Voluntário no CVV, ele já ouviu centenas de pessoas interessadas em cometer o suicídio

Após 5 anos na linha de frente da prevenção ao suicídio, Antonio carrega uma certeza: falar é a melhor solução

Há alguns anos, Antonio Carlos Vilela estava na cidade de Belém, no Pará, quando recebeu um panfleto explicativo do acolhimento emocional por telefone, com sigilo e sem julgamentos, do Centro de Valorização da Vida (CVV) – uma ONG focada na prevenção do suicídio. 

Antonio já havia passado por uma dessas dores que marcam a alma. Ao cuidar das cicatrizes deixadas por uma tragédia familiar, ele acabou se tornando mais sensível ao sofrimento do outro. Talvez por isso, sentiu-se tocado pelo que leu naquele pedaço de papel.

Tempos depois, ele passou a ofertar seu trabalho voluntário para o Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro, em Curitiba, cidade onde vive com a família. “Acompanhei de perto a vivência de um jovem e aquilo me chamou a atenção para o suicídio. Foi quando procurei o CVV, buscando uma forma de ser útil no processo preventivo”.

De lá pra cá, sua rotina já mudou um bocado, mas o laço com o CVV permanece intacto. Há cinco anos, ele passa quatro horas por semana conversando com desconhecidos sobre as dores do mundo. Como são ligações sigilosas, ele prefere não compartilhar muito do que ouve, mas garante que as narrativas são similares às que acessamos todos os dias por meio de músicas, poemas e filmes.

Seus atendimentos podem ser feitos de forma remota ou na sede do CVV, no bairro Água Verde, pertinho da Praça do Japão. Antes da pandemia, 10% do trabalho dos voluntários curitibanos era cumprido em casa. Hoje, esse percentual mudou para 90%, em respeito ao distanciamento social.

Seja qual for o ambiente escolhido, Antonio sempre começa o turno com o chamado “zeramento”. “Quando você chega no posto, é bom tomar um momento antes de começar. O CVV tem pessoas de todas as religiões. Alguns fazem uma prece. Eu, particularmente, medito. Como faço meditação há muitos anos, o meu zeramento é muito específico”.

Em seguida, ele empresta sua escuta atenta para quem quer que seja. Chegam pessoas de todos os gêneros e classes sociais. O atendimento é totalmente aleatório e pode durar o tempo que for: alguns minutos ou todas as quatro horas. A média das ligações é de 50 minutos.

“O voluntário é treinado para ouvir o sentimento da pessoa. Não é ele o protagonista da conversa, é quem liga. Mas como o voluntário é gente e está no seu próprio processo de aprendizado, se você ligar e não sentir empatia, a gente orienta que se despeça e ligue de novo. Vai cair em outra pessoa – e pode ser um encontro de almas”.

O trabalho parece denso, mas ele garante que sai mais leve do que entrou. É claro que volta e meia se identifica com alguma história e fica mexido, mas aí se permite sentar no gramado e chorar à vontade, tomando esse esvaziamento como terapêutico. Além disso, os voluntários são assistidos de perto e têm suporte para não guardar as dores alheias para si.

Falar é a melhor solução

Depois de cinco anos de experiência no CVV, Antonio não duvida do slogan da casa: falar é a melhor solução. “É como se você colocasse luz num porão da sua alma, da sua mente”, diz. Mas ele tem clareza de que, para isso, primeiro as pessoas precisam vencer preconceitos. Muita gente não gosta de falar de morte, que dirá de suicídio. É o que ele chama de “tabu multifatorial”. 

“No período em que foi escrito Os sofrimentos do jovem Werther, houve uma epidemia de suicídios na Europa”, ele regata. “O personagem principal do livro do Goethe se mata após um episódio de separação. Os estudos verificaram que as pessoas estavam lendo o livro, identificando-se e matando-se pelo mesmo método, então passou-se a chamar esse fenômeno de Efeito Werther”.

Algumas marcas culturais evidenciam até onde o discurso do Efeito Werther se estendeu. Durante anos a fio, as universidades de jornalismo orientaram os estudantes para não falar sobre suicídio na mídia. “Correndo o risco de falar e não ser bom, criou-se esse tabu”, explica o voluntário.

Também já houve um tempo em que as igrejas sequer enterravam os mortos por suicídio no chamado “campo santo”, o cemitério. “Os padres não faziam a extrema-unção. A família era estigmatizada e a pessoa também”, conta Antonio. “Esse tabu persiste no inconsciente coletivo. A família enlutada por suicídio tem dificuldade de dizer a causa mortis, mesmo hoje em dia”.

Em 1962, o CVV resolveu encarar esse desafio cultural e oferecer ajuda a quem sofre. A ONG, que é uma das mais antigas do país, foi fundada por 14 jovens em São Paulo e passou por uma série de aprendizados ao longo do tempo. “Com a experiência de 60 anos ouvindo o sofrimento, a instituição percebeu que à medida em que a pessoa vai falando, ela vai colocando pra fora suas questões emocionais e dividindo o peso dessa dor com alguém”.

“Às vezes, a pessoa em depressão é repetitiva. Ela fica com aquela monoideia de sofrimento e as pessoas com quem ela convive perdem a paciência. Então, o funcionamento do CVV passa a ser bastante importante. Além do terapeuta, né? É essencial buscar ajuda profissional”, ele orienta.

O CVV e a prevenção do suicídio

Atualmente, são quatro mil voluntários em todo o Brasil, em mais de 120 postos distribuídos pelas capitais. A sede curitibana completou 40 anos em 2020, com cerca de 90 voluntários. Os atendimentos são gratuitos, feitos durante as 24 horas do dia e os 365 dias do ano.

Desde a implementação do telefone 188, por meio de acordo com o Ministério da Saúde para assegurar a gratuidade da tarifação telefônica, o CVV registrou cerca de três milhões de atendimentos por ano. A instituição não divulga dados locais. Inclusive, faz questão de frisar que as ligações são atendidas pelo voluntário disponível, sem direcionamento por geolocalização.

Mas os atendimentos não se restringem às ligações telefônicas. Há quem prefira escrever – e tudo bem, o CVV acolhe. Clique aqui para acessar o chat on-line ou aqui para enviar um e-mail à equipe.

Para se tornar um voluntário, é preciso passar por um treinamento. “Utilizamos uma abordagem centrada na pessoa, criada pelo psicólogo americano Carl Rogers. Às vezes a pessoa está fazendo uma narrativa de sofrimento e aquilo é uma cortina de fumaça pra dor real, como a ponta de um iceberg. Somos treinados para trazer a fala do sujeito pro sentimento”.

Os treinamentos são gratuitos e úteis mesmo para quem não quer ser voluntário, mas quer aprender a ouvir pessoas em sofrimento exercitando o não-julgamento. É mais um serviço público do CVV. Mas caso a pessoa perceba que tem disponibilidade interna para se voluntariar, é convidada a fazer um estágio. O pré-requisito é ter 4h30 disponíveis por semana.

Vale a pena ser voluntário?

Depois que desligam o telefone, os voluntários do CVV não ficam sabendo o que acontece com quem está do outro lado. Antonio já falou com centenas de pessoas e acredita mais do que nunca no clichê que ouviu já no seu primeiro treinamento: se conseguiu ajudar uma única pessoa, o trabalho valeu a pena.

Ele recorre a Heráclito para descrever como a experiência no CVV transformou sua vida: “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio”. Desde que começou o voluntariado, ele amadureceu muito. Tornou-se um cara mais atento, mais empático e menos julgador – qualidades que merecem ser cultivadas, sobretudo nos tempos líquidos que vivemos.

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