Podcast – Pobre, mas branca

A história de um negro homossexual na Fortaleza de outros tempos

Nunca soube seu nome, mas lembro-me bem dele: era alto, os cabelos cortados feito militar, a cara comprida, os olhos enormes , as pupilas da cor da pele, bem escuras, as mãos grandes, o corpo desajeitado de tão magro. Morávamos em uma casa de esquina e era comum que as pessoas batessem palmas pedindo algo, principalmente água. Lembro-me de seca do fim dos anos setenta e de quando fui levar uns pães e frutas para um grupo de flagelados (guardo na memória ainda a estranha cor cinza de suas peles e os pés gretados) que bateram palmas na nossa casa. 

Crianças, velhos, trabalhadores da limpeza pública, era um constante contato com aqueles que era mais pobres do que nós. Eu os via, sentia seus cheiros e seus olhos baços. Eu era uma criança e acho que por isso minha mãe contava pra nós de sua própria infância pobre e difícil. “Agora estamos assim, ela dizia. Mas nem sempre foi desse jeito” .

No fim da rua perpendicular à minha casa, iniciava a favela do Lagamar e também era comum que os meninos que brincavam de bola na entrada das ruelas e casas de madeira e papelão também aparecessem para pedir pra subir na árvore que crescia rente ao muro de casa e pegar mangas. Minha mãe sempre olhava com cara brava para eles, desconfiada, mas nunca dizia não. Não havia aquela bondade dos filmes da tarde no rosto dela, mas sim a aceitação muda de um reencontro com a própria pobreza da infância.

Lembro-me desse rapaz porque era gentil e conversava com minha mãe: falavam de receitas e de bordados, e provavelmente de outras coisas, mas não tenho bem certeza. Um dia, minha mãe chamou-o para dentro da casa e mostrou-lhe um de seus cadernos com o segredo de fazer algo da cozinha ou da máquina de costurar. Os dois formavam uma imagem curiosa: ela, bem pequena, loirinha, a pele bem alva, o corpo rechonchudo equilibrando-se sobre os pés minúsculos. Ele, alto, negro, magro, com os músculos dos braços colados aos ossos longos e elegantes. Minha mãe dava risadas curtas e secas; ele abria a boca e mostrava os dentes alvos e a língua vermelha que se destacava em meio às gengivas cor de berinjela.

Um dia ele trouxe uma rosa de prata para minha mãe. Ela não quis aceitar, mas ele insistiu. Parece que meu pai havia feito algo e por isso ele havia conseguido um emprego de motorista da ambulância da base aérea. Mas nada disso é muito certo para mim e quando pergunto para meus pais, eles dizem não recordar desses fatos.

Depois, na minha memória, houve um sumiço do moço. Soube que ele havia batido a ambulância e fora despedido. Ouvi também comentários sobre sua sexualidade, algo fortemente rechaçado naquele ambiente militar. E, é lógico, sua cor. “Um negrinho baitola”, diziam na rua. Todos gostavam de falar mal dos outros na minha rua, uma forma de melhorar suas próprias pobres condições. “Deu um prejuízo danado e nem tem de onde tirar. Devia ser preso. Mas não, fica agora rebolando por aí, caçando cliente.”

O rapaz tímido de gestos elegantes assumiu sua condição e tornou-se “nega rosa” (dito assim, nega, e não negra). Foi uma atitude pensada ou uma necessidade da vida, eu nunca soube. Na rua, diziam que depois do acidente, bateram muito na sua cabeça e ele tinha ficado “leso”.

Apareceu travestida lá em casa, mais uma vez. Não sei se minha mãe o recebeu ou não. Lembro-me de tê-lo visto, batendo palmas, com um colante apertado nas pernas finas feito varapau. Talvez tenham conversado, ele tenha entrado e trocado receitas.

Há dias me peguei pensando nele, impressionado mais uma vez com as notícias da televisão, e fico matutando sobre a razão de ele ter assumido o nome pelo qual era xingado nas ruas e não consigo dissociar da rosa que ele deu para a minha mãe. Talvez fosse uma homenagem, uma forma de lembrar que aquela mulher simples e dura deu-lhe o carinho e a compreensão que lhe faltava?

Não posso dizer, só imaginar. Não sei como era a casa dele, a família dele. Se havia alguém que o amasse ou apenas o ouvisse ou olhasse em seus olhos como se olha para uma pessoa. Como minha mãe fazia, nas vezes que ele aparecia por lá, sem nenhum favor ou pena, sem nenhuma consideração especial, sem nenhum espírito de pagar pecados. Apenas porque ela também sabia o que era não ter sido uma pessoa.

Certa vez, diante da televisão, assistindo “A escrava Isaura” – que ela adorava e torcia, xingando o feitor e o fazendeiro Leôncio – minha mãe disse: “eu sei o que é ser pobre. Mas pelo menos eu era branca”. 

Já eu passo a vida tentando entender sem entender. Mas eu olho. Eu ouço. Eu continuo me esforçando. Não vou desistir.

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