App ajuda deficientes a escapar de armadilhas urbanas

"Waze dos deficientes", desenvolvido em Curitiba, ganha o mundo. Usuários classificam acessibilidade de lugares e trajetos

Buracos, calçadas, falta de rampas de acesso. Uma simples caminhada pelas ruas de Curitiba pode ser um desafio para qualquer pessoa, imagine para quem tem alguma deficiência física. Dependendo do caminho, o risco é grande – sem falar no transtorno.

Com o objetivo de facilitar o trajeto e melhorar a acessibilidade, o analista de sistemas Valmir Marques decidiu criar um aplicativo para celular que mapeia, com a colaboração dos usuários, os obstáculos encontrados nas ruas. Batizada de MoovDis, a ferramenta foi desenvolvida durante o projeto de mestrado de Marques em Computação Aplicada, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Na prática, o sistema por trás do aplicativo é bem simples: ele funciona por meio da função de geolocalização do smartphone, e é uma mistura de Waze com TripAdvisor, combinando informações sobre mobilidade e avaliando estabelecimentos.

“Se você estiver andando pela rua, pode marcar e tirar fotos de problemas como buracos, obstáculos no caminho, falta de rampa, obras e calçadas estreitas. Também é possível traçar uma rota entre um endereço de partida e outro de chegada, em que o aplicativo calcula qual é o melhor trajeto a ser tomado”, diz Marques.

O lugar é acessível?

As funções do MoovDis não param por aí. O usuário tem ainda a possibilidade de avaliar estabelecimentos, como bares, restaurantes e agências bancárias, em três categorias: acessível, parcialmente acessível e não acessível. “Nessa classificação, a pessoa informa como são as condições do banheiro, se existem rampas, a facilidade de circulação interna e até mesmo o mobiliário reservado para cadeirantes”.

Lançado em 2018, o aplicativo já registra mais de 500 downloads e possui 300 usuários ativos. E engana-se quem pensa que a ferramenta só é utilizada em Curitiba. Ela já alcançou outras cidades do Brasil e chegou ao exterior, em países como Estados Unidos, Reino Unido, Argentina, Portugal e Equador.

Interface do aplicativo.

A pessoa informa como são as condições do banheiro, se existem rampas, a facilidade de circulação interna e até mesmo o mobiliário reservado para cadeirantes

Valmir Marques, criador do aplicativo

Segundo o analista de sistemas, além de notar os problemas de mobilidade nas calçadas, debater a importância do trabalho colaborativo também foi essencial para a criação da ferramenta. “No grupo de pesquisa que participei na universidade, nós sempre discutimos conceitos em que a inteligência e a colaboração causam diferença na vida das pessoas e algum tipo de impacto social. Foi pensando nisso que decidi criar o aplicativo”, explica.

Aprovado por quem entende

Para testar o produto, Marques pediu auxílio para a Associação dos Deficientes Físicos do Paraná (ADFP), que tem sede na capital paranaense. O aplicativo foi muito bem recebido e aprovado pela entidade, que viu no projeto uma oportunidade de conseguir bons resultados, mesmo a longo prazo.

O diretor de Comunicação da ADFP, Clodoaldo Zafatoski, relatou que, no período de testes, a prefeitura realizou algumas mudanças na estrutura das calçadas no entorno do prédio da associação. “Não é possível saber se foi resultado direto do aplicativo, mas o fato é que as rampas de acesso foram substituídas e arrumadas, e o semáforo ganhou um sinal sonoro.”

Zafatoski nasceu com mielomeningocele, uma doença que provoca a má-formação da coluna vertebral e, por isso, o uso de muletas se tornou indispensável para ele. Assim, como sempre teve um olhar atento para as calçadas por onde anda, o diretor encontrou no MoovDis uma forma de compartilhar os lugares com acessibilidade e registrar os problemas que já notava no cotidiano.

Clodoaldo Zafatoski: passando problemas com amigo cadeirante no Largo da Ordem. Foto: Marina Sequinel/Plural.

“Quem tem deficiência vê as coisas de um jeito diferente. Ao fazer o mapeamento, eu acabo ajudando também outras pessoas, que podem desviar de obstáculos no caminho. Como incentivo, o aplicativo possui um ranking e pontua quem faz mais marcações. Estou em sexto lugar, mas já cheguei a ficar em segundo. Preciso usar mais para voltar ao pódio”, brinca.

Usuário assíduo da ferramenta, ele não deixa de consultá-la quando precisa saber se o lugar para onde vai tem ou não acesso para pessoas com deficiência. “Esses dias marquei de sair com um amigo, que é cadeirante, e ele me perguntou aonde a gente podia ir. Eu já abri o aplicativo para escolher um barzinho com as estruturas adequadas. Curitiba, por exemplo, é e não é acessível ao mesmo tempo, porque depende muito da região.”

Segundo ele, em geral, a situação no Centro é mais tranquila, enquanto nos bairros e em locais mais antigos, como o Largo da Ordem, os casos são complicados. “Um dia levei outro colega cadeirante lá e não teve jeito. Ele é de Santa Catarina e achei que seria legal visitar o lugar, que é um ponto turístico. Só que chegamos na feirinha e demos de cara com uma parte que ele não tinha como acessar de jeito nenhum. Foi bem chato”, conta.

Alô, prefeitura

Para resolver problemas como os relatados por Zafatoski, as informações coletadas no MoovDis têm o potencial de ultrapassar a tela do celular e alcançar o poder público. De acordo com o professor da UTFPR Alexandre Graeml, que orientou o trabalho de Marques, o app pode funcionar como um meio adicional de comunicação entre os moradores da cidade e os gestores municipais.

“Ao marcar no mapa um problema ou algo que o cidadão considera bom, ele sinaliza para a prefeitura que gostaria de ter a situação resolvida ou de ver mais daquilo que aprovou em outras partes da cidade”, comentou.

Em Curitiba, a parceria com a prefeitura ainda não existe oficialmente, mas muitos usuários compartilham os dados do aplicativo nas redes sociais, chamando a atenção da gestão municipal por meio de hashtags.

Esses dias marquei de sair com um amigo, que é cadeirante, e ele me perguntou aonde a gente podia ir. Eu já abri o aplicativo para escolher um barzinho com as estruturas adequadas

Clodoaldo Zafatoski, diretor de comunicação da Associação de Deficientes Físicos do Paraná

Essa atitude simples, para Graeml, mostra como a ferramenta tem o poder de colaborar com o desenvolvimento de uma cidadania inclusiva. “O aplicativo faz com que as pessoas que não têm nenhuma deficiência reflitam sobre as dificuldades desses outros cidadãos, ou seja, transforma todos em seres humanos mais conscientes de que a cidadania precisa ser inclusiva”, acrescenta.

Até os gringos já usam

Juntos, Marques e Graeml já participaram de diversos congressos para apresentar o MoovDis em cidades do Brasil e de outros países. Os maiores divulgadores do aplicativo, no entanto, são os próprios usuários, que aumentam o engajamento de forma orgânica – sem nenhum tipo de propaganda.

Com isso, o uso do app ultrapassa as fronteiras com facilidade. “A marcação mais recente que eu vi aconteceu no Brooklyn, em Nova Iorque. Do outro lado dos Estados Unidos, na Califórnia, a cidade de Albany já foi completamente mapeada”, afirma o professor, que hoje vive em Berkeley, município norte-americano localizado na baía de São Francisco.

Para incentivar a participação de mais usuários, o próximo passo, segundo Graeml, é tornar as marcações mais simples, a partir de comandos de voz, por exemplo, sem a necessidade de entrar no aplicativo. “Hoje, mesmo exigindo algum esforço, percebemos que há bastante gente motivada em contribuir com a ideia de mapear as calçadas e estabelecimentos para proporcionar maior inclusão a cadeirantes e deficientes visuais que usam as ruas mundo afora.”

Ele declarou que muitos alunos de graduação e mestrado da universidade se mostraram interessados na iniciativa, o que pode indicar a expansão do projeto. “Tanto o Valmir quanto eu temos muito carinho pelo MoovDis e a intenção de continuar a desenvolvê-lo. Esperamos daqui a algum tempo ter novidades para quem se interessou por esse conceito”, diz.

Até o momento, a ferramenta está disponível apenas para Android, mas a expectativa é que uma versão para iOS seja desenvolvida ainda este ano.

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