“Apátridas” é um livro importante sobre um país desimportante

Romance de estreia de Alejandro Chacoff, o crítico literário da revista “Piauí”, cativa pelo esforço de extrair algum sentido de um cenário desolador

A maneira como o romance “Apátridas” foi escrito tem um efeito compulsivo. É difícil largar o livro, apesar de não haver um ápice na narrativa – a sequência de eventos narrada por Alejandro Chacoff é monótona, um pouco como a paisagem de Cuiabá, no Mato Grosso, onde se passa a história. Nada chama muita atenção. Nada é muito bonito. Uns personagens são elusivos, outros são canalhas. O pai do narrador consegue ser os dois.

Uma das coisas que chamam atenção é o esforço do protagonista para extrair um sentido desse cenário, dessas pessoas. E desse país. O Brasil não é para amadores, diz a frase de Tom Jobim, e ela é perfeita para “Apátridas”. No sentido de que não se vive no Brasil por amor, mas sim por obrigação ou por falta de opção.

A questão é que o narrador tem, sim, opção de viver em outro lugar. Filho de um chileno com uma brasileira, ele passou a infância nos Estados Unidos, enquanto a mãe fazia uma pós-graduação e o pai supostamente trabalhava num banco – situação confusa que nunca é esclarecida. Depois, a família se mudou para o Chile, até que os pais se separaram. Mãe e filhos voltam para o Brasil e o pai deixa de existir, a não ser por alguns telefonemas que faz a fim de pedir dinheiro para o ex-sogro.

A família da mãe é rica. O avô José é dono de um cartório e tem dinheiro suficiente para distribuir a quem pede, e vários na família contam com essa ajuda. A família é um exemplo comum da classe alta brasileira: religiosa, simples, desinteressada do mundo. Nesse elenco, o avô José se destaca porque é autêntico e bom, não se incomoda de ajudar até o ex-genro parasita. Porém, a compreensão que o livro tem do patriarca da família – e de todos os outros personagens – é ligeira, como se faltasse ao narrador uma disposição maior para decifrar os outros. Ou talvez o problema seja dos personagens e não exista muito que ser decifrado.

Assim que completa 15 anos, o protagonista consegue estudar em São Paulo. Ele quer se tornar um escritor e considera ganhar a vida no campo diplomático, aproveitando o fato de que fala inglês, espanhol e português. Quando termina os estudos e consegue um emprego, uma ocupação que não o interessa muito e que mal consegue explicar, ele troca São Paulo por Londres. A mãe o pressiona a voltar e o rapaz contempla o retorno para o Brasil com o mesmo interesse morno que parece reservar a todo o resto.

 “Apátridas” não é um passeio. Em resumo, é um romance importante sobre pessoas e um país melancolicamente desimportantes.

Serviço

“Apátridas”, de Alejandro Chacoff. Companhia das Letras, 192 páginas, R$ 49,90.

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Era mais ou menos assim também com a vida que levávamos naquele lugar novo, o lugar onde eu supostamente nascera. Uma vida viscosa, densa, empelotada. Um ano já havia passado desde a nossa chegada. Apertados no quarto com três camas de solteiro, vivíamos em meio a um drama rococó diário – repleto de gritaria, piadas fora de hora, interrupções constantes na mesa e visitas-surpresa de parentes falidos –, e no começo o que eu mais queria era rejeitar essa vida, cuspi-la fora. Mas era impossível fazer isso. Rejeitar um insulto ou uma piada é algo factível (embora nem sempre seja fácil fazê-lo sem se prestar ao ridículo); mas como rejeitar um modo de vida que vinha de gerações, o próprio ar que se respira? As pelotas insalubres tinham de ser engolidas de uma só vez, com a esperança de que em algum momento mais magnânimo fosse possível apreciar o todo. E é possível apreciar o todo? Não sinto que eu esteja sendo justo ao descrever aqueles anos. Mas ninguém escreve para ser justo.

(Trecho de “Apátridas”, de Alejandro Chacoff.)

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