A massa e seu hipnotizador

Conhecer o que deseja a massa tornou-se o grande desafio para a manutenção dos regimes democráticos

Em 1921 Freud publicou um breve texto, de cerca de cem páginas, chamado “A Psicologia das massas e análise do Eu”. Nele, o psicanalista dialoga com a obra de Gustave Le Bon, um médico francês que afirmava que a mente do indivíduo, quando inserido na multidão, altera-se e imerge em uma espécie de Inconsciente coletivo. Essa “massa” desenvolvia uma espécie de conduta própria e o indivíduo que dela participava , quando a confrontava de fora, não era capaz de se reconhecer.

Freud mostra-se muito interessado nesse fenômeno e o analisa minuciosamente, como que encantado pelas afirmações de seu colega, reproduzindo longos trechos de sua obra, comentando um ou outro aspecto, corrigindo outro, mas agindo, principalmente, como um guia de leitura das importantes considerações de Le Bon:

“A massa é impulsiva, mutável e excitável. Ela é guiada quase que exclusivamente pelo inconsciente. (…) A massa não tolera nenhum adiamento do seu desejo e a fruição do que foi desejado. Ela tem o sentimento de onipotência; para o indivíduo na massa desaparece o conceito de impossível.”

Le Bon foi muito criticado na França pelo caráter conservador de sua obra, influenciada pelo determinismo de Spencer. Homem de múltiplas experiências e incontáveis interesses, sua observação das massas psicológicas derivou de seu testemunho, em 1871, da Comuna de Paris, movimento popular que tomou a capital após a derrota da França para Prússia. Para Gustave Le Bon, ali estava a evidência da massa em ação, cujas características destoavam do modelo social liberal fundado nas regras de convivência – e de contenção – dos indivíduos, ao que se chamou desde então de civilidade. Ao contrário, a presença dos indivíduos em meio à massa funcionava como um transe que alterava as fronteiras das regras civilizatórias e liberava os instintos como força motriz de transformação da polis.

“A massa é extraordinariamente influenciável e crédula: é crítica, o improvável não existe para ela. Ela pensa por imagens (…) Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exagerados. A massa não conhece, portanto, nem a dúvida nem a incerteza.”

Uma observação importante de Freud ao texto de Le Bon, refere-se ao fato de, se a massa age como que hipnotizada, ele não destacar “quem é o hipnotizador da massa”. O século XX e ainda agora, o século XXI, dão ótimas respostas para essa pergunta. Aprendizes de líderes das massas não faltaram e não faltam, atualizando as descrições feitas, como essa, por exemplo: “Inclinada ela mesma a todos os extremos, a massa também só é excitada por estímulos desmedidos. Quem quiser influenciá-la não necessita de nenhuma dimensão lógica em seus argumentos; ele tem de pintar as imagens mais fortes, exagerar e repetir sempre a mesma coisa.”

Os modernos meios de comunicação, como o rádio e o cinema nos anos 30 e 40, a televisão nos anos 60 e 70 e agora as lives da internet e os grupos de compartilhamento de mensagens, além de recursos visuais que tornam quase impossível ao cidadão comum saber se se trata de uma imagem ou vídeo real ou manipulado, permitiram ao hipnotizador das massas um arsenal poderoso para o exercício de sua cena. Conhecer o que deseja a massa, ao que ela responde e como mantê-la interessada, tornou-se o grande desafio para a manutenção dos regimes democráticos de formação liberal, concentrados na ideia do indivíduo politicamente consciente, na representação partidária que expresse as diversas propostas da sociedade, na alternância do poder como condição para evitar o tensionamento excessivo das diferenças e na figura do governante como um moderador, capaz de compreender e agir de acordo com a ideia de que governa sempre para o conjunto da sociedade e não apenas para os que o elegeram.

Ao contrário, na leitura de Freud do texto de Le Bon, lemos: “ [A massa] respeita a força e só se deixa influenciar moderadamente pela bondade, que, para ela, significa uma espécie de fraqueza. O que ela exige de seus heróis é a força, até mesmo a violência. Ela quer ser dominada e reprimida e temer seu mestre. No fundo inteiramente conservadora, ela tem uma profunda aversão por todas as inovações e progressos e um respeito ilimitado pela tradição.”

O texto de Freud tem pouco mais de um século de existência. O de Le Bon foi publicado em 1895, sendo um apanhado de ideias já esboçada em outra obra de 1881, “Os homens e as sociedades”, usada pelo sociólogo Durkheim em sua obra de doutoramento. De lá pra cá, a consolidação de uma sociedade moldada pelos valores do consumo e sustentada pelo trabalho precarizado, mantém no horizonte da Democracia essa presença desafiadora, como um aviso sombrio da contradição evidente: a Democracia como regime político exige indivíduos capazes de aprender a agir politicamente em uma sociedade livre e plural. O mundo da Ação, como lembrava Hannah Arendt, é o mundo dos homens livres e iguais. Só nesse campo é que a Política é possível. Fora dele, é com as massas e seus hipnotizadores, como, mais uma vez, explica Freud partindo da análise de Le Bon: “(…) As massas nunca conheceram a sede pela verdade. Elas exigem ilusões, a que não podem renunciar. Para elas, o irreal sempre predomina sobre o real; o inverídico as influencia quase tão fortemente quanto o verdadeiro. Elas têm a visível tendência de não fazer nenhuma distinção entre ambos.”

Não se pode pensar a Democracia, hoje, sem essa poderosa sombra. Quando fala-se em crise da Democracia, ou, como na obra de Steven Levitsky, perguntamo-nos “por que as Democracias morrem”, a obra de Gustave Le Bon e as observações de Freud, há mais de um século, já apontavam as razões mais significativas. Resta-nos continuar a buscar meios e formas de superar esses desafios.

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