Morre Raul de Souza, o “Miles Davis brasileiro”

O trombonista morreu em Paris, terra de sua esposa, aos 86 anos

Quando soube da passagem do trombonista Raul de Souza, 86, que faleceu em sua casa na França durante a noite do último domingo (13), o pianista Jeff Sabbag foi tomado por uma série de lembranças dos oito anos que conviveu com o músico, fazendo shows pelo mundo todo. “Eu liguei pro Glauco pra gente conversar. Cê acredita que nós morremos de rir? Eu falei: cara, que legal, ele morreu e a gente tá aqui rindo de amor”, conta. “Em vez de chorar de pena, a gente riu de amor.”

“Glauco” é Glauco Sölter, outro amigo pessoal e músico parceiro de Raul. Tanto ele quanto Sabbag vivem em Curitiba e compartilharam com o Plural algumas das memórias que dividiram durante esse telefonema. A começar pelo dia em que Sölter conheceu o trombonista em Paris, em ‘98. 

“No início da década de ‘90 eu abri um show do Raul de Souza no Paiol. Fiquei sabendo quem ele era, assisti ao show, admirei e tal, mas fiquei na minha. Em ‘98 eu estava morando em Paris. Quando vi que ele ia tocar numa casa tradicional de jazz da cidade, decidi vender meus discos lá perto, na esperança de encontrar com ele. E não deu outra”, relembra. “Eu falei: pô, eu abri seu show lá em Curitiba, sou amigo do Helinho Brandão! Ele me convidou para assistir ao espetáculo, era uma homenagem ao Tom Jobim. Depois eu tive que ir embora, porque morava longe e tinha que pegar o trem até meia-noite, mas ali a gente começou o contato.”

Desse encontro nasceu uma parceria frutífera que durou décadas. Raul, Sölter e Sabbag tocaram juntos na China, na Índia, na África, em Madagascar e na Romênia, só para citar alguns países. O Brasil todo também conheceu o talento do trio de amigos, que participou de festivais de Manaus a Porto Alegre. 

Foto: arquivo de Jeff Sabbag

“Eu toquei com os meus ídolos porque todo mundo queria tocar com o Raul, ele é respeitado no mundo todo. Pra você ter uma ideia, a gente foi tocar numa ilha na África e, quando chegou ao aeroporto, tinha uma banda marcial nos esperando. E quando fomos tocar na Romênia, por exemplo, havia novecentas pessoas no teatro e trezentas pessoas pra fora”, diz Sabbag. “O Raul sempre levou muito público pros shows dele, sabe? A gente acabou aprendendo a lidar com isso tudo e viramos músicos de jazz internacionais, graças ao Raul de Souza.”

Ligação com Curitiba

Curiosamente, Raul viveu em Curitiba entre ’58 e ’63, quando era militar da Aeronáutica. “Ele contava as histórias das aventuras dele na época que estava no quartel… Dizia que tombou um jipe, que passava a madrugada no bar e chegava pra tocar o hino nacional de manhã, que ia de farda pra noite… Tem até uma guarita com o nome dele por lá. Ele era um cara muito cativante e espontâneo, totalmente verdadeiro”, fala Sölter.

A temporada curitibana foi tão boa que o músico tem família na cidade até hoje: filhos, netos e bisnetos ainda moram aqui. “Ele sempre perguntava de Curitiba e conhecia a cidade muito bem. Se você soltasse o Raul aqui no centro, ele sabia ir pra qualquer lugar. Ele adorava o fato de que Curitiba é fria, porque gostava desse tempo mais ameno, sabe?”, comenta Sabbag.

O pianista teve um problema de saúde e precisou deixar os palcos, mas abriu um bar em Curitiba, o Dizzy Café Concerto, onde Raul tocou três vezes nos últimos anos. “Às vezes ele estava meio sem dinheiro, quando morava em São Paulo, e pegava um ônibus desses da Cometa pra ver os filhos, ver a gente, tocar… O Raul amava a nossa cidade, amava mesmo.”

Personalidade

“O Raul era um homem macio”, começa Sabbag. Ele descreve um cara que falava macio, tocava macio e tinha mãos macias e curadoras. “A banda viajava muito, então todo mundo chegava quebrado nas cidades pra tocar. Às vezes a gente estava no hotel, cada um quebrado pra um lado, e o Raul trazia um óleo e dizia: vou fazer massagem em vocês. Ele pegava na gente com a mão super leve, a gente nem sentia. Eu pensava que não ia adiantar nada, só que quando ele terminava a massagem, a dor passava. Uma vez eu dei um mau jeito na coluna que nem conseguia me virar. Em quinze minutos, com a ponta do dedo, o Raul me destravou. É coisa que só sabe quem conviveu com ele por muito tempo, né?”

Foto: arquivo de Jeff Sabbag

Sölter fala de um amigo querido, generoso e espiritualizado. “O cara meditava todo dia, tinha seus gurus. Ele tinha um altarzinho em casa e sempre os reverenciava e fazia uma conversa. Acho que ele se preparou muito pra esse final de vida.”

“A partir do momento que ele se casou com a Yolaine – e isso já faz uns vinte e poucos anos – eles foram parando de beber e fumar, mas ele já bebeu muito e fumou durante 67 anos”, relata o baixista. “Eu o conheci numa fase mais branda. As pessoas contam histórias de que, quando mais novo, era um cara meio bravo, tinha uma certa rigidez. Penso que pra ele ter se salientado no meio em que atuava, tinha de ser casca grossa mesmo. Ele era um guerreiro.”

Legado

Sölter ressalta que os Estados Unidos têm uma tradição de bons instrumentistas de sopro – e mesmo assim Raul de Souza, um brasileiro negro, foi bastante valorizado em território americano porque era um virtuoso. “Quantos músicos brasileiros fizeram o mesmo? É muito raro, sabe? É difícil bater os caras.”

Na visão do baixista, o diferencial do amigo morava na intersecção entre suavidade e firmeza. “Acho que o grande legado dele é o timbre diferenciado: essa suavidade firme ou essa maciez sólida, uma coisa assim. Ele criou melodias que fazem a gente chorar e tantas outras cheias de vigor.”

Sabbag vai além: compara o ex-parceiro de palcos com Miles Davis. “Se eu pudesse fazer uma comparação, diria que o Raul foi o Miles Davis da música brasileira. Ele conseguiu agregar fãs do chorinho ao jazz rock. Tem meninos de 20 anos ouvindo e tocando o Raul de Souza hoje. E o Raul morreu com 86. Ou seja, é maravilhoso um cara de uma outra geração influenciar jovens. Coisa que só Miles Davis e Raul de Souza fizeram.”

Foto: arquivo de Jeff Sabbag

Fim de vida

No ano passado, Raul descobriu que estava com um câncer na garganta e chegou a anunciar sua aposentadoria do trombone, mas prometeu voltar à ativa com outro instrumento. Infelizmente não foi possível. Ele viveu seus últimos meses na França, terra de sua esposa, Yolaine, para quem compôs uma canção em 2006.

“O câncer já tinha se manifestado anos antes, mas ele fez um trabalho com lasers e o eliminou. Tocamos juntos pela última vez em janeiro de 2020, na Oficina de Música de Curitiba, pouco antes da pandemia. No meio do ano, quando ele foi pra França, me explicaram que o câncer tinha voltado e ele teria que fazer uma operação, mas não ia poder tocar mais”, lamenta Sölter.

O que mais entristece o baixista é a distância imposta pela crise sanitária. “A gente não podia estar junto com ele – nem a família, que não teve a possibilidade de visitá-lo nesse período em que ele estava se tratando. Depois os médicos disseram que não havia mais alternativa e ele foi pra casa, onde morreu.”

“Quando eu soube do câncer, que ele não poderia mais tocar, eu falei: o Raul morreu, ele não vai aguentar ficar sem tocar. E nisso se passaram alguns meses e ontem me ligaram dizendo: Jeff, faz duas horas que o Raul morreu em Paris”, desabafa Sabbag. “Claro que eu fiquei chateado, mas o dia que eu chorei de verdade foi o dia que me falaram que ele estava com câncer e não poderia mais tocar. Nesse dia eu chorei. Ontem eu senti uma espécie de alívio, porque eu sei que ele não está mais sofrendo.”

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