Vinicius de Figueiredo publica livro sobre “a paixão da igualdade” pela Relicário Edições

Professor da UFPR percorre a trajetória que levou o Ocidente a julgar que todos devem ser vistos como iguais no livro "A paixão da igualdade

A ideia da igualdade entre os seres humanos é mais recente do que costumamos imaginar. Hoje, se uma pessoa é vista como privilegiada pelo Estado, por exemplo, o sentimento costuma ser de indignação. Porém, durante muitos séculos, o consenso foi de que certas pessoas mereciam ter privilégios, por vários motivos. Fosse por terem nascido em determinada classe social ou casta, fosse por exercerem determinada atividade ou até mesmo por seus talentos.

A história de como os humanos ficaram “iguais perante a lei” no Ocidente é o tema de um livro que finalmente poderá ter seu lançamento presencial nesta sexta-feira (29), às 19h30, no Café Cultura Batel (Rua Coronel Dulcídio, 558 – Batel). “A paixão da igualdade: uma genealogia do indivíduo moral na França”, de Vinicius de Figueiredo (Relicário Edições), circula desde o ano passado, mas em função da pandemia não foi possível fazer encontros para falar do assunto.

Agora, no evento de lançamento, Vinicius de Figueiredo tem chance de conversar sobre o seu livro com Ericson Falabretti dentro do Café Philo, uma série realizada pela Aliança Francesa Curitiba e pela PUCPR, com curadoria de César Candiotto e Federico Ferraguto.

Professor de Filosofia na UFPR, Figueiredo é um estudioso de Kant e do Iluminismo, e foi atrás da história dos pensadores franceses que, ao longo da modernidade, construíram as ideias de igualdade. “A paixão da igualdade” usa exemplos de teatro, artes visuais, literatura e filosofia para mostrar como tudo evoluiu.

Em entrevista ao Plural, o professor fala sobre História, mas também sobre a situação do pensamento francês atual e sobre a reeleição de Macron.

Hoje pra gente parece muito básico que uma Constituição comece dizendo que somos “todos iguais perante a lei”. Mas isso pareceria absurdo quatro século atrás, certo? Em que momento isso começou a mudar?
Até o início da Idade Moderna, esta ideia de igualdade era desconhecida no ocidente. Claro, havia no cristianismo a noção de que os seres humanos são iguais perante Deus. Mas, ao longo da Idade Média, o que prevaleceu foi uma ética aristocrática, centrada na figura do guerreiro, que, além, de provedor, assegurava o território aos seus, além de liderá-los em conflitos de todo tipo. Não devemos esquecer que os reinos feudais eram compostos de pequenos reinos, dominados por senhores que eram, eles mesmos, guerreiros.

Por volta do século XII, surge na Europa uma literatura de cavalaria que enaltece e estiliza os valores excepcionais desses indivíduos, considerados como melhores que os demais sob todos os aspectos, inclusive morais. Isso começa a mudar com a formação das monarquias modernas. Com a centralização do poder monárquico, os indivíduos tornam-se iguais perante o rei. Ao menos foi assim que a nobreza guerreira percebeu a consolidação dos Estados nacionais – como ameaça, como destituição de suas prerrogativas, que não eram apenas políticas, econômicas e jurídicas, mas também morais, pois esses nobres se sentiam moralmente distintos do resto dos mortais. Embora mantendo privilégios de sua condição, os nobres passam a ser vistos, do ponto de vista moral, como homens iguais ao resto. Eles são, por assim dizer, humanizados.

O nascimento da ideia moderna de igualdade coincide com esse declínio progressivo do herói clássico, como disse Albert Hirschmann, declínio concomitante ao advento das monarquias modernas no século XVII. O que não deixa de ser surpreendente. No caso da França, a igualdade moderna foi um sentimento originado entre a nobreza derrotada, e não, como se costuma pensar, um ideal da burguesia ilustrada do século XVIII.

O seu livro faz uma história da noção de indivíduos “iguais e livres” a partir da modernidade na Europa ocidental. Mas você defende que a relação entre igualdade e liberdade não assumiu uma única feição. Pode-se então falar em diferentes modernidades?
Igualdade e liberdade são ideais correlatos, que embora andem juntos, mantêm entre si uma relação tensa, um equilíbrio difícil. Se todos forem forçados a serem iguais, por exemplo, a liberdade individual estará em risco. Por outro lado, ali onde prevalecem desigualdades gritantes, como dá exemplo o Brasil, liberdade tampouco é possível. A social-democracia do século 20 – algo recente e que já começa a desaparecer – representou uma combinação mais ou menos bem acabada de igualdade e liberdade.

Quando procurei refazer a história desses conceitos, me voltei para os séculos 17 e 18 e logo me dei conta do acerto de Tocqueville, quando disse que a liberdade esteve mais ligada aos ingleses e a igualdade, aos franceses. O reino de Luís XIV foi a melhor expressão do absolutismo europeu. Antes mesmo que ele assumisse a coroa (1661), a aristocracia guerreira havia se rebelado contra o poder real, numa guerra civil, a Fronda, de onde saiu completamente derrotada. A partir daí, a monarquia francesa se tornou um fator de igualização de seus súditos, à revelia da nobreza que, apesar de manter seus privilégios, foi progressivamente perdendo poder.

Um século depois, com o Iluminismo e a Revolução de 1789, essa igualização iniciada pela coroa se tornou uma palavra de ordem contra o próprio absolutismo. Afinal, se todos são iguais do ponto de vista moral, por que manter a monarquia, ao invés de fundar a república? Simplificando muito, pode-se dizer que a revolução de 1789 pôs de ponta-cabeça a igualização efetuada pelo absolutismo, conferindo-lhe um sentido novo, democrático, antimonárquico.

Na Inglaterra, as coisas tomaram outro rumo. Na primeira metade do século 17, os Stuart também ensaiaram a centralização, mas foram derrotados por Cromwell. Carlos I foi decapitado numa manhã fria de janeiro de 1649, a república foi proclamada no mesmo ano. Seguiu-se a Restauração (1660) e, por fim, a Revolução Gloriosa (1688), que estabeleceu os marcos da monarquia constitucional, tal como a conhecemos ainda hoje. Ao fracasso do absolutismo, some-se o fato de que a ética do trabalho, caro às religiões reformadas, reinterpretou em termos burgueses o individualismo da antiga ética aristocrática. Em linhas gerais, na Inglaterra a liberdade ganhou preponderância sobre a igualdade. Essas diferenças entre Inglaterra e França produziram modernidades específicas, maneiras diferentes de compreender e sentir a experiência da modernidade.

Houve repercussões disso nas Américas?
No plano das ideias, a luta pela independência nos Estados Unidos foi mais tributária dos ingleses que dos franceses, pois os pais fundadores compreendiam a igualdade como ponto de partida comum entre os indivíduos, o patamar e o meio para exercitar a liberdade pessoal, o diferenciar-se pelo mérito. Mas esse modelo, como também apontou Tocqueville, casava mal com o sul escravista. Imagine então no Brasil, onde o escravismo foi muito mais significativo. Daí a tese de Roberto Schwarz de que o liberalismo era uma ideia fora do lugar por aqui. Como sempre lembra o historiador Luiz Felipe de Alencastro, a ex-colônia portuguesa só não se fragmentou em vários países, como ocorreu na América espanhola, graças ao fato de que, de norte a sul, todos se uniam em torno de uma instituição cultural, econômica e social comum: a escravidão. Nosso desafio permanece sendo superar isso que Joaquim Nabuco chamava a herança escravocrata. Se vai acontecer, é outra história. Tanto na América do Norte, quanto no Brasil, a novidade política dos últimos anos é a ascensão da extrema-direita, a um só tempo antiliberal e antidemocrática.

No fim das contas, o espírito da Revolução de 1789 é justamente o de tornar todos mais “iguais”, no sentido legal mas também filosófico? Você diria que esse é o grande legado dos revolucionários?
A Revolução de 1789 transformou os súditos em cidadãos iguais em direito. Isso supõe reconhecer que os todos os indivíduos possuem uma natureza moral comum, a humanidade e, por isso, são igualmente sujeitos de direitos. Mas é um equívoco imaginar que se trata de reconhecer uma verdade que já existia previamente, que estivesse apenas aguardando o dia certo para sua descoberta. Ao contrário, a humanidade, no seu sentido ético e político, é uma invenção moderna, uma construção a um só tempo filosófica, literária, artística e política.

A ideia de que os seres humanos possuem o mesmo valor moral, a mesma dignidade, nada tem de atemporal. No livro, examino a dramaturgia de Corneille e Racine, alguns textos de Descartes, Pascal, Voltaire, Diderot e Rousseau, além de certas pinturas, a fim de flagrar o surgimento dessa ideia, sua construção progressiva, até o momento em que ela se torna o modo de subjetivação preponderante na França pré-revolucionária.

A ideia de uma igualdade econômica mais estrita, que veio depois com Marx e outros, foi a base para grandes calamidades no século 20, certo? O que faltava a essa igualdade radical era a ideia de que a liberdade também é essencial?
Se Marx falava em ditadura do proletariado, era como etapa necessária para realizar plenamente a liberdade, que ele entendia como indissociável da igualdade econômica. Seja como for, é inegável que o comunismo, nas figuras que assumiu do século 20 e 21, colide com a liberdade. Basta pensar no que resultou da revolução bolchevique, o stalinismo, ou no que seja viver em um Estado unipartidário, sem liberdade de imprensa ou associação, como é a China, o segundo maior PIB do planeta. Aliás, o fato de que a ausência de liberdade política não comprometa a performance econômica, como atesta a China, força o ocidente na mesma direção, visto que destituir o indivíduo de seus direitos, tornar sua existência mais frágil e instável, se reverte em ganhos de competitividade no capitalismo contemporâneo. A maior ameaça à liberdade é, hoje, um mercado livre de qualquer regulação democrática. Só mesmo sendo muito coach para convencer um precarizado de que ele é livre para fazer e empreender o que lhe aprouver.

A França continua herdeira de um pensamento igualitário? Penso por exemplo no trabalho do Thomas Piketty, que prega uma economia com menores disparidades.
Quando li o último livro do Piketty [“Une brève histoire de l’égalité”, de 2021, ainda sem tradução no Brasil], tive a impressão de que ele assume a igualdade como um valor indiscutível, como um fim incontroverso, como se a única coisa que estivesse em questão fosse definir quais os meios mais eficientes para realizá-la. Quem cresceu e vive no Brasil, onde desigualdade combinada com autoritarismo é o cerne da experiência social, não se vê tão assegurado a esse respeito. Esse otimismo de Piketty, eu explico pelo fato de que a tradição republicana é muito forte na França. Ela se exprime pelo caráter laico do Estado, pela educação pública nacional, por um modelo de integração voltado para valores supostamente universais, etc. Apesar de inúmeros problemas, esse viés igualitarista francês é muito arraigado, a ponto de que boa parte dos franceses tendem a ver no fim do Estado de bem-estar social o fim da própria democracia.

Em algum sentido essas ideias de igualdade estão presentes na disputa política da França hoje, com Marine Le Pen falando em dar menos direitos a imigrantes e a esquerda insistindo na ideia de que todos devem ter as mesmas oportunidades?
Sim, creio que a questão da igualdade está no centro da disputa política atual, e não só na França. Embora tenha sido reeleito, Macron deve permanecer refém de um equilíbrio político frágil, porque o que ele tem a oferecer para afastar o populismo da extrema-direita é um receituário muito mais liberal do que social-democrata, o que contraria o apoio reticente e provisório que teve da esquerda francesa, voltada para preservar e aprofundar as conquistas redistributivas do Estado de bem-estar social. Isso não bastasse, este será o último mandato de Macron, o que leva a crer que será mais difícil fazer frente ao Reagrupamento Nacional daqui a cinco anos. Veja que o discurso de Marine Le Pen é muito menos igualitário do que identitário. Em nome da identidade do povo francês (seja lá o que isso queira dizer), ela só faz combater o ideal da igualdade, cuja realização passa por reencontrar, a cada desafio, o que é comum aos diferentes. A igualdade é a invenção desse comum, uma invenção com implicações sociais, políticas e subjetivas que vão no sentido oposto ao fechamento de si numa identidade irredutível. Fixar a alteridade numa identidade cultural hermética é a melhor condição para segregá-la.

Livro

“A paixão da igualdade: uma genealogia do indivíduo moral na França”, de Vinicius de Figueiredo. Relicário Edições, 276 páginas, R$ 55,90.

O lançamento do livro inclui uma conversa entre Vinicius de Figueiredo e Ericson Falabretti. O encontro é parte do Café Philo, organizado numa parceria da Aliança Francesa Curitiba com a PUCPR, com curadoria de César Candiotto e Federico Ferraguto.

Café Cultura Batel (Rua Coronel Dulcídio, 558 – Batel). Sexta-feira (29), às 19h30.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Vinicius de Figueiredo publica livro sobre “a paixão da igualdade” pela Relicário Edições”

  1. João Carlos Brum Torres

    Essa entrevista do Vinicius é um exemplo magnífico da fecundidade histórica de longo prazo dos ideais do Iluminismo. Na cacofonia que se ouve penosamente na atmosfera obscura de nossos dias, faz um rasgo de luz e nos faz lembrar que há alta cultura no Brasil.

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