Podcast: O passado como pássaro

Novo episódio do podcast Sine Ira et Studio, de Daniel Medeiros

Há muitos anos trabalho com história e com jovens. Nesse tempo todo, a ideia de contar sobre o passado conheceu várias versões, indo do relatar os fatos tais quais se encontram nos  documentos  até  interpretar os documentos para enxergar neles a história não contada por aqueles que foram silenciados. E, entre uma e outra versão, outras variações sobre o mesmo tema criaram uma espécie de catálogo de cores que vão do fosco ao brilhante, do herbal ao cítrico, do pastel ao intenso.

Enquanto isso, as crianças e os jovens buscam saber, quando eventualmente buscam saber, apenas o que aconteceu. A pergunta deles é sempre breve e clara: o que aconteceu? E nessa hora eu digo para eles: veja bem, antes de contar o que aconteceu é preciso compreender o contexto no qual os fatos se desenrolaram, o clima político e econômico da época, a ideologia dominante, o tratamento que a imprensa dava aos termos que usaremos na nossa narrativa… e as crianças e os jovens escutam tudo aquilo, e depois anotam e depois estudam para a prova.

A minha impressão, porém, é que na busca por ensinar o que aconteceu quando tudo o que eles esperam é saber o que aconteceu, alguma coisa muito importante se perde.

Tive um amigo cujo pai morreu durante a ditadura militar. Ele era menino e só bem mais tarde entendeu o que havia se passado. Uma kombi com explosivos se chocou com a porta de um quartel e o pai dele foi uma vítima acidental do atentado. Seu nome nem mesmo apareceu nas estatísticas, porque morreu apenas quatro meses depois do episódio, ficando todo esse tempo agonizando em um hospital público que primeiro cortou sua perna, depois não conseguiu controlar a infecção, a gangrena e, bom, meu amigo levou tempo para entender que o pai dele foi vítima da ação de pessoas que queriam – na versão deles – um país melhor para pessoas como o pai do meu amigo.

Uma vez tentei descobrir – para depois contar para meus alunos – o que ele pensava sobre o período, como ele avaliava as ações dos que lutaram contra o governo autoritário, o que ele achou do desfecho de todo o processo de abertura e de volta para a democracia. A resposta dele foi breve e clara: a ignorância e os hospitais continuam matando gente que não devia morrer naquela hora. Nunca mais voltei a abordar o assunto com ele. Soube , anos depois, que esse meu amigo fora preso envolvido com receptação de carga roubada.

Contar histórias é um desafio e tanto. Se você enche de detalhes importantes para a compreensão adequada do que aconteceu, depois de alguns minutos ninguém consegue mais prestar atenção. Se você então busca prender a atenção com uma performance rápida e intensa, todo mundo acha interessante mas ninguém compreende direito o que aconteceu. Um meio termo resulta em um meio termo entre desinteresse e desinformação. O professor de História é como o pai que lê fábulas para o filho dormir: se ele dormir, você acha fez o que era certo. Mas se ele dormir, nunca ouve a história completa.

Hoje, a moda perversa dos que ganharam o poder como prêmio por não sermos capazes de contar histórias com mais raízes , é destratar os professores. Fake news, dizem, a boca cheia de satisfação por usar uma expressão estrangeira como se fosse uma gíria de infância. Vamos mudar tudo isso aí, como se houvesse um lado certo sendo esquecido ou negligenciado. Jardineiros com vício de poda, esquecem que da árvore o essencial não é a parte que dá sombra, mas a que negocia o sal da terra.

Mal sabem esses agressores que da angústia da dúvida sobre o que fazer e sobre o que contar já estamos fartos. E agora toda essa  acusação de que agimos errado! Quem dera que fosse algo que fizéssemos com tanta clareza e simplicidade. Fazer errado! Há muita ciência e sabedoria para fazer algo com limites tão claros e precisos. E contar Histórias carece dessa precisão. Não é preciso o ofício do professor de História. Vivemos errando. Ora para um lado, ora para outro, que é quando descobrimos que lados não são dois, mas muitos, e em cada canto há uma sereia com a cauda escondendo a rocha. Ora, as crianças e os jovens não querem que ninguém acerte. Querem apenas que alguém aponte. Estar perdido é não ter ideia de que quem ensina também carrega no que diz a dúvida sobre o que houve. Quem conta não  é nunca dono do conhecimento. Tem  porém a intenção de que sua história  contada não ajude o futuro a ser mais triste.

Quando alguém escolhe o que contar, como quem rega a planta, deve saber que frutos quer colher. O passado é uma ave que canta. Quem ouve agouros quer matar a ave e esquecer o canto. Quem ouve (não o canto), mas o voo do pássaro, admira e protege. As crianças e os jovens, quando eventualmente querem saber o que aconteceu, guardam nas suas perguntas o desejo de uma história que as façam sorrir e desejar. O passado como pássaro.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima