A última noite de um viciado em drogas lícitas

O remédio contra a insônia foi deixando Júnior cada vez mais fragilizado. Até que ele optou pelo suicídio

Nenhuma noite era realmente tranquila para Francisco* desde a morte da esposa. Além do luto pela perda da companheira com quem ficou quase meio século casado, ele precisava enfrentar a condição do filho mais velho, único que morava com ele. Aos quarenta anos, Júnior* parecia ser consumido pelos remédios que tomava. Um vício em drogas – com a diferença de que eram drogas lícitas.

Apesar de tudo, aquela noite não parecia ser especialmente dramática. Júnior dava a impressão de estar mais ou menos tranquilo, na comparação com outros dias. À noite, disse que ia tomar um banho antes de dormir. Seu pai achou que tudo estava normal, mas em breve descobriria que não. Horas depois, seria ele a abrir a porta do banheiro e a encontrar o filho enforcado.

“O pai me ligou na hora. Ele não sabia o que fazer, não queria ficar sozinho lá”, diz a outra filha de Francisco, Júlia, que morava com marido e filhos em outro bairro de Curitiba. Depois de anos morando em São Paulo, ela tinha voltado para cuidar da mãe, à beira da morte, no fim de 2021. Depois, resolveu ficar em função do pai e do irmão.

Todo mundo que convivia com Júnior sabia que nos últimos anos a situação dele tinha se deteriorado. Músico, ele tinha uma filha, que morava com a mãe. Depois da separação, Júnior reencontrou a paixão de sua adolescência e ficou casado por oito anos. Parecia que a situação era estável, mas só para quem não sabia da dependência química.

O remédio em que Júnior se viciou é o Zolpidem. Trata-se de um medicamento psiquiátrico usado para tratamento de insônia. O remédio tem todas as liberações e em tese não há nada de errado em usá-lo com moderação. Basta olhar a bula, no entanto, ou fazer uma breve busca no Google para perceber que existe um limite: o tratamento deve ser curto, ou o risco de dependência é considerável.

Foi o que aconteceu com Júnior. Ele começou a usar o medicamento quando tinha vinte e poucos anos, mas ao contrário do que deveria ter acontecido, nunca parou. “Durante muitos anos ele continuou tendo uma vida normal. Funcional”, diz a irmã. “Mas o vício foi se agravando, e de uns três anos pra cá, era visível que ele estava sofrendo.”

O casamento acabou. Por mais paciente e apaixonada que fosse, a esposa de Júnior já não conseguia ver nele o homem com quem tinha se casado. Ele tinha momentos de comportamento difícil, parecia dopado, não conseguia mais trabalhar. Sozinho, ele continuou com o vício.

O Zolpidem é um remédio que só pode ser comprado com receita médica, por isso Júnior foi aprendendo com o tempo a obter prescrições: ia de posto de saúde em posto de saúde; quando não conseguia assim, ia a uma UPA; quando já não conseguia via SUS, ia a um médico particular.

As receitas encontradas pela família depois da morte mostram que os médicos davam prescrições de quantidades enormes do medicamento. Uma delas deu permissão para que Júnior comprasse nada menos do que 120 comprimidos.

Depois da doença e da morte da mãe, a situação se agravou. “Ele tomava os comprimidos não de um em um. Punha seis na boca de uma vez só”, conta a irmã, que diz não entender como os médicos continuavam receitando uma droga poderosa sabendo que havia um limite de tempo de uso.

Morando de volta com o pai, Júnior passou a enfrentar dificuldades no relacionamento com a família. Teve de ouvir que era um dependente, um viciado. Ele dizia que não era drogado, já que o medicamento era lícito. Mas cada vez mais seu comportamento era prejudicado pelas substâncias químicas.

Chegou um momento em que não era mais possível ver tudo aquilo sem tentar alguma reação. A irmã conseguiu um parecer médico pedindo a internação involuntária de Júnior. “Ele aceitou. Nem reagiu. Mas uns dias depois ele me provou que precisava fazer um trabalho já marcado, para pagar as contas. Acabaram liberando para ele sair”, ela conta.

Júnior continuou seu percurso pelos médicos atrás de receitas para aliviar sua dependência. A última receita encontrada pela família tem estampada a data do suicídio. A prescrição era para mais duas caixas do remédio. Mas talvez ele tenha decidido que aquilo já não amorteceria mais o que ele sentia. À noite, tudo acabou para ele.

Francisco passou a viver com a filha, para não ficar sozinho na casa em que perdeu a esposa e o filho. Hoje eles pensam em voltar todos para lá: a família que restou depois das duas tragédias recentes, unida na casa onde sempre estiveram juntos.

Mas além da dor, restou a indignação de ver que o vício que aparentemente levou ao destino final de Júnior teve a cumplicidade de tantos médicos que viram o sofrimento dele e optaram simplesmente por dar novas receitas do remédio que causava sua dependência.

“Eu nem sei se devia falar sobre isso. Mas alguém tem que contar essa história para que tomem providências e criem mecanismos para evitar que mais gente sofra do mesmo jeito. Acho que seria preciso um jeito de registrar as receitas de todos os médicos para os outros saberem o que está acontecendo e não receitarem mais. Não sei. Mas alguma coisa precisa mudar”, diz a irmã.

*Os nomes foram trocados para proteger a privacidade da família.

Sobre o/a autor/a

4 comentários em “A última noite de um viciado em drogas lícitas”

  1. Gostaria de saber qual clínica de recuperação procurar tb tomo 15 por dia e um inferno pois não estou mais aguentando viver assim .peço ajuda para qie meu destino não seja como o do rapaz que se suicidou.

  2. Ja tive esse vício, nesse mesmo medicamento, ele causa um bem estar, parece que tu está flutuando, depois vem a depressao cada vez mais forte e tu passa a abusar para viver em “outro mundo” longe de todos os sentimentos ruins.
    Precisei ser internada e foi muito difícil lidar com a situação, precisei perder tudo para me dar contar, foi muito triste. Após a recuperação nunca mais usei e hoje consigo viver uma vida muito melhor, porém o sono regular nunca mais voltou após 3 anos

  3. Débora Iankilevich

    Olha, jamais imaginei que vcs iriam explorar essa história tão difícil. Qual o objetivo disso? Expor que ele não teve o atendimento psiquiátrico necessário pelo SUS? Que tipo de suporte a família deu? Não tinham recursos necessários para apoia-lo? No q gastaram o $ da vaquinha que fizemos e que envolveu dezenas de jornalistas e outros apoiadores?

  4. Paulo Roberto de Andrade Mercer

    Parabéns caro amigo jornalista Rogerio Galindo pela maneira ética e bastante clara como abordou o tema do uso de drogas lícitas , e do perigo que isso representa . E do “alerta” que devemos ter para o risco do uso indiscriminado de medicamentos que devem ser prescritos somente com receita médica, mas que sabemos da facilidade que existe na obtenção destas – infelizmente – e no descaso com que muitos veem , não dando a devida relevância para o risco inerente deste uso como se sabe.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima