Podcast – Extrema unção (ou: a lição do senhor Piñera)

O homem não é como as abelhas ou as formigas. A civilização é uma folha fina e frágil a cobrir nossa convivência comum

Em 1962, no meio da crise política resultante da renúncia do presidente Jânio Quadros e do fracasso da solução parlamentarista para limitar os poderes do vice João Goulart, assume o terceiro primeiro-ministro em pouco mais de uma ano, o veterano Hermes Lima. Uma repórter pergunta a ele: “ministro, com essa crise, o senhor considera que o Brasil caminha para a extrema esquerda ou para a extrema direita?” E ele, sem titubear, respondeu: “O Brasil caminha para a extrema unção”.

E não deu outra. A falta de acordo entre as forças progressistas por um projeto possível de nação e o pavor da classe média ardilmente manipulada pelos oportunistas e piromaníacos, levou o país a um longo período de restrições de liberdades, violência do Estado contra o cidadão comum, censura às artes e ao conhecimento, exílio, tortura e morte. A ideia de que as soluções extremas parecem ser o melhor caminho não passa da evidência de que não há mais caminho possível, exceto essa ilusão. E quando despertamos de nossa ira santa, da nossa sede de Justiça e nossa fome de Verdade, estamos em meio a uma vala de mortos.

A História é mestra em nos mostrar isso: não há uma década na qual não demonstra que as soluções radicais, as decisões infladas pela testosterona, os gritos de guerra ou de revolução, resultam somente em violência, arbítrio, censura e depois arrependimento envergonhado. Mas a cada nova história de uma revolução que virou uma ditadura sanguinária, há, de novo, os  arautos da nova e agora definitiva revolução. Poucos, raros, são os que buscam o acordo, o acerto, o ponto de equilíbrio, a concessão, o reconhecimento, o mea culpa, entendendo a obviedade de que quando há mais de duas pessoas os acertos são sempre provisórios e o pacto de convivência deve ser refeito constantemente.

Mas a natureza humana é belicosa, busca a glória, já lembrava Hobbes. O homem não é como as abelhas ou as formigas. A civilização é uma folha fina e frágil a cobrir nossa convivência comum. Construí-la e mantê-la é muito trabalhoso e quase sempre o resultado é pouco satisfatório. E a chave dessa construção é a renúncia de nossas convicções mais arraigadas. Quanto mais arraigadas, mais perigosas. Quanto mais certos estamos de algo que envolve os outros, mais perto nos encontramos de colaborarmos com algo violento.

A saída é sempre atenuarmos nossas certezas e ouvirmos os outros e buscarmos um acerto provisório de contas. Toda vez que não sabemos usar nossa liberdade de escolher, acabamos achando que é um bom acerto parar de pensar nisso e deixar que outros garantam a nossa segurança, até que esses outros não nos reconheçam mais e não nos deem ouvidos quando lembrarmos que fomos nós quem os invocamos.  A ideia de que não podemos ou de que não vale a pena ceder é o que nos leva ao Leviatã. A extrema unção de qualquer chance de democracia.

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