uma rejeição a mim a outras crianças parecidas comigo, demorou muito tempo. E quando eu fui percebendo isso, ah, eu passei a me conformar com o fundo da sala de aula.”

Havia preconceito racial: Megg é negra. Mas também já havia transfobia – desde cedo ela se identifica como mulher, embora esse não tenha sido o “sexo” atribuído a ela no nascimento. “Eu não sabia que era uma pessoa trans, eu sabia que era uma menina. Com cinco, seis anos, eu amarrava uma toalha de banho na cabeça pra ter cabelo comprido. Pra mim, o que definia uma menina eram os marcadores externos, as roupas, o cabelo. E ter cabelo comprido parecia ser o suficiente, sabe? Eu achava que era tratada como menino por engano.”

A escola é que começou a descortinar esses preconceitos velados, fazendo com que ela entrasse num processo de introspecção. “A sala de aula foi o primeiro espaço de exclusão com o qual tive contato, e isso foi piorando à medida que eu fui crescendo. Então, o espaço da escola, pra mim, era muito ruim. Chegou o momento que eu não queria mais frequentá-lo.”

Toda essa história é, sem dúvida, um potencializador da revolução que, hoje, ela leva para a academia. Megg confessa que só continuou a estudar por uma pressão social: ela aprendeu que era preciso aliar o estudo ao trabalho para ser boa o bastante para o mercado. Só aos 20 anos, quando finalmente completou o ensino médio, ela veio para Curitiba motivada a completar sua transição de gênero e acabou descobrindo que também podia ocupar o espaço da universidade.

“A universidade era uma estratégia. O que mais me motivava era a minha transição, mas eu não queria me prostituir e acreditava que se tivesse uma formação acadêmica, conseguiria fugir da prostituição, só que não era bem assim que a coisa funcionava. O mercado de trabalho era e continua sendo excludente com as pessoas trans. Então, eu fui protelando esse processo”, conta. “Tanto é que quando eu tentei o mestrado, eu não pedi o uso do nome social. Eu defendi usando meu nome civil como estratégia de sobrevivência, embora a Megg já existisse. Isso é muito doloroso de lembrar.”

Professora

A força dos movimentos sociais foi importantíssima para que Megg persistisse na luta por um lugar na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ela tentou entrar para o mestrado em Educação quatro vezes, até conseguir. “Quando eu já estava no mestrado, queria ser doutora de todo jeito. Quando entrei para o doutorado, falei: bom, se eu consegui, também quero ser professora universitária, por que não?”, recorda-se. ”Foi um processo lento, principalmente por conta do racismo e da transfobia.” 

Em 2017, Megg Rayara se tornou a primeira travesti preta doutora em Educação do Brasil. Hoje, ela integra o quadro de docentes e coordena o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da UFPR. Mesmo com os títulos e conquistas, garante que o preconceito é presente e conta várias histórias de violência, mas jamais desiste da luta por uma educação mais inclusiva. 

“Certa vez eu tive uma reunião com o pró-reitor de cultura no prédio histórico e fui ao terceiro andar pra falar com ele. Quando saí do elevador, uma pessoa me disse: o que você está fazendo aqui? Eu falei: como assim? Por que tu tá me perguntando isso? Ela me respondeu: você não tem que ficar lá no subsolo? Eu respondi que aquele é um prédio público e onde estou não é da conta dela, sabe? As pessoas estão o tempo todo se incomodando com o fato de uma pessoa trans circular no espaço da universidade, o resultado disso é que eu tenho que ficar me demarcando politicamente o tempo todo.”

A própria trajetória de Megg dentro do departamento de Educação é uma escolha política. “Eu sempre penso em toda a minha trajetória escolar, desde a educação básica, ensino médio, até a minha formação na universidade, e penso em contribuir para a construção de um espaço plural. Hoje eu sei que muitas pessoas trans estão tentando ocupar a academia também motivadas por uma posição que eu venho adotando ao longo do tempo. Eu tenho dois orientandos trans no mestrado que se sentem confortáveis dentro da UFPR porque têm um espelho aqui.”

Para a professora, a universidade pública se faz com pluralidade. “Isso é fundamental pra que a gente consiga minimamente construir um lugar mais acolhedor, mais aconchegante pras pessoas que fogem da norma. Uma estrutura branca, higiênica, heteronormativa… Pra mim, isso não é universidade pública, ela precisa ser plural em todos os espaços. No corpo docente, discente, na área administrativa, no corpo técnico, enfim, a gente precisa dessa diversidade.”

Cidadã honorária

No ano passado, a vereadora professora Josete (PT) propôs à Câmara de Curitiba o título de cidadã honorária para Megg Rayara. Quando soube, a professora confessa que desconfiou do quanto seria difícil levar o plano a cabo, considerando o conservadorismo de Curitiba.

A votação foi simbólica, mas bastante positiva. Foram 29 votos a favor e duas abstenções de vereadores da bancada evangélica: Osias Moraes (Republicanos) e Thiago Ferro (PSC). Outros sete não votaram. Desta forma, o certificado assinado por Josete, pelo prefeito Rafael Greca e pelo vereador Tico Kuzma, presidente da Câmara, chegou às mãos de Megg na segunda-feira (21).

Foto: Megg Rayara

“Não vamos deixar de fazer a sessão solene, mas neste momento optamos por entregar individualmente a cada uma das homenageadas, por conta da pandemia”, explica a assessoria da vereadora, adiantando que a cerimônia será agendada quando a crise sanitária estiver sob controle. Além de Megg, outras três educadoras negras receberam o título, celebrando o Julho das Pretas: Iyagunã Dalzira Maria Aparecida, Dora Lúcia de Lima Bertulio e Diva Guimarães.

“A professora doutora Megg Rayara é um exemplo para todos e todas nós. Alguém que busca superar o preconceito e a discriminação no seu dia a dia. O título é um reconhecimento de sua luta e trajetória”, comemora Josete.

Megg também celebra a conquista, mas não deixa de cobrar avanços por parte do poder público. “Eu acompanhei a votação e achei surpreendente. Fiquei emocionada. É um reconhecimento do meu trabalho na universidade e no movimento social, mas ainda precisamos pensar na empregabilidade, no acesso à saúde e à educação e na segurança pública para pessoas trans, pois continuamos sendo assassinadas. Que o título também sirva para disparar esses debates.”

Ela ainda chama a atenção para o fato de que ser a primeira travesti preta a conquistar esse título em 2021 evidencia um processo de exclusão histórico. “Há uma negação da contribuição das pessoas trans para a construção da cidade. Vivemos em uma sociedade hipócrita e mentirosa. A mesma sociedade que nos coloca no primeiro lugar do ranking mundial de consumo de pornografia protagonizada por travestis é a que nos coloca no topo do ranking mundial de assassinatos a pessoas trans. Fica para reflexão: o que cada um pode fazer para mudar essa situação?”

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3 comentários em “Travesti, preta e cidadã honorária de Curitiba”

  1. Aracy Maria Borges Vasconcelos

    A determinação de Megg foi fundamental para ela chegar onde chegou. A força que existe dentro dela a fará alcançar novas metas. A educação é o principal fator para a realização de sonhos e soñhos.

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