Podcast – O dia do balde

Essa semana meu pai me ligou e disse-me que está com câncer e que está apavorado

Eu não havia atinado sobre isso, mas é certo que meu pai havia brigado com a minha mãe naquela noite. Às vezes eu ouvia, às vezes não. Mas muitas vezes brigamos em silêncio, esgrimindo raivas surdas. Eu estava no quintal, brincando de matar formigas vermelhas com um cabo de vassoura. Eu era o piloto de bombardeiro aliado e elas o comboio de nazistas em direção à França. Estava concentrado perpetrando minha destruição – por, pou, pou – quando ouvi meu pai gritando, do puxadinho que funcionava como lavanderia: “pega o balde, rápido!” Não sei se havia alguma outra orientação, uma frase preparatória a essa, minha operação militar de fundamental importância impediu-me de qualquer distração. Mas senti que naquelas palavras havia algo que não deveria nunca ser desprezado: a raiva na voz de meu pai. Larguei o bastão e corri com o balde laranja para a torneira da frente da casa e enchi de água. Meu pai estava diante da máquina de lavar, pediu um balde, associei máquina de lavar, balde e água. Uma lógica perfeita, não? Ouvi, dos fundos da casa, a voz (já esganiçada) de meu pai: “O balde! O balde!”  E fui correndo, equilibrando o balde pesado que batia raivoso nas minhas pernas finas.

Corte na cena para uma explicação necessária: meu pai estava lavando roupa na máquina e ela estava com um defeito. Logo após encher com água e sabão, ao invés de bater a roupa, ela esvaziava rapidamente, jogando toda a água fora. Essa era a utilidade do balde: evitar que a água com sabão em pó fosse desperdiçada.

Então chego com o balde cheio, (orgulhoso de não ter derrubado quase nada), meu pai vê aquilo com os olhos já injetados daquelas pequenas veias vermelhas de uma noite mal dormida e ressentida e estoura. Pega o balde, joga a água fora, que se mistura com a água com sabão, inundando as colunas de tanques alemães, espalhando formigas encharcadas para todos os lados e acerta, com a parte de baixo do balde laranja, minha cabeça. Grita, grita. E bate, bate. Não ouvi o que dizia e não fugi das baldadas. A cena paralisou-me. Nada fazia sentido. A parte áspera da base do balde pegou meu lóbulo da orelha e um fio de sangue escorreu pelo meu pescoço, manchando minha camiseta branca encardida da poeira do quintal de chão batido. Sangue que eu imaginava jorrando das formigas dizimadas, agora surgia ali, sem declaração de guerra nem informe antecipado da inteligência. “Burro, seu burro, agora tenho de encher tudo de novo, vou descontar da sua mesada, sai daqui seu traste, inútil”, e eu fui me afastando de lado, de esguelha, o balde já largado no meio do quintal, em meio às formigas atônitas.

Fui para a frente da casa, pulei a mureta e perdi-me pela vila. Era meio da manhã e as casas se fechavam para o preparo do almoço. Caminhei por várias quadras até começar a chorar. Não havia dor. Havia algo que eu sabia ser mais profundo e persistente. Mas não tinha ainda nome para dar.

Essa semana meu pai me ligou e disse-me que está com câncer e que está apavorado. Aos 79 anos, tem medo do que pode lhe ocorrer. Teme morrer e não poder mais cuidar da minha mãe.

Ao longo da minha infância, surpreendi meu pai e minha mãe brigarem constantemente. Algumas vezes ela arrumava as malas e fingia sair mas, sem ter para onde ir, ficava. E chorava. Meu pai era violento comigo e com o meu irmão, mas nunca com a minha mãe. Ou era, de um outro jeito que eu na época não tinha nome para dar.

Agora meu pai tem esse medo e sinto muito por ele. E só agora percebo que ele sempre teve medo e sempre guardou esse medo ou sempre tenha se expressado para nós do medo da vida difícil que tinha, da necessidade de economizar tudo e não pensar em mais nada exceto trabalhar e contar as moedas e cuidar da família. Por isso o desperdício de sabão em pó depois de uma noite de brigas pareceu excessiva para ele e um filho distraído tornou-se um peso em demasia.

Isso foi há mais de quarenta anos. Isso foi na semana passada. Os medos se misturam em mim e causam esse texto. Quanto às formigas, as saúvas vermelhas como fogo que infestavam meu quintal e que eu enxergava como os inimigos a serem combatidos, hoje tomam conta do país. Mas esse medo é já uma outra história.

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