Quando um algoritmo decide o que você vai comer

A pandemia, o mercado de delivery e os efeitos sobre o que você come

É difícil dizer um aspecto das nossas vidas que não seja mediada por uma máquina. Nossas relações pessoais, as notícias a que temos acesso, as músicas para quem somos apresentados, a democracia e até mesmo a porcentagem de isolamento social é fornecida pela tecnologia. É a geolocalização do Google que nos dá a porcentagem de isolamento social pela Covid-19.

Talvez você ainda não tenha notado, mas outro aspecto da nossa vida passou a ser ainda mais impactado pela tecnologia, o seu paladar. Com a necessidade de isolamento social, mais pessoas buscaram nas plataformas de delivery uma forma evitar sair de casa e continuar fazendo compras, tanto no mercado, como em restaurantes, farmácias. E para os restaurantes, o delivery se tornou quase que exclusivamente a única forma de venda possível ou, no mínimo, extremamente necessária. Durante a pandemia, alguns decretos permitiam o funcionamento de restaurantes apenas por delivery, drive-thru ou retirada.

Agora, infelizmente, nesse abre e fecha de mentirinha que estamos vivendo no Paraná e em Curitiba, os restaurantes foram liberados para funcionar, mas ainda com a capacidade reduzida. Nessas alturas do campeonato, depois de 4 meses esperando uma quarentena que nunca aconteceu, é cada vez mais difícil ver no horizonte o dia que ela vai acontecer. Enquanto isso, 60% das pequenas empresas tiveram seu acesso a crédito negado durante a pandemia.

A alternativa é aceitar que o delivery se imponha. Tanto para você que faz o pedido, quanto para o restaurante que precisa entrar no delivery, as plataformas já estabelecidas como Ifood, Uber Eats, Rappi, 99 Food facilitam o processo, pois têm a maioria do mercado, a tecnologia pronta e a logística de entrega já feita. O custo é que é bem alto, as taxas variam de 20% a 29% e no pacote vem junto a precarização do serviço do entregador, que bem fazem de se mobilizar e protestar de ter que carregar uma mochila nas costas com comida sem ter alimentação fornecida pelos deliverys, além de nenhum suporte caso contraia o coranavírus por se expor rodando por aí numa pandemia.

As plataformas são feitas para parecer “lojinhas virtuais” de comércios, mas elas não são só uma loja, elas também são um buscador. E como buscador ali tem um algoritmo que escolhe o que privilegiar segundo critérios não totalmente transparentes. Quando você digita “pizza” no Ifood, uma série de critérios entram em operação para escolher quais restaurantes mostrar. Para quem tem um restaurante, esses critérios também não são transparentes. Mas uma coisa dá para ter certeza: quem tem os menores preços, subsidia cupons de desconto de R$ 10 ou R$ 20 do cliente e frete grátis, tem mais chances de sair na frente. E são chances mesmo, porque além disso as plataformas fazem parcerias com alguns restaurantes já estabelecidos ou abrem um restaurante em um local que possui demanda e tem um local para atender.

Entregadores no Brasil inteiro decidiram parar em nome de melhores condições de trabalho. Crédito da foto: Rubens Rodrigues

É fato que as plataformas têm vários problemas, mas quando elas viram quase a única alternativa para que milhares de pessoas comprem comida, o que você come ou deixa de comer também é decidido por um algoritmo. E assim como qualquer algoritmo, as plataformas não estão muito preocupadas que você fique dentro da sua bolha.

Ali na plataforma todas as suas opções de alimentação são reduzidas a categorias: oriental, orgânico, sem glúten, pizza e hambúrguer. Dificilmente você vai pedir algo que não tenha já experimentado antes. Você pode até pedir pizza de uma pizzaria nova, mas dificilmente vai pedir um prato que nunca experimentou ou tem referência. E é aí que mora o problema, a plataforma de delivery é um péssimo garçom.

Falo isso por experiência própria. Eu tenho um restaurante que só está fazendo delivery desde o início da pandemia. Nossa cozinha faz uma ponte entre a culinária latina e a asiática. Para se adaptar ao “novo normal” foi necessário tirar alguns pratos que não são conhecidos, mas que aqui no nosso espaço físico podíamos apresentar. Na prática, meu menu ficou um pouco menos latino porque eu sei que pratos asiáticos são bem mais conhecidos que os pratos peruanos que eu servia. Tentei fazer isso sem deixar de manter a nossa identidade, se abrir lá tem karê com pinhão, um pé no Japão e o outro pé aqui no Paraná.

Acompanho restaurantes famosos no Brasil e muitos deles durante a pandemia tiveram que fugir para esse lugar mais óbvio e menos experimental. É estrelado Michelin, mas teve que mudar e servir um PF de arroz com feijão. Isso não é um problema.

O problema surge quando tem muito mais gente que sabe o que é um fish n’chips do que uma pachola, prato típico de Jacarezinho. Nossas referências de culinária são muito influenciadas pelo que nossa própria família comia, pelos lugares que viajamos e se experimentamos coisas novas e também pelos programas de culinária e realities de TV. Dia desses teve uma participante desta masterchef que ficou decepcionada porque a prova pedia para que os participantes usassem uma cesta básica. Sem brilho e visivelmente abalada a participante confessa nos intervalos que não estava preparada. Queria ter a oportunidade de mostrar seu ragu de pato.

A pachola (arroz soltinho com frango refogado e dourado) é um prato típico de Jacarezinho. Crédito da foto: divulgação

Essa aura de comida “chique” que alguns pratos têm e outros não, ajuda a apagar nossas próprias raízes culinárias. Nossas matrizes indígenas, africanas e latinas não têm o mesmo valor para nós mesmos da famosa culinária francesa. Quem venceu a colonização também venceu no sincretismo do nosso paladar. Nem sabemos mais qual é a culinária brasileira. Comemos comida italiana, asiática, espanhola, francesa. Comemos fast-food. Mas não comemos a comida do nosso próprio continente. Um paladar colonizado.

O filósofo de comunicação Marshall McLuhan tem uma reflexão muito importante e cada dia mais atual. Para o pensador, os meios de comunicação, ou seja, a tecnologia empregada para carregar mensagens, são como extensões do nosso corpo. Um carro seria como a extensão do seu sistema motor. Uma roupa seria a extensão da sua pele, porque cada uma dessas coisas, carros ou roupas, também são uma forma de tecnologia. O problema apontado por McLuhan é que nesta transposição da mensagem através da tecnologia, o meio utilizado também carrega consigo uma mensagem própria. Se você transporta um quadrinho para um cinema, a obra final é um pouco quadrinho e é um pouco cinema. Ele resume em uma frase simples e poderosa, o “meio é a mensagem”.

Se olharmos para a plataforma de delivery como uma extensão do nosso paladar, não tem como o nosso paladar também não ser um pouco algoritmo. Ficamos ali na zona de conforto, mudando só a pizzaria da pizza que vamos pedir. E é assim que aquela inocente loja de restaurantes no seu smartphone reforça e privilegia aquilo que ela acha que você gosta baseado naquilo que as pessoas mais pedem.

A tecnologia é um mau garçom. Ela acha que sabendo seu endereço, seus dados, quantas vezes você pede hambúrguer na semana, ela sabe tudo que você gosta e vai gostar na vida. Ela não está muito preocupada que você experimente coisas novas. Ela quer que você simplesmente coma, fique na sua bolha e tente esquecer a precarização do trabalho, o modelo insustentável para pequenos restaurantes e o tanto de lixo plástico que o delivery gera, enquanto você espera sedento o próximo cupom de promoção. Se uma tecnologia de rede social faz um estrago imenso em uma democracia, imagina o estrago que uma tecnologia faz em toda uma cultura alimentar. Se você anda pedindo muito delivery, seu paladar de um jeito ou de outro também é um pouco delivery. E aí, o que você ou o aplicativo andam escolhendo?

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