Podcast – A urgência do Bem Dizer

Apreender o passado é como pegar uma azeitona que caiu no pote de geleia

Para Lacan, a única ética que existe é a do Bem Dizer. Antes, mas certamente com forte impacto sobre toda a Psicanálise, Nietzsche já afirmava : “tudo é interpretação”.

Foucault foi outro que embaralhou o meio campo ao associar Verdade e  estrutura da ficção e, especificamente no campo da História, Paul Veyne em Como se Escreve a História (1971), Hayden White em Meta-história (1973) e Michel de Certeau em A Escrita da História (1975) , também, cada um ao seu modo, ensinaram como o bem dizer tem papel constitutivo sobre o que dizer, de forma que não há somente um “dizer” sobre as coisas que aconteceram, já que o acontecido nunca pode ser resgatado exatamente como foi e apreender esse passado é como pegar uma azeitona que caiu no pote de geleia. Desculpem a pobreza da alegoria, mas gosto dessa imagem. Já me aconteceu algumas vezes. Não me perguntem como.

Penso nessas questões diante do mantra discursivo do atual presidente, “a Verdade vos Libertará”, e do poder sedutor dessa afirmação, que é como a imagem de um conteúdo encerrado dentro de um baú cheio de correntes e de cadeados e que um Hércules redivivo, depois de matar leões e touros enlouquecidos, resgata e devolve aos vivos, espraiando seu brilho sobre todos, desvelando os maus, os enganadores e restabelecendo o Reino dos justos e dos fieis.

Quanto essa visão das coisas tem de poderosa e mobilizadora diante da indecisão interpretativa dos filósofos, historiadores e psicanalistas? E some-se agora os cientistas, logo eles, que também hesitam, tergiversam, caem em contradições, desmentem o já dito, refazem cálculos e , pior, não cumprem as promessas nos prazos estabelecidos nem com a eficácia esperada. Outro dia mesmo morreu um senhor de 85 anos que já havia se vacinado duas vezes. E então, por que a resistência aos remédios de “tratamento precoce” se a vacina não cumpre o seu papel de salvar pessoas? O presidente – que disse isso referindo-se à morte do grande ator Tarcísio Meira, com a sensibilidade já conhecida de todos – olha para a câmara, estala os olhos, movimenta freneticamente as mãos, antes de bater com veemência sobre o tampo da escrivaninha (atrás, dormem livros que perderam o desejo de um dia serem manuseados), enfatizando o que lhe parece o óbvio, pois a Verdade revelada é óbvia e não importa como é dita ou por quem é dita ou em que época é dita: sempre será a Verdade. E ele é seu mensageiro, o ungido por aqueles que foram enganados pelos falsos profetas – os intelectuais – e seus jogos de palavras que escondem a intenção de promover a decadência da família e da tradição, e que tem agora, graças ao novo arauto, a chance de ser resgatada e redimida. Toda quinta feira, ao vivo, nas redes sociais.

Diante desse infausto, as Ciências vivem a encruzilhada de reafirmarem suas incertezas ou sucumbirem às afirmações categóricas. Como a velocidade das opiniões não deixa pedra sobre pedra em qualquer debate, e os loucos por palestra estão sempre à postos para desmentir o que não foi afirmado e afirmar o que não foi sequer cogitado pelos intelectuais, o Bem Dizer vai sendo encurralado pelos agentes da cura rápida e da verdade imexível.

“Ser o que se é ou deixar de ser”, eis o drama contemporâneo do pensar nesses tempos bicudos. O curioso é que esse “ser o que se é” não é de uma forma específica, mas é por meio de um processo específico, ou seja, é, mas é complicado de dizer, por isso é urgente e necessário todo um esforço de Dizer Bem sem reduzir, empobrecer ou banalizar. Já Platão desdobrou-se em alegorias para dar visibilidade aos seus conceitos. Nietzsche e Freud, igualmente, valeram-se dos mitos gregos para expressar suas ideias profundas e complexas. Eu, ridículo, arrisquei uma azeitona na geleia. Mas a intenção é a mesma, acreditem: é preciso não ceder ao óbvio mas, na medida do possível, tentar o simples e o claro. Se o contrário da Verdade é a Certeza, nosso movimento intelectual não precisa ser um borrão de enigmas criptografados para ser sério. Muita coisa está em jogo nesse esforço ético de Bem Dizer e ser acessível aos ouvidos de boa vontade.

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