Há vários anos, tive a oportunidade de entrevistar o sobrevivente do Holocausto, Aleksander Laks, um senhor gentil e disposto que me recebeu com grande carinho e contou-me histórias de sua infância no gueto de Lôdz, onde, com apenas 11 anos, foi confinado com outros 25 mil judeus e dos quais possivelmente mais ninguém estava vivo além dele. Falou-me também dos trabalhos forçados em Auschwitz, da libertação, de seu pai que não resistiu e de sua luta desde então para condenar o racismo e toda forma de totalitarismo. Quando Aleksander morreu, em 2015, fiquei triste, pesaroso. Agora eu era o testemunho de algumas de suas histórias e tenho igualmente a obrigação moral de repeti-las para que o fato dele tê-las vivido com tanto sofrimento, por causa da maldade de alguns, não seja em vão.
Destaco um dos momentos dessa minha conversa e que sempre me assombrará: ele me falava sobre a vida no gueto e dizia que apesar da ameaça constante da fome, da doença e da violência, os adultos e crianças tentavam continuar seus afazeres. Um desses afazeres era a escola. Aleksander assistia às aulas com o afinco de quem tinha certeza no futuro e seu professor não o deixava pensar diferente. Em um certo momento da narrativa ele cantou uma canção que aprendera nessas aulas. Começou a cantar embalado pela lembrança e chegou a sorrir. Mas de repente sua voz foi sumindo, sumindo, e ele se calou. Olhou para mim e disse em um sussurro: “agora eu sou a única pessoa no mundo que conhece essa canção”. E então pediu-me licença e disse que precisava ir ao banheiro. O silêncio que se seguiu, nos minutos da sua ausência, reverberam em mim até hoje. Ele me revelara, como eu nunca antes havia conseguido compreender, o sentido do “Holocausto”.
Hoje vemos uma sanha faminta por apagar o passado importuno para os maus. É verdade que matou, torturou, desapareceu com centenas de pessoas? “Não, isso nunca existiu, é invenção.” Mas há documentos, testemunhos, fotos. “Tudo inventado”. E os centros de tortura, sequestros de bebês, assassinatos a sangue frio? “Não há provas, é tudo mentira.” Mas há provas! Mentira. Perguntem a quem viveu essa época, ninguém nunca ouviu falar sobre nada disso. Havia segurança e quem era preso é porque merecia. Era uma guerra. E na guerra há sempre vítimas. Nós vencemos e agora o passado nos pertence!”
E como o tempo é uma duna sob o vento, os novos, os que chegaram depois que um raso de democracia já havia se instalado, sobre os corpos dos que morreram, foram exilados, sofreram perdas , os novos, com areia nos olhos, se perguntam: será? Será?
E então os que sofreram e morreram, sofrem e morrem novamente com essa crueldade. Liquidaram suas vidas e agora querem apagar sua memória. Como o inferno dos gregos, o destino dos que morreram é o desaparecimento, para que os ressentidos triunfem.
Na Europa, a ascensão dos movimentos anti-imigrantes emulam gestos fascistas e voltam a falar em raça e em espaço vital. O passado e a História são heróis fracos, raquíticos diante da fúria desses gigantes de ódio. Mas desistir não é uma possibilidade. Como fez de sua vida Aleksander, Primo Levi, Lola Anglister , tantos e tantos que não dispensaram a tarefa de ser porta-vozes dos mortos, remando contra a maré do descaso e do esquecimento.
Essa é a lição. A minha, aprendi naquela tarde, conversando com esse grande homem que foi Aleksander Laks, a quem presto minhas homenagens. Nos trinta minutos de conversa que tivemos, fui seu aluno e ele, lembrando da canção de sua infância, com os olhos marejados das lagrimas de todo um povo, foi meu professor. E será, para sempre.