Podcast – Realidade, essa danada

Quando Descartes afirmou que somos cogito, fundou-se a solidão humana universal

Quando Descartes afirmou que somos cogito, isto é, uma coisa pensante, e o resto, todo o imenso resto, era matéria, extensão, dados a serem coligidos por essa mente e que sua função no mundo era conhece-lo, fundou-se a solidão humana universal. Estamos em um corpo mas não somos esse corpo, afirmava Descartes. Aliás, desse corpo precisamos evitar suas interferências, as coisas que o afetam e distraem a mente, a única que realmente interessa. A essas interferências Descartes deu o nome de “paixões”.

Também não somos o mundo que está aí. O mundo são coisas para serem conhecidas e apropriadas, apenas quando se evidenciam como coisas claras e evidentes, segundo as regras que devem orientar nossa razão, para que ela funcione e assim cumpra a sua função .

E como sabemos que temos essa mente e que ela é quem diz ser? Como sabemos que ela está em nós, como um alienígena instalado em sua base cerebral? Porque falamos. Nossa linguagem é a expressão da existência da Razão. Por isso só nós a temos, exceto se algum outro animal racional tenha o dom de permanecer calado por toda a existência, apenas para não ser desmascarado. Já o nosso corpo é um autômato, máquina que se mexe por razões físicas facilmente compreensíveis. Nada temos, nós, seres racionais, a ver com ele. Com o mundo também não.

Ou seja: Descartes emulou o deus ex machina dos antigos, e garantiu aos homens o direito adâmico de nomear todas as coisas e dizer o que elas são e para que servem.

Quando Descartes estava pronto para publicar suas ideias, em 1633, soube da prisão de Galileu e, muito assustado, guardou seus originais. Quatro anos depois, publicou o Discurso sobre o Método, que começa dizendo que a razão é a coisa mais comum que existe, porque todo mundo tem. Mas que as pessoas não são capazes de conhecer apenas por possuirem razão. Para isso, precisam aprender a usa-la. E o mundo nunca mais foi o mesmo depois disso.

Uma coisa curiosa aparece nesse texto de Descartes, possivelmente para distrair os olhares da Igreja: toda essa razão, que é a morada do Ser, só é capaz de conhecer porque D’us é bom e Ele não daria ao homem a capacidade de conhecer para simplesmente engana-lo, como se fosse um gênio bobo e maligno. Engenhosa a saída de Descartes: se D’us existe, o homem é capaz de conhecer o mundo. Se o homem não é capaz de conhecer o mundo, então é porque um gênio maligno o engana. Mas se há um gênio maligno, como pode existir um D’us bom, Criador de todas as coisas? Afinal, do Bem só pode advir o bem, não? Touché.

A Ciência nunca parou de agradecer a Descartes essa liberdade de calcular, de medir e de comparar o universo, de deduzir a verdade à partir do conceito de claro e evidente, de demonstrar como a máquina corpo e o corpo universo são e como funcionam. E a Ciência não parou de fazer isso com tudo o que havia pela frente, tornando a palavra “científico” sinônimo de “verdadeiro”.

Mas há um detalhe nas reflexões de Descartes que às vezes é esquecida: nossa mente capaz de conhecer, conhece sempre por exclusão, afastando de si tudo o que não é claro e evidente. O problema que excluir não significa fazer desaparecer. O que eu afirmo implica, necessariamente, não afirmar muitas outras coisas. E elas permanecem aí, gerando efeitos cada vez mais estranhos para a nossa racionalidade. Freud que o diga.

Poucos anos depois de Descartes morrer – bobamente, de pneumonia – um pensador holandês de origem portuguesa, Baruch Spinoza, grande admirador da sua obra, apresentou uma outra versão para a Razão: ela não era única, capaz de criar e de explicar a si mesma, legitimada por um D’us bom. Ela era, como tudo o resto, um atributo desse D’us, que, esse sim, era a única substância.

E que mudança essa perspectiva lançada por Spinoza trouxe? O que mudou realmente? A grande mudança foi devolver corpo e mente ao mesmo status, como atributos de uma mesma substância, como partes de um só Ser. E também o mundo, os bichos, as plantas, o ar, as águas, as rochas, os ventos, tudo como expressão de um Ser que é tudo isso, junto e misturado: D’us, isto é, a Natureza.

A ideia de realidade com Spinoza modificou-se inteiramente, apesar de seu pensamento partir dos textos de Descartes.

E nós, o que temos com isso? O que muda no nosso modo de ver e de agir sobre o mundo e sobre as outras pessoas se curtirmos o perfil cartesiano e cancelarmos Spinoza? Ou vice-versa? Haverá algum impacto sobre nossa crença sobre o certo e o errado, sobre o valor das pessoas e dos animais, sobre a consciência sobre nosso próprio corpo e sobre o corpo alheio?

Essa é a ideia desse texto. Pensar sobre isso. Bon appétit.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Podcast – Realidade, essa danada”

  1. Leni Dias Fabri

    Que orgulho de ti, JORNALISTA ROGERIO GALINDO. Texto primoroso , lançando na mesma onda Descartes, Spinoza e Freud , para que na segurança da areia possamos nos manter o equilíbrio em e com
    nossas crenças.

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