Pela maneira como o escritor americano Philip Roth (1933–2018) falou de decadência física e desejo, pela disposição e também pelo interesse que ele demonstrava em escrever sobre desejo, sexo e traição (como em “Deception”), alguém poderia pensar que seus livros dariam um bom filme… francês.
O temas listados no parágrafo anterior nem de longe resumem os tópicos que Roth enfrentou ao longo de mais de 50 anos de carreira e 31 livros. Mas a dificuldade do cinema americano em adaptar seus livros se tornou célebre.
“Deception”
Foi preciso um cineasta francês – Arnaud Desplechin – e um elenco só de atrizes e atores franceses para fazer uma adaptação de “Tromperie”, baseado no livro que, no Brasil, saiu com o título “Mentiras”. Se o filme não for excelente, é ao menos uma boa tentativa de traduzir para o cinema o clima muito próprio dos livros de Roth.
O filme está em cartaz na MUBI com o título em inglês de “Deception” (engano), que é o nome original do livro. Aliás, uma obra que parece pronta para virar um filme, ou uma peça de teatro.
Mentiras
Isso porque “Mentiras” é todo feito de diálogos entre um escritor e sua amante, e entre o mesmo escritor e sua esposa. Mas sem rubricas nem descrições de cena. É uma maneira engenhosa de escrever um livro e também particularmente difícil de traduzir para o português brasileiro. (Na nossa língua, é reconhecida a distância entre a maneira que falamos e a maneira que escrevemos, sobretudo na chamada “norma culta”.)
No filme, Desplechin entrou na brincadeira de Roth e, em vez de tentar criar uma linearidade bonitinha para a história, optou por criar cenas curtas que têm a ver umas com as outras, mas cuja relação não fica evidente logo de cara. À medida que os personagens vão conversando, você descobre que se passou bastante tempo entre uma cena e outra, ou entende em que pé está a relação entre as pessoas em cena.
Assim, é difícil não pensar em “Deception” como um filme “teatral”: com poucos cenários, dois personagens em cena e muitos diálogos. Sendo um filme teatral, ele depende bastante dos atores e o elenco reunido pelo diretor de Desplechin manda extremamente bem.
Sexo
O protagonista, que se chama Philip (como Roth), é interpretado por Denis Podalydès, um ator incrível que não chegou a virar uma estrela, mas que parece capaz de fazer quase qualquer papel, embora faça com frequência figuras meio cômicas, como o contador de “Fetiches” que embarca na sugestão da esposa de desempenhar papéis diferentes para apimentar a vida sexual – ele como médico, ela como paciente, por exemplo. (Mas, no fim, ele descobre que sente mais prazer interpretando os papéis do que fazendo o sexo.)
Como Philip de “Deception”, Podalydès tem senso de humor, mas não é cômico. Ele é um homem de certa idade, mas enérgico. É inteligente e tem algum charme. Exala um tipo de segurança que os personagens dele não costumam ter. Conversando com a amante, ele arregala os olhos e sorri ao propor um jogo: que ela feche os olhos e descreva o escritório dele, o lugar onde estão, o ponto de encontro dos amantes que evitam levantar suspeitas.
Ela, de quem não sabemos o nome, descreve o ambiente como se tivesse um talento nato para narrativas. A personagem é vivida por Léa Seydoux, que parece estar em quase todos os filmes que foram feitos no mundo recentemente. Dos dois últimos “007” aos últimos trabalhos de Wes Anderson (“Crônica Francesa”) e David Cronenberg (“Crimes do futuro”).
Alma e corpo
Seydoux aparece nesse monte de filmes não só porque é um rosto bonito e fala inglês com sotaque francês. Ela é uma atriz magnética. Consegue ser encantadora mesmo com a atitude blasé que as pessoas associam aos franceses – mas, na verdade, é tipicamente parisiense. Ou talvez ela seja encantadora justamente por ser blasé.
Juntos, Seydoux e Podalydès são a alma e o corpo de “Deception”.
Onde assistir
“Deception” (“Tromperie”, no título original) está em cartaz, com exclusividade, na MUBI.