Podcast – Sem raiva

Daniel Medeiros explica por que é importante fazer história sem raiva e sem parcialidade

Não é uma tarefa fácil ser professor de História nesses dias de ódio. O passado tornou-se um palco sangrento de disputas, cada um, como um gladiador, empunhando as armas da sua opinião, sedento de vontade de amputar o braço da opinião contrária, decepar a cabeça das fontes que desmentem sua versão, perfurar o pulmão das vozes que testemunham outras possibilidades.

E você, professor, ali no meio, no palco, buscando chamar a atenção para os dados, os documentos escritos, as imagens, a memória oral, a produção dos especialistas. Daí fico pensando – embora seja outra coisa – como deve ser um médico discutindo com uma mãe sobre a febre de sua criança: “mas eu acho que não é febre, doutor!” Mas a temperatura da criança está em 39 graus, minha senhora. Mas para mim, 39 graus não é febre.

Ou então o eletricista: Esse aparelho é 110 volts. Não deve ligá-lo na rede 220. E a senhora: mas para mim não há problema. Eu não acredito nisso!

Os exemplos são muitos, passando pela terra plana ou pela falta de eficácia das vacinas. Mas o passado como um campo de batalha de platitudes, essa é uma das práticas mais amplas, comuns e devastadoras.

O passado é formado pelo conjunto de fatos que ocorreram antes do agora. A História é a forma como esses fatos são organizados, narrados e interpretados pelo historiador, com base em teorias e métodos amplamente discutidos e testados. Essas organizações, narrativas e interpretações do passado são o trabalho do historiador. E como é possível compor essas tarefas de formas diferentes,  existem diversas correntes historiográficas.

Por isso eu posso narrar os fatos que ocorreram no Brasil em fim de março de 1964 como um movimento civil-militar, um golpe militar ou até mesmo uma revolução militar. No primeiro caso eu destaco os participantes do movimento; no segundo caso foco na ação que afastou o vice-presidente; no terceiro caso, nas aspirações dos generais líderes do movimento. Os fatos, porém, não mudam: tanques foram às ruas e obrigaram o vice-presidente João Goulart a deixar o país.

O papel do professor é o de mostrar aos alunos e alunas quais os diversos modos de olhar esse passado; quais as fontes disponíveis; quais as versões já construídas pelos historiadores. O aluno ou aluna, analisando as fontes, reconhecendo os contextos de produção dessas fontes, as narrativas dos especialistas, a formação intelectual desses especialistas, poderá então compreender como esse passado foi se processando e aí ir definindo, se assim o desejar, a sua própria opinião.

É lógico que nem sempre os jovens estão dispostos a este exercício todo. É certo também que nem sempre os professores estão também dispostos a este cuidado na exposição do passado aos jovens. Há uma intoxicação grande no mundo contemporâneo e muitos adultos preferem poluir sua docência com a expectativa perversa de “conscientizar” os alunos e alunas na direção de suas próprias crenças. É certo também que muitos adultos não historiadores tentam desqualificar o trabalho dos historiadores porque querem que o seu passado prevaleça a qualquer custo. Como em um campo de batalha.

A saída é a que nos ensinou o historiador romano Públio Cornélio Tácito. A História deve ser escrita (e ensinada) sem raiva e sem parcialidade. A sala de aula não é púlpito e o resultado do trabalho não é a conversão de ninguém. Doutrinação é coisa de igreja. O jovem precisa ter à sua disposição – mediado pelo professor qualificado – as formas de produzir a história. Como o artesão que aprende com o mestre as técnicas e as práticas. Com essas habilidades apreendidas, torna-se competente para ler as obras dos especialistas, aprofundar a sua percepção e produzir sua visão abalizada do passado. E fazer o que quiser com ela.

Sine ira et studio, dizia o historiador antigo. Sem raiva e sem parcialidade. Estudo e método. Para tudo. Assim ainda salvaremos o mundo.

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