Podcast: Gestos

Daniel Medeiros explica a importância de trocar o pneu de um desconhecido na tempestade

Há certo tempo, li um depoimento, creio que da Maria Rita Khel, psicanalista de mão cheia, sobre um episódio que ocorreu durante as eleições de 1989. Ela, petista engajada, voltava para casa do trabalho e, em meio a uma chuva torrencial, fura o pneu de seu carro, em plena marginal Tietê. Ela encosta o carro como pode, liga o pisca alerta e vai batendo o desespero sobre o que fazer até que vê um vulto se aproximar no meio do vendaval. Maria abre o vidro e então identifica um senhor com uma barba grisalha empapada pela chuva, os óculos embaçados, que lhe diz: “a senhora quer que eu ajude a trocar o pneu?” Aturdida, ela só balança a cabeça. O homem desaparece de seu campo de visão e logo volta com os apetrechos necessários para a tarefa ingrata debaixo do  temporal.

Pouco tempo depois, pneu trocado, o coitado enlameado da cabeça aos pés, diz apenas: “tá pronto” e sai correndo em direção ao seu carro, sem nem dar tempo de Maria agradecer-lhe, perguntar seu nome ou mesmo oferecer-lhe algo pelo favor incrível. Ao acompanha-lo com o olhar, observa o adesivo pregado no vidro do carro do homem: “Paulo Maluf para presidente”.

Recentemente, em meio a uma enchente, um sem teto usou um caixote, humor e habilidade para permitir que uma senhora atravessasse a rua sem se molhar. O vídeo viralizou nas redes sociais e o que chamou a atenção é que a senhorinha, após pisar a calçada do outro lado da rua, sequer esboçou uma agradecimento ao senhor que pareceu também não ter se importado.

Gostamos muito dos gestos simples, como o olá, o adeus, o “parabéns” ou o “meus sentimentos”. Quando morre alguém marcante, aguardamos as condolências oficiais. Quando alguém recebe um prêmio importante e não há um reconhecimento oficial, fica uma certa lacuna esquisita que chamamos de “grosseria”. Gestos. Como o de ligar pra casa quando se viaja pra dizer que chegou bem. Ou perguntar ao amigo que se separou se ele quer conversar; ou como ensina o ditado popular, nunca falar  de corda em casa de enforcado.

São tantos os gestos possíveis para tornar a vida menos cruel e sufocante. Um dos que mais me emocionam é o carro que para na faixa. Eu sempre cumprimento. Ou o jovem que se levanta para  a senhora no ônibus.  Ou a senhora que  aplica injeções para a minha artrite todas as semanas e sempre avisa: “agora uma picadinha”. Renova minha esperança no mundo. Ou quando alguém corre atrás de mim na saída do restaurante pra devolver o casaco, celular, carteira, cabeça que esqueci. Ou quando me avisam do troco que dei a mais. Ou quando informam que o prato que pedi é grande e que pode ser dividido, sem precisar pedir dois. Ou quando escrevem pra dizer que gostaram de algo que fiz ou disse; ou quando me abraçam, porque sabem que adoro ser abraçado. Ou quando limpam os pés antes de entrar em um lugar qualquer. Ou quando avisam que tenho uma sujeira nos dentes. Ou quando esperam com a porta do elevador aberto para que eu possa compartilhá-lo.

Existem mesmo essas  pessoas cujos gestos são marcantes. Pessoas enternecedoras. Mesmo que os gestos esgotem-se em si mesmo, incapazes de conscientizar o mundo ou desfazer a névoa de ideologia alienante ou o modo de produção opressor. Gestos de mão, como um tchau ou de olhar, como uma piscada, ou de lábios, como um beijo lançado ao vento.

Ou palavras. Gestos na forma de palavras: de consolo, de promessa, de incentivo.

Ou ações. O braço estendido, a vaquinha, o tempo cedido, a presença na busca, a companhia no desconsolo.

Há tantos brutos que querem salvar o país sem serem capazes de uma gentileza no seu dia a dia; há tantas pessoas delicadas que apoiam canalhas oficiais. Se uma escolha é necessária, prefiro sempre os gentis. Minha esperança é que é mais fácil uma pessoa doce enxergar o mal dos outros do que uma pessoa acre entender que não se muda o país sem antes ter coragem de mudar um pneu de um estranho durante a tempestade.

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