É bebida ou é remédio?

Como a relação entre remédios antigos criou a cultura tomar drinks de hoje

Se você tem idade o suficiente para já ter tomado Biotônico Fontoura, já experimentou uma cultura completamente diferente do que a de um millennial. Em épocas passadas, o álcool era tão remédio como qualquer outra droga de farmácia, não muito diferente de uma Neosaldina que hoje você compra em qualquer farmácia e nem perde muito tempo da prateleira até o caixa.

Antes de existir energia elétrica ou qualquer sistema de refrigeração, o álcool era um dos conservantes mais potentes que existiam. A medicina era extremamente rudimentar, então para comprar um remédio as pessoas dependiam do farmacêutico ou boticário em seus herbários conhecidos como boticas ou apotecários. Como não tinha como manter as ervas medicinais sem estragar de outra maneira, elas eram mantidas infusionadas em álcool em garrafas. Então todo remédio antigo era um pouco cachaça, um pouco remédio, não dava para separar.

Era uma outra época, até tomar água de torneira podia ser venenoso e fatal. Isso se houvesse água para tomar ou torneira.

Essa cultura do álcool como remédio para “animar os espíritos” é tão antiga quanto a humanidade. Tanto que a palavra para denominar destilado em inglês é spirits, uma palavra que tem o significado tanto de temperamento ou disposição, presente em expressões como high spirits (alto astral, em tradução livre), até espírito como a alma desincorporada. E por fim, o nome de bebidas de qualquer natureza. Gim, Vodka, Rum, todos são spirits (destilados). Aqui na nossa terra, essa relação fica clara naquela famosa frase popular, “tomar cachacinha para firmar o pulso”.

Quem te dava a receita da sua dose de álcool e ervas, de acordo com o tamanho da sua moléstia, não era o bartender e sim o seu próprio farmacêutico, que sabia qual era a dose recomendada para te curar. Hoje até é bizarro pensar que um médico possa te mandar de volta para casa após uma consulta com uma prescrição de beber para curar alguma moléstia que não seja a sofrência. Mas volto ao biotômico. Se você tomou essa bebida horrorosa, amarga e com álcool na infância, te pariram nesse mundo que a bebida era uma droga legalizada, era um remédio para curar de histeria, tuberculose, lepra, escarlatina e o que fosse.

Os farmacêuticos não eram bem profissionais treinados, eram pessoas com um saber mais empírico, que viviam na fronteira entre o mágico e o saber popular. Era comum que cada farmacêutico criasse suas próprias fórmulas. Foi somente no século XIX que a farmácia começou a estudar componentes químicos e a criar o que é hoje a indústria farmacêutica.

Aqui no Brasil temos a nossa cultura de garrafadas medicinais, uma mistura de ervas medicinais infusionadas em bebida alcóolica. E não é uma cultura que ficou presa no passado não. Lembro bem de uma garrafa que meu pai ganhou de presente de um amigo que era feita por uma benzedeira para curar problemas respiratórios. Ele tomava religiosamente a mistura de cachaça, mel e alguma coisa que a gente não sabia bem todo dia de manhã. Depois de um mês de tratamento, o resultado foi um pico na diabetes. O tratamento precisou ser encerrado.

Foi dessa origem medicinal que a coquetelaria surgiu. De misturar ervas e álcool para curar doenças. Muito dos elixires antigos infusionados em álcool ou não são vendidos até hoje, como o próprio Biotônico Fontoura, emulsão Scott e aqueles remédios antigos. Já outras misturas de ervas amargas acabaram virando bebidas feitas para drinks. Perderam sua função medicinal e viraram meramente recreativos. E há muitos exemplos dessa relação.

O boticário era um tipo rudimentar de médico, mas ao mesmo tempo era um empreendedor. Cada um criava suas receitas poderosas para curar todo tipo de problema. O segredo era guardar a receita à sete chaves. Eles se aproveitavam da crença da “histeria” em massa para vender seus bálsamos. Muitos levavam a sério o negócio de curar, outros eram meros charlatões. O resultado no fim das contas era quase o mesmo, não servia para curar muita coisa.

Na busca pela cura de doenças dos séculos XVIII e XIX, ingredientes viciantes também foram misturados nas receitas milagrosas, como extratos de morfina, ópio, cocaína e cannabis. Essas substâncias viciantes são exemplos de como a medicina ancestral era bastante freestyle.

Séculos atrás quando um caso de tênia podia ser fatal para uma criança, a alternativa era engolir uma poção com bitters (tradução: amagos), uma bebida amarga feita de uma mistura de ervas e álcool, tinturas, extratos, destilados com álcool caseiro e alguma substância digestiva para ver se dava a sorte de curar. Dessa mistura de ingredientes “farmacêuticos” vem o nome coquetel. Ou seja: uma mistura.

Aos poucos essas misturas medicinais foram virando coquetéis, não medicinais, mas recreativos mesmo. Um exemplo dessa relação história é a criação do drink Sazerac e a bebida amarga de ervas Peychaud. No início do século XIX, o apotecário haitiano Antoine Amedie Peychaud montou uma loja em Nova Orleans para seus remédios. A história de Antoine e de seu Peychaud começa em 1795, quando seu pai foi forçado a fugir da Ilha de San Domingo e da plantação de café de sua família, depois que os escravizados se rebelaram e os expulsaram de lá. Chegando nos Estados Unidos, ele decidiu criar uma loja para seus tônicos com o nome de American Aromatic Bitter Cordial. Seu principal produto era o amargo Peychaud. Suas receitas secretas eram feitas para curar problemas estomacais. Com o tempo, eles perderam essa função e foram virando ingredientes para drinks. Antoine servia também seus tônicos com bebidas, como o brandy. Brandy é uma aguardente de vínica produzida pelo processo de destilação de vinho, mas o nome oficial é uma denominação de origem, só o título brandy feito na região de Cognac.

Imagem de um sazerac do Cosmos. Crédito da foto: Guto Souza

Para continuar a história do Sazerac, o dono de um bar de Nova Orleans desistiu do ramo para ser vendedor de uma marca de conhaque da França, a Sazerac-du-Forge-et-fils de Limonge. Em algum momento entre 1850 e 1859, entre os negócios do vendedor de conhaque, o bar que ele vendeu chamado Exchange Alley e o boticário Peychaud surgiu a receita do drink de nome Sazerac, em homenagem a marca francesa, que consistia em uma mistura de conhaque, o bitter Peychaud e açúcar.

A receita recebeu várias modificações ao longo do tempo, mas é na mistura de uma bebida amarga com função medicinal e conhaque que surgiu um dos drinks mais famosos da coquetelaria.

Como diz meu marido: o equilíbrio na vida é um pouco de droga e um pouco de remédio. Um coquetel é exatamente isso.

Para ir além

https://www.eater.com/2015/3/20/8157777/the-rise-of-the-apothecary-cocktail

https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-11042018000100248&script=sci_arttext&tlng=pt

https://www.diffordsguide.com/pt-br/encyclopedia/504/cocktails/sazerac-cocktail

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Mentiras sinceras me interessam

Às vezes a mentira, ao menos, demonstra algum nível de constrangimento, algum nível de percepção de erro. Mas quando a verdade cruel é dita sem rodeios, o verniz civilizatório se perde

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima