Plano de saúde popular é proposta para “cliente saudável”

Enquanto operadoras e governo apoiam mudanças na saúde suplementar, especialistas avaliam que planos baratos e com poucas coberturas serão ruins para consumidores e SUS

Ainda não é um projeto de lei, mas o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM/MS), já sinalizaram apoio às propostas da Federação Nacional da Saúde (FenaSaúde). Elas visam novas regras para a saúde suplementar, o que inclui a oferta de planos de saúde populares, com preços mais baixos e coberturas reduzidas. As medidas, no entanto, são criticadas por especialistas da área da saúde e da defesa do consumidor. Eles garantem que tais mudanças trarão ainda mais problemas para o já sucateado Sistema Único de Saúde (SUS).

Entre as demandas das operadoras está a possibilidade de estipular seus próprios reajustes, hoje definidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O foco das empresas está no crescimento da comercialização de planos individuais – que hoje representam apenas 19% dos usuários – e na modulação de coberturas, isto é, a possibilidade de vender planos com diferentes e reduzidos serviços.

Um plano, por exemplo, só com atendimento ambulatorial, ou só com serviços hospitalares ou, ainda, apenas terapêutico. A ampliação das possibilidades de contratação, segundo a FenaSaúde, abriria espaço para novos usuários, como Luastel Neves, que hoje não conseguem pagar por um plano de saúde individual. “Desde que saí da empresa, há três meses, não pude mais manter o plano de saúde, pra mim e meu filho, e agora recorro ao SUS”, conta a jovem de 22 anos.

“Com opções mais acessíveis, temos convicção de que eles poderiam voltar para o sistema suplementar e, dessa forma, também ajudar a desafogar o SUS”, destaca a FenaSaúde ao Plural, por meio de nota.

A entidade representa 15 operadoras, que atendem cerca de 40% dos beneficiários do país. Suas propostas foram divulgadas recentemente, em um documento público, e agora circulam entre possíveis apoiadores no Congresso Nacional. Por enquanto, são apenas discussões, mas a intenção é revisar a legislação que rege o setor, definida pela Lei 9.656, de 1998.

As sugestões também foram apresentadas durante o 5.º Fórum da FenaSaúde, em Brasília, que teve a presença do ministro Luiz Henrique Mandetta, do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe Salomão, e do secretário especial da Previdência Social do Ministério da Economia, Rogério Marinho.

“Nossa agenda de propostas vai muito além de eventuais e desejáveis mudanças legais ou infralegais. Inclui, ainda, maior ênfase na atenção primária à saúde, com aumento das ações de prevenção a doenças; a adoção de novos modelos de remuneração que privilegiem o desempenho e não somente o volume de atendimentos médicos, com melhores desfechos para os pacientes; e o combate a fraudes e desperdícios”, reforça a entidade.

Na prática, a segmentação dos planos dividiria os atendimentos em módulos, com foco ambulatorial, hospitalar ou terapêutico. No primeiro, o paciente tem acesso apenas a consultas e exames. Já o módulo hospitalar inclui internamento e atendimentos de urgência e emergência. O tratamento, porém, dependerá do módulo escolhido. Se o procedimento não estiver no plano contratado, o paciente acabará precisando do SUS, que é responsável pelo atendimento de 75% da população brasileira.

“Concorrência predatória”

Apesar de ampliar a oferta dos planos, com preços acessíveis, a redução de coberturas preocupa especialistas da área da saúde, como a médica Ligia Bahia, doutora em Saúde Pública e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com experiência em Políticas de Saúde e Planejamento em Saúde Coletiva, ela avalia que as propostas apresentadas são equivocadas, pois aumentam o mercado mas não garantem a saúde. “Querem vender um plano que será ‘bom’ enquanto o cliente estiver saudável, mas péssimo se ele precisar usar serviços de saúde.”

Segundo ela, os planos já estabelecem uma “concorrência predatória” com o SUS. “Já empurram atendimentos de alto custo e idosos para a rede pública. Se houver coberturas ainda mais reduzidas, o plano servirá para que?”, questiona, destacando que este não é um posicionamento antimercado. “Se querem vender bugigangas, tudo certo; mas não recorram a uma mudança na lei para que as políticas públicas favoreçam o mercado.”

A médica admite que, na realidade brasileira, não seria possível atender os mais de 200 milhões de brasileiros com presteza e qualidade no SUS. Porém, “mais impossível ainda é supor que a população inteira será atendida pelo setor privado”.

A solução seria modernizar o SUS e financiá-lo adequadamente, cortando subsídios públicos para o setor privado. “Não é plausível que um país invista recursos extraídos de impostos para beneficiar uma minoria”, sustenta a doutora em saúde.

Outra saída seria “desestimular a dupla prática de profissionais de saúde, remunerando melhor quem optar pela dedicação ao SUS”.

Ligia Bahia acredita que a garantia da atenção à saúde é uma conquista democrática. “Se não temos um SUS efetivo é porque nossa democracia ainda é incipiente.”

Impacto no SUS

Para órgãos de defesa do consumidor, as medidas não atendem aos usuários e ferem a autonomia dos profissionais de saúde. Um manifesto contrário a elas é assinado por 35 entidades brasileiras e aponta os impactos das mudanças para o SUS.

“Hoje, as operadoras já não atendem e têm que empurrar pro SUS os tratamentos de alto risco, transplantes, procedimentos de alta complexidade. Com medidas como essas, a média complexidade também caberá ao SUS pois, se o paciente tiver um plano que vai cobrir internação mas não pronto-atendimento, ele vai ter que recorrer ao SUS e estará onerando o sistema”, analisa a coordenadora do programa de saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ana Carolina Navarrete.

Ela enfatiza que, mesmo hoje, com coberturas mais abrangente, o impacto público já é sentido. “Se você permitir a entrada de planos com cobertura reduzida, quem assume isso é o SUS. O consumidor vai pagar a mensalidade do plano de saúde para não ser atendido.”

A principal questão, diz Ana Carolina, é o poder de se alterar a lei para colocar no mercado algo que não vai atender à população. “Um plano com menos cobertura vai ser mais barato, mas não há garantia para que isso aconteça. Temos o caso clássico da taxa de bagagem, que se barateasse o custo iria diminuir o preço da passagem, e não foi o que aconteceu. Então, não há garantias pra isso”, avalia.

“O consumidor não tem condições de prever quais doenças ele vai ter, nem quais serão os procedimentos que ele vai precisar. Vai pagar uma mensalidade pra, quando precisar, ter negado o atendimento”, alerta a coordenadora.

Foi o que aconteceu com Patrícia (nome fictício), quando seu enteado precisou de uma ressonância magnética de emergência. “O plano dele até cobria, mas levava dias pra liberar. Como precisávamos naquele momento, fomos obrigados a pagar o exame, e não fomos ressarcidos. Então, não adiantou muito ter plano naquela hora, pois, se não tivéssemos o dinheiro, precisaríamos do SUS e aí ele morreria esperando”, diz ela, preferindo não se identificar.

Falta de funcionários tem provocado problemas no atendimento do Hospital de Clínicas de Curitiba, que atende exclusivamente o SUS. Foto: Mauren Luc

Planos coletivos x individuais

Um dos grandes objetivos das operadoras é voltar a movimentar a venda dos planos individuais, aqueles contratados por pessoas físicas, e não por meio de empresas ou entidades, como os coletivos, que não possuem regulação.

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) explica que os planos individuais têm duas grandes proteções, uma contra o cancelamento do contrato – que só pode ser feito em caso de fraude ou não pagamento – e o reajuste, definido anualmente pela ANS.

Em 2017, o aumento foi de 13%, caiu para 10% em 2018 e teve em 2019 seu percentual mais baixo, de 7,3%. “Enquanto isso, nos planos coletivos, que não têm regulação nenhuma, o reajuste foi entre 18% e 20%. A diferença é muito grande. Se você retirar a proteção dos planos individuais, teremos reajustes elevados, fazendo com que o consumidor não consiga se manter nos planos”, acrescenta a coordenadora de saúde do Idec.

O argumento da ANS para não regular os coletivos é de que o contrato é feito entre iguais, entre empresas, sindicatos, associações. “Só isso não tem respaldo empírico, pois o que vemos é o contrário. Estas instituições e empresas não têm poder de barganha frente aos reajustes e acabam só aceitando o que as operadoras impõem. Por isso, é necessário não tirar a proteção dos individuais, mas regular os coletivos também”, recomenda Ana Carolina.

As soluções, percebe, são técnicas, e dependem do regulador unicamente. Tem alguns problemas neste mercado que não é a decisão individual do consumidor que vai resolver, mas operações regulatórias. É um plano estrutural que precisa ser resolvido via regulação, sem necessidade de alteração na lei”, defende.  

Jurisprudência

O advogado Gabriel Schulman, doutor em Direito, professor na Universidade Positivo e membro da Comissão de Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná (OAB-PR) lembra que vários pontos destas propostas já estão sob análise da jurisprudência, como o reajuste por faixa etária (até 59 anos), que passou a ser admitido pelo STJ há alguns anos.

“A demanda de uma reformulação do sistema não é só das operadoras, mas também dos consumidores. A própria ANS vem implementando uma série de mudanças na sistemática que adota, seja por reajuste de planos individuais, recentemente alterados, seja na própria cobertura”, aponta. “Essa compatibilização entre legislação e jurisprudência deve ser levada em conta no cenário pois, do contrário, se combina uma coisa e se faz outra, seja do ponto de vista da operadora ou do consumidor”, frisa Schulman.

Uma reorganização do sistema, segundo o advogado, deve considerar o interesse de todos, especialmente a necessidade dos consumidores serem aptos a comparar os diferentes produtos/planos. “Isso é importante para assegurar a concorrência, permitindo que as operadoras que prestam melhor serviço tenham vantagens frente às demais com menor abrangência e rede de prestação.”

Agenda regulatória

Embora reconheça que entidades possam promover debate setorial, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) informou ao Plural que já vem discutindo medidas para o enfrentamento dos desafios do setor. Os temas estão formalmente definidos na Agenda Regulatória da ANS, que prevê 16 temas, divididos em quatro eixos estratégicos, com foco em:

– Garantia de acesso da população aos planos de saúde;

– Adoção de modelos eficientes de remuneração e atenção à saúde que garantam a sustentabilidade do setor;

– Melhorias na cobertura assistencial, incluindo o aperfeiçoamento do processo de revisão do Rol de Procedimentos;

– Adoção de condutas prudentes na gestão das operadoras.

A saúde suplementar no Brasil

Várias operadoras oferecem atendimento em clínicas e hospitais próprios. Foto: Clinipam

Atualmente, no Brasil, são 47,2 milhões de beneficiários de assistência médico-hospitalar e 23,6 milhões com cobertura exclusivamente odontológica. Há, no país, 749 operadoras de planos médicos e 289 exclusivamente odontológicos. Os números são da ANS e da FenaSaúde e revelam que na saúde complementar atuam 78% dos médicos e 138 mil ambulatórios. Em 2018, foram 1,58 bilhão de procedimentos médicos e odontológicos realizados por planos privados de saúde.

Os dados, de novembro de 2019, mostram que apenas 19% dos usuários (9 milhões) possuem plano individual ou familiar, os outros 81% (38 milhões) usam planos empresariais (67%) ou por adesão (14%). A faixa etária com a maior cobertura assistencial privada está entre 30 e 40 anos, com 9,6 milhões de usuários.

Por segmentação, a cobertura assistencial é, em sua maioria, hospitalar com obstetrícia (54%), seguida pela odontológica (34%). Hospitalar sem obstetrícia representa 4% da cobertura e os que possuem apenas assistência ambulatorial representam 3% do total de usuários.

Por modalidade, os planos médicos hospitalares são compostos, na maior parte, por Medicina de Grupo (38%) e por Cooperativas Médicas (37%). Também compõem o quadro seguradoras especializadas em saúde (13%), empresas com autogestão (10%) e filantrópicas (2%).

No Paraná

No Paraná, 2,8 milhões de pessoas dispõem de planos de saúde e 1,3 milhão de plano odontológico. A maioria dos usuários é mulher (1,5 milhão) e possui entre 30 e 35 anos (286 mil). O tipo de cobertura mais contratado é o hospitalar com ambulatório e obstetrícia (1,4 milhão). Atualmente, 68 operadoras possuem registro ativo no Estado, sendo a maioria integrante de Cooperativas Médicas (que atendem 1,5 milhão de usuários) e de Medicina de Grupo (759 mil usuários).

Só em Curitiba, 25 operadoras atendem 977 mil pessoas que pagam pela saúde suplementar, sendo 552 mil com planos odontológicos. A maioria também é mulher (522 mil) e tem entre 35 a 40 anos (100 mil). Seguindo a tendência nacional, a cobertura mais contratada pelos usuários é hospitalar com obstetrícia e ambulatorial (428 mil), seguida do hospitalar com ambulatorial sem obstetrícia (287 mil). Na Capital, 398 mil pessoas possuem planos administrados por Cooperativas Médicas e outras 356 mil por Medicina de Grupo, as duas modalidades mais procuradas por aqui.

Mercado

De acordo com a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), vieram dos planos de saúde 91% das receitas dos principais hospitais do país em 2018. O número equivale a 80% quando se fala em laboratórios.

Entre 2000 e 2014, o setor de saúde suplementar registrou crescimento contínuo. O número de usuários passou de 30 para 50 milhões no período. Entre 2009 e 2019, os consumidores subiram de 42 para 47 milhões, sendo 50 milhões em 2015. De lá pra cá, no entanto, três milhões de pessoas deixaram de contar com a cobertura dos planos.

Estudo publicado pela Confederação Nacional de Municípios, em 2018, aponta que, desde 2008, 41 mil leitos hospitalares foram fechados na rede pública, enquanto 18 mil leitos privados foram abertos no mesmo período.

Em 2018, segundo a ANS, o setor de saúde suplementar movimentou R$200 bilhões, dos quais R$161 bilhões foram repassados aos prestadores de serviços (hospitais, clínicas, médicos, laboratórios, etc). Equivale dizer que a saúde suplementar respondeu por quase 3% do PIB nacional, compara o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS).

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