O legado de René Dotti, um dos mais celebrados advogados do país

Curitibano faleceu aos 86 anos. Carreira incluiu defesa de perseguidos políticos, Secretaria de Cultura e impeachment de Collor

Em 1955, o Brasil vivia os tais anos dourados e o jovem René Dotti tinha uma escolha difícil pela frente. O caminho da arte era tentador, e era onde ele já estava. Num país que vivia a revolução de Nelson Rodrigues e dava início ao Cinema novo, René tinha uma carreira promissora. Ao lado de Ary Fontoura e outros nomes do teatro curitibano, despontava como um bom talento. Foi premiado como cenografista e, quem diria, como ator na peça A Importância de ser Ernesto, de Oscar Wilde.

Mas o rapaz começava a pender para o Direito. Também na vida cívica o país tinha um bom momento, com Juscelino em Brasília e uma Constituição que finalmente botava o país nos trilhos da democracia (mal dava para saber o que viria pela frente…). O menino de 21 anos decidiu: se matriculou na UFPR e foi aprender sobre leis e sobre justiça.

A história de Dotti, que faleceu na manhã desta quinta-feira (11) como um dos mais celebrados advogados do país, começava ali. A história de René, o ser humano, começara duas décadas antes, no Ahú de Baixo. Foi ali que veio ao mundo o filho de um pintor de paredes com uma costureira, num bairro que só tinha ligação com a “cidade” pelo ônibus ou pelo bonde do Juvevê.

Dotti com dom Hélder Câmara e Alvaro Dias. Foto: Acervo pessoal

O menino, gago, via o pai embelezar as casas da região. Em entrevista a José Wille, diria com orgulho que seu pai não fazia paredes lisas, mas enfeitadas com flores e ornamentos. A mãe, igualmente, ele classificava como “costureira de estirpe”. Naquele bairro pacato de italianos e alemães, porém, as coisas começariam a mudar em breve.

Nos anos 50, enquanto Dotti se aventurava pelos palcos, o governador Bento Munhoz da Rocha Netto moldava o mundo ao redor do rapaz. Nasciam ao lado do bairro o Palácio Iguaçu, o Tribunal de Justiça, a Assembleia Legislativa – o Centro Cívico onde ele passaria tantos anos de sua vida ganhava forma.

Durante os anos de formação, Dotti trocou os palcos pelas redações de jornal. Lembraria pela vida toda do ambiente, que ele classificava como um palco iluminado. Diria que adorava ver as notícias chegando pelo telégrafo, a animação de todas aquelas pessoas pensando juntas. De ator, passou a crítico de teatro. E em 1958 mudaria de palco.

Diploma na mão, René Dotti começou a advogar – atividade que, junto com as aulas e os livros, tomou a maior parte de sua vida profissional. Teve seis anos de exercício profissional antes que os milicos dessem o golpe, iniciando uma nova fase para o país e obrigando o jovem advogado a enfrentar um desafio.

Com a ditadura, vieram a censura, as prisões dos adversários políticos, as arbitrariedades. E, mais tarde, as torturas, mortes e desaparecimentos. Ser advogado dos adversários do regime exigia peito, mas Dotti topou a parada.

Dotti defendendo estudantes durante a ditadura. Foto: Acervo pessoal

“Já no dia 3 de abril, na boca do golpe, saiu a campo em defesa de um oficial preso”, registrou o jornalista José Carlos Fernandes. “Astuto, sacou as manhas para lidar com o regime. Os militares iam de farda. Ele, de beca. Guerra é guerra. Um bêbado, ao vê-lo certa vez, paramentado, chamou-o de ´padre porreta´. Risos. Por supuesto, representava uma ameaça. Ser fichado pelo Dops era só um dos preços a pagar. ´Tive medo, confesso. E tenho falado muito na liberdade de não ter medo. O medo torna a alma refém´.”

A defesa dos párias de 1964 tornou Dotti famoso. A troco de nada, de graça, defendia jornalistas que falavam o que não se podia falar; sindicalistas que exigiam direitos num regime que os negava; professores e estudantes que queriam a liberdade de ensinar e aprender. Seu escritório se tornou um muro de lamentações, e Dotti nunca fugia da missão.

O jornalista Francisco Camargo recuperou um texto de Milton Ivan Heller sobre a atuação de Dotti com a chapa cassada do Sindicato dos Jornalistas.

“Final de janeiro ou início de fevereiro de 1964, vitória acachapante da chapa dos ditos subversivos, com mais de 80% dos votos. Euforia (agora vamos!), jornalista deve ser bem pago, etc. Veio o golpe em 31 de março e nos primeiros dias de abril o presidente eleito Milton Cavalcanti e toda diretoria e conselho fiscal foram cassados por ordem do general Alberto Massa, recém-nomeado delegado regional do Trabalho. A nova ordem era não mexer com os sindicatos apelegados, destituir e processar os agitadores. 

“Seguiu-se o erradamente denominado IPM (Inquérito Policial Militar) da Última Hora. Indiciados 21 réus da UH e de outros jornais, com acusações como a de tentativa de reorganizar o Partido Comunista e de afrontar a segurança nacional – entre outras aberrações. O IPM durou quatro anos e todos os réus foram absolvidos por decisão do Tribunal Superior Militar, graças à brilhante e corajosa defesa de uma aguerrida equipe de advogados, liderada por René Dotti.”

Na entrevista a Wille, Dotti contou um dos perrengues que passou, já com Rosarita, a mulher com quem se casou em 1969 e que agora deixa viúva.

“O delegado Josias Algavro, numa ocasião, não me deu a certidão negativa para poder viajar à Argentina e defender uma tese que eu havia escrito em favor da própria Escola de Polícia do Paraná, onde eu era professor. Ele me negou a certidão. E disse para a minha mulher, que foi buscar a certidão na delegacia, ‘Eu conheço o René faz tempo, admiro o trabalho dele, mas eu não posso dar a negativa, porque tem essas anotações’. E ela olhou e disse ‘Aqui está advogado de Vinholes, advogado de Vieira Netto, mas a Constituição não garante defesa?’. Ele disse ‘É, mas eu tive que tomar essas anotações aqui e, infelizmente, a certidão não pode sair’. E não saiu!”

Dotti com a esposa, Rosarita: 52 anos juntos. Foto: Acervo pessoal

Em 1971, o governador Haroldo Leon Peres, indicado pela Arena, virou o alvo da oposição por mudanças pouco democráticas que queria fazer na Constituição Estadual. Os deputados do MDB, único partido de oposição permitido pelo regime, correram para Dotti, que os socorreu com um mandado de segurança. As mudanças à Constituição foram para o lixo.

“O Dotti era nossa referência, nosso advogado para as causas da liberdade, da justiça, das instituições”, diz Alvaro Dias, na época um deputado estadual de 26 anos.

Com o tempo, os artigos, as defesas, os pareceres, Dotti ganhou celebridade nacional. Mais para o fim da ditadura, já era chamado para ajudar a formatar leis, como o Código Penal. Dali em diante, todas as principais legislações da área criminal do país passariam por seu crivo, não à toa.

Com a redemocratização, o mesmo Alvaro Dias o chamou para o governo. Perguntou que posição ele queria no time, imaginando que ia ouvir Casa Civil ou Justiça. “Ele me surpreendeu falando que queria ser secretário de Cultura. Eu desconhecia esse lado dele. Mas foi uma grande descoberta, ver aquele homem dos tribunais inaugurando obras com gente simples do interior”, diz o senador.

Pouco depois, Dotti teria outra participação célebre na defesa da democracia brasileira: foi um dos redatores do pedido de impeachment do primeiro presidente a governar sob a nova Constituição Democrática. Fernando Collor cairia em finais de 1992.

Nas décadas seguintes, Dotti seria uma espécie de personalidade do direito nacional. Estava em todos os cantos, era admirado e citado. Seu escritório chegou a 60 funcionários e seus livros viraram referência.

Dotti no lançamento de obra de Rubem Braga. Foto: Acervo pessoal

Sua última participação de destaque na cena nacional foi na Lava Jato. Seu confronto com os advogados de Lula virou notícia e tema de polêmica. Continuou escrevendo e atuando até o fim.

Dotti morreu em casa aos 86 anos. Deixa a esposa Rosarita, as filhas Rogéria e Cláudia, e os netos Gabriel, Pedro, Lucas e Henrique.

Sobre o/a autor/a

5 comentários em “O legado de René Dotti, um dos mais celebrados advogados do país”

  1. Texto magnífico. Professor René antes de grande advogado, jurista e professor, sempre foi um homem de Deus, um pai de família, um grande humanista, um artista, que sempre deu ênfase no “ser” e não no “ter”.

  2. Prof. René Dotti, um homem sábio e de muita força que cumpriu sua missão e engrandeceu os direitos e as garantias fundamentais na nossa hora mais sombria. Foi em paz.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima