Podcast – O historiador e o poeta

Daniel Medeiros fala sobre um problema que Aristóteles pode ter causado para o mundo

A “Poética”, de Aristóteles, é um livro muito bacana. A certa altura ele diz: “O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso (…). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido.”

Já li esse texto muitas e muitas vezes – recentemente  comprei outra edição da minha tradução porque a primeira estava tão grifada que eu já não entendia mais porque destacara esta ou aquela passagem. Mas mesmo depois de ler tantas vezes, nunca consegui aceitar bem essa afirmação. Lógico que a minha aceitação não tem a menor importância. Mas vou falar sobre isso assim mesmo.

Não acho que o historiador consiga escrever o que aconteceu , exceto se entendermos que o que aconteceu é o que somos capazes de presenciar ou recuperar faticamente. “Aconteceu porque eu vi”. “Aconteceu porque muitas pessoas viram”. “Aconteceu porque há documentos que provam”.

Ora, cá entre nós: quem sabe, afinal, o que foi que realmente  aconteceu? Sabemos mesmo o que acontece conosco?

E antes que me perguntem: é claro, evidente, axiomático, que os fatos são  fatos (sim, a terra não é plana e sim, Hitler era um fascista idiota de direita), mas desde quando “o que aconteceu” resume-se aos fatos?

Da mesma forma, incomoda-me a ideia de que a poesia (e a ficção em geral) trata do que poderia ter acontecido. Ora, ora, o que não aconteceu é uma coisa tal e qual ao que aconteceu. É o fundo do qual destaca-se a figura. É no conjunto das coisas não acontecidas que o que aconteceu se revela. E então suspiramos, pois uma vez acontecido todas as formas não acontecidas tornam-se frustrações presentes em nossa memória para sempre.

Outro dia, estava quente e fui tomar um chope. Na verdade, não há nenhuma razão especial para eu tomar um chope. Portanto o “dia quente” não tem nenhuma importância, mas ajuda pra quem não sabe o que é tomar chope a entender o que virá a seguir na minha narrativa. Pedi o chope, o chope me foi servido, olhei para ele e sabia, sabia que aquele primeiro gole teria um papel muito relevante no meu dia monótono. Esse breve lapso de “não acontecimentos” foi repleto de coisas. Uma espécie de despedida das possibilidades intensas que o “querer e ainda não ter” me proporcionava. Como um filme passando diante dos meus olhos. Ao final do filme (e quanto tempo isso levou? Amigo, você não sabe que o tempo é aquilo que você conta quando o que ocorreu não teve importância?), peguei o copo e então dei o gole. Entre os mil goles desejados, um realizado. O fato, como dizem, foi esse. No dia seguinte, um conhecido fez questão de me lembrar: “Que folga, hein, professor? Tomando chope em pleno dia de semana?”

Ora, ora. Quantas informações faltaram para que o conhecido impertinente entendesse o que viu? Quantas camadas de realidade não foram percebidas, analisadas, organizadas antes da sentença (histórica) fatal: “Que folga, hein?

Os historiadores pensam que contam fatos. Os poetas inventam sobre coisas que de fato ocorrem mas como os historiadores chamam aquela coisa pobre que escrevem de fatos, os poetas então chamam o que de fato veem de “o que poderia ter acontecido”.

Agora vivemos os tempos que vivemos. Todos os dias nos deparamos com as notícias do fim do mundo. Quem ler os fatos correntes nos seus livros de História não saberá da missa a metade. As poesias, igualmente, estão querendo competir com essa fobia de realidade. Poemas furiosos e romances que retratam “o que está acontecendo” buscam “destacar” os fatos para nós.

Acho que a culpa toda disso é do Aristóteles. Pena que ele não teve tempo de ler “O jogo da Amarelinha”. Pulando as casinhas? Sem pular as casinhas? Tanto faz. O fato é que Jesus morreu na cruz.  Mas isso não diz nada e Jesus sabia. Tanto que sua última frase foi: “Pai, perdoai, eles não sabem o que fazem”.

PS: Também é fato que devo ocupar as mesas do fundo quando for tomar chope em um dia de semana.

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