Uma história de vida marcada pela luta por moradia digna

Conheça Vera Lúcia Soares Peres, a líder comunitária que não engole sapos para defender a periferia

Esta publicação faz parte do Festival de Jornalismo Literário, organizado em parceria pelo Plural e faculdades de jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa. Jessica Brasil Skroch é formada pela UFPR

Quem olha Vera hoje, jamais diria que ela já foi tímida. Pelas ruas das Moradias 23 de Agosto – que fica na periferia de Curitiba, no bairro Ganchinho – ela anda um pouquinho e já para a fim de cumprimentar uma amiga, um conhecido, os comerciantes da rua Eduardo Pinto da Rocha. De uma ponta da quadra até a outra, têm-se em torno de sete tchauzinhos com oi-como-vai, cinco conversas de comadre, três notícias boas ou ruins, e uns dois abraços de criança à distância. Feito graveto em riacho, trombando nas pedras, vai Vera pousar em toda a gente o seu olhar carinhoso. Os filhos já entendiam a lógica e não deixavam a mãe ir comprar pão se estivessem com muita fome: “Deixa que a gente vai, mãe. Se não você não volta nunca”. Quem não conhece a Vera Lúcia Soares Peres na vila, que atire a primeira pedra.

Mas essa Vera passou por muitas outras Veras antes de chegar na de hoje, que tem 66 anos e milhares de histórias inspiradoras, engraçadas, tristes. Algumas das mulheres que ela já foi permanecem, outras foram embora. A Vera tímida pode até estar ali ainda, mas pouca gente conhece. O maior prazer que já sentiu na vida, esse ficou. O paraíso dela é em meio à natureza, plantando, colhendo, cuidando. Para ela, isso sim que é vida. Ter frango, porco, leite, verduras, legumes e frutas, nada mais faltaria. Mas seu marido achou que se ganhava muito pouco do campo e quis se mudar para a cidade grande. “Uma frescura”, conta ela. Tentar uma vida melhor em São Paulo foi um engano e a penalidade foi pagar aluguel: sentença que Vera não admitiu carregar para o caixão.

A primeira luta

Foi em uma vila muito pobre em Parelheiros, um distrito estilo “cidade do interior” que fica na zona sul de São Paulo, que ela percebeu que as coisas não poderiam ficar sempre do jeito que estavam. Lá, no lugar que morou por cinco anos, foi a primeira vez que entrou numa Associação de Moradores, para buscar os tíquetes de leite para os filhos. Em uma época de crise que só era permitido levar um litro de leite por família, às três horas da manhã já estava Vera na fila da padaria.

Nessa grande vila “estragada”, como conta ela, não tinha nada, nem asfalto, nem posto de saúde, nem água encanada. De vez em quando (se não de vez em sempre), a água que vinha do poço tinha um cheiro ruim, por causa das muitas mortes de sapos que aconteciam lá dentro, contaminando a água. Após cada velório, toda a água do poço era esvaziada para ser tratada. Vera ficava indignada com a situação e foi conversar com o presidente,perguntar se nunca tinham lutado pela água potável. Ele respondeu que sim, que já tinha reclamado na Sabesp (a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), mas que essas coisas “não dão em nada”.

– Mas lutou de que forma, você levou uma comissão? – questionou Vera.

– Não, ué. Basta eu, sou o presidente da Associação.

Vera não acreditou que o título fosse suficiente. Um presidente é feito de muitos presidentes, assim como Vera era feita de muitas Veras. Ele sozinho não poderia mudar algo, porque uma andorinha só não faz verão. Decidiu fazer um abaixo assinado, ainda que ele insistisse que não resolveria o problema. Ela tirou os sábados e domingos, seus dias de folga do serviço de diarista, para colher as assinaturas. Fez um cabeçalho a mão mesmo, explicando a situação, e foi batendo de casa em casa. Levou vários dias, mas todos assinaram. Com a esperança nas mãos, pediu uma folga no trabalho e foi até a Sabesp.

“Foi minha primeira vez fazendo algo assim e eu não me esqueço nunca”, suspira. Onde foi parar a timidez nessa hora, não sabe. Mal imaginava que entrar na Associação de Moradores resultaria em muito mais do que em um litro de leite, mas em água potável para uma vila inteira. O presidente da Associação até tentou dizer que era uma conquista dele. Na primeira luta pela comunidade, ela já começou a entender como funcionava a política, o jogo de poder. Foi logo dizendo que ele era um mentiroso, já que Vera não é de engolir sapos. E não engoliu nunca mais desde então.

Tem que ser bem organizado, né?

Cansada de ver os seis filhos largados em casa, Vera decidiu vir para Curitiba e contar com a apoio dos irmãos para cuidar dos pequenos. Chegou na Capital em 1988. Mais uma vez, a sentença do aluguel. Era ela que ia todo mês na imobiliária pagar para que a família tivesse um teto. Que sofrimento! O marido, marceneiro, não ajudava muito. Ou bebia o dinheiro que ganhava, ou não ganhava o dinheiro porque bebia.

Um dia, Vera pagou o aluguel e ficou praticamente sem nada. E agora, o que faria? Subiu-lhe o desespero de uma mãe que não tem o que dar de comer aos filhos. Vera é boa das estratégias, contam os conhecidos. Porém, sabe-se lá o que deu nela quando resolveu tentar a sorte numa raspadinha, paga com o trocado que havia sobrado. “Quem sabe eu tiro uns 50 centavos, um real?”, pensou. E não é que veio um dinheiro bom? As crianças ganharam o chinelo que não tinham, três toalhas de verdade – já que que se enxugavam do banho com camisetas velhas – , e ainda sobrou para o pão do mês. “Diz que Deus não se põe em meio de jogo, mas dessa vez ele se pôs”, brinca. Talvez Vera soubesse jogar melhor que Deus.

Um pouco depois de se instalar na cidade, ela começou sua participação no movimento de luta pela moradia. Foi aí que Vera lembrou que se existe um problema, a solução precisa ser organizada. E feita por muitas mãos.

Quem colocou no mundo que cuide

Vera lembra até hoje o dia exato em que foi livre de novo: 21 de setembro de 1991, o dia do vencimento do seu último aluguel. Durante a ocupação, só ia para casa lavar as roupas a cada 15 dias. No resto do tempo ficou primeiro embaixo das lonas, depois num barraquinho em meio a grama seca, as cobras, e o lixo. Tudo era difícil. Sem um telhado que segurasse a chuva de granizo, sem rua, sem carteiro, sem água, sem luz, sem lixeiro. Os tratores que derrubavam os barracos, os vigilantes armados. Enquanto os maridos estavam fora, trabalhando ou bebendo, as mulheres ficavam lá, impedindo que outras pessoas invadissem e o lugar ficasse com moradias “de qualquer jeito”, e esse não era o objetivo. Mesmo assim, quatro famílias entraram de penetra. A sede da Associação de Moradores, necessária para melhorar a negociação dos terrenos, foi construída bem rápido, antes que não sobrasse mais espaço.

Dois anos depois da ocupação, Vera já foi candidata a presidente da entidade logo na segunda eleição. Depois dessa, foram mais três gestões, um total de 12 anos. Mas Vera nunca se considerou presidente, dona ou líder de coisa alguma.

“Na Associação é todo mundo junto. Não existe essa do eu, existe o nós. Tem que ter um presidente, um coordenador, aquele que está sempre puxando. Mas eu sou só uma pessoa. Numa votação, meu voto vale igual ao de todo mundo. Eu não tenho a palavra final.”

A negociação dos terrenos com os proprietários foi um parto. Mas a filha, ainda que pobre, foi bem educada e cresceu forte. As Moradias 23 de Agosto têm uma porção de mães. Vera diz que é porque a mulher sabe onde o calo aperta, porque ela é a economista da casa. Mas ela ressalta que não adianta só colocar no mundo, tem que cuidar, pensar na educação, na saúde, no lazer, em todas as condições de vida. E foi assim que a vila foi pensada, desde a concepção. Numa conversa com uma das mulheres que também participaram do processo, a dona Dalva.

Para as cartas, arrumaram um jeito de deixar num comércio ali perto, para então distribuírem entre as famílias. Depois, lutaram por um carteiro que entrasse nas ruas. O caminhão do lixo, só passava na avenida. Pediram uma caçamba para cada rua, e conseguiram também um projeto que trocava lixo orgânico por frutas e legumes. Depois, foi a vez da luz. Era um poste de luz solidário dividido em duas casas. A água foi mais complicada de conseguir, porque a Sanepar só coloca quando há pouco risco de despejo. Primeiro colocaram as torneiras comunitárias, uma torneira para cada duas ruas compridas. Essa é uma história que dá dor de cabeça em Vera só de lembrar.

Se alguém atrasasse o pagamento da água, o juro vinha para todos. Uns pagavam certo, outros não. De tanto ir na Sanepar negociar o “maldito juro”, como diz Vera, o pessoal da Associação fez amizade com um moço de lá. Imploravam. “A solução disso era fácil, era só colocar uma torneira de casa em casa. Já estava bom”, Vera recorda, com certa mágoa. Iam puxando rabichos. Não podia mais do que uma torneira em casa, não podia caixa d’água, se não quem morava mais em cima ficava sem nada. Vai e volta da Sanepar. Começaram a cortar a água para que tirassem os rabichos. Eles davam um jeito e ligavam de novo. A luz, mesma coisa. Até que um dia rodearam o carro da pessoa que veio cortar a luz e impediram: “Você não tem luz na sua casa, não?”. Foi tudo na base da pressão. E da paciência, coisa que Vera tem de sobra.

Ela resistiu em cada passo às injustiças do mundo. No casamento, também teve que suportar o insuportável. No começo, o seu esposo achou besteira a ideia de “tomar terra dos outros”. Ela persistiu: “Não vamos tomar terra, vamos buscar um direito nosso. Se você quiser ir, você vai. Mas eu vou e pronto”. Depois que ele viu que ela não desistiu, foi junto. Onde Vera ia, ele ia atrás perturbar. Cada reunião da associação, ela não podia contar para o marido onde seria. Cheirando a álcool, fazia barraco, dizia que Vera estava olhando para outros homens. “Eu não ia deixar de fazer as coisas porque ele bebia. A opção dele era beber, a minha era participar do movimento por moradia.” Os dois ficaram 42 anos casados, “uma vida inteira aguentando”, relembra, “tem que ter paciência, e eu sempre tive muita”.

A vida não é justa

Talvez uma das poucas coisas que tire Vera de sua calma etérea, é a injustiça. Quase toda vez que conta um caso que a marcou, é alguma situação desonesta. Nessas vezes, lembra da sua relação com a cultura política formal. Não foram poucos os políticos que bateram na porta de Vera para oferecer uma coisinha, pedir um apoiozinho. Ofereciam tanto dinheiro que ela já foi chamada de trouxa por não aceitar. Mas ela não admite fazer parte disso.

Houve também muitos candidatos que buscavam se aproveitar do trabalho do movimento para se promover. Ela, com um pouco mais de um metro e meio, já teve que empurrar um desses espertinhos de dentro da associação de moradores para fora da vila. O moço se vangloriava de uma conquista que não era dele, mas dos esforços dos moradores. “Aqui não, jacaré”, profere brava, porém meiga.

Foto: Jessica Brasil

Algumas injustiças

  • Capítulo I: pela ponte

Das loucuras que já fez por amor, Vera já destruiu uma ponte. Era um ponte de madeira, que ficava na rua Eduardo Pinto da Rua, em cima do rio Ribeirão dos Padilhas. De tão estreita, só passava um carro por ela, de forma que quem vem do outro lado, precisa esperar. Cada vez que chovia, a água no rio subia e passava por cima dela, e a ponte saía mais um pouco do lugar. Foram até a Secretaria do Obras Públicas denunciar, mas disseram que estava tudo certo. Como não foram ouvidos, começaram a fazer manifestações na rua, cobrando uma ponte nova.

Depois disso, uma ponte enorme foi construída, com duas vias de ida e duas de volta. Um dia, Vera reencontrou a mesma mulher dentro do ônibus, que disse que se arrependeu pelas ripadas. De bagunceira e incendiária, se tornou revolucionária. Vera sabia que de nada adianta ter uma ponte qualquer, ligando um lado ao outro. A ponte precisa de estrutura, para então se chegar ao outro. Só que isso dá muito trabalho, e nem todo mundo tem a paciência de Vera.

  • Capítulo II: pela água

E não foi só uma vez que bateram injustamente nela. Uma vez, a mulher responsável por uma das torneiras comunitárias não repassou o dinheiro da quadra. O prazo já tinha estourado, e nada do dinheiro. Vera cobrava, alertando que todos ficariam sem água. A mulher explicou que precisou usar para um tratamento de saúde, que iria repor com um certo dinheiro que receberia. Mas não recebeu.

Começou o tal do diz-que-me-disse. Quem pegou o dinheiro da água? Antes que Vera conseguisse convocar uma reunião com a quadra, três mulheres pegaram ela de surpresa para bater nela, dizendo que ela tinha roubado o dinheiro. Vera, que não ia ficar apanhando a toa, pegou um pedaço de pau e foi para o front. Foi uma das vezes que mais se sentiu humilhada, por não acreditarem nela. No dia seguinte, juntou todo mundo, inclusive a culpada do tumulto, para resolver a situação. Trouxe testemunhas de outras vilas, inclusive. Não só pela injustiça, mas por ter que se defender e bater em outras pessoas: “Onde já se viu, coisa de cachorro”. A história marcou Vera para o resto da vida.

  • Capítulo III: por Deus

Antes da 23 de Agosto ter uma igreja, as missas eram feitas embaixo de uma árvore. O padre mais próximo, da Comunidade Nossa Senhora de Fátima, no tradicional bairro de imigração italiana Umbará, não aceitava fazer as missas por lá, insistia que precisava ser numa comunidade que já estivesse formada. Mas os moradores da vila bateram o pé, as missas e catequeses aconteceriam na 23 de Agosto. Se algum dia ele mudasse de ideia, seria bem-vindo.

O problema mesmo foi quando as crianças foram impedidas de participar da celebração da Primeira Comunhão porque não vestiram roupa branca. Vera e Dalva recordam como se tivesse sido ontem. Reclamaram com o padre: “Como que a gente vai vir aqui fazer catequese para as nossas crianças serem discriminadas?”. Ainda, chamavam os pequenos de invasores, que os pais tinham roubado a terra de outros. Voltaram a insistir com o padre para liberar a catequese. Se ele não quisesse, iriam buscar o apoio de outro padre de outro bairro. Enfim, liberou a catequese. As missas começaram a ser feitas dentro da sede da Associação de Moradores, que ainda era só de reboco.

Pela política. Por amor

Vera é uma pessoa muito justa. Pondera cada lado, respeita todas as partes. Leva a democracia do lar para a comunidade. Explana seu ponto de vista com calma e transparência. Convida a participação de todos. Busca soluções aos sofredores. Ao lado de Vera, ninguém se sente sozinho. Diz que isso veio da mãe, que organizava a vizinhança toda para ajudar alguém que passava fome. “Esse é o meu ponto forte, gosto de ser solidária.”

Para dona Dalva, Vera é muito mais do que solidária, ela empenha todos os papéis que são necessários. “A Vera ela é advogada, engenheira, ela é tudo o que a gente precisa. É que ela é inteligente, ela entende de muitas coisas”, conta a amiga cheia de amor no olhar.

Vera e Dalva

Nos seus 12 anos como presidente da Associação de Moradores das Moradias 23 de Agosto, e nos 28 anos de história da vila, Vera não parou um só segundo de fazer política. Em cada luta, ela ecoava a sua voz, representando tantas outras vozes. Não permitiu a corrupção, a desigualdade, a violação de direitos. Não apanhava à toa. Foi forte por centenas de famílias. Passou por cima da timidez, do machismo, dos nãos do mundo, sempre com muito respeito.

Hoje, além de presidente da Associação, ainda participa como catequista, faz parte da Associação de Pais, Mestres e Filhos do Colégio Estadual Iara Bergmann, integra o Conselho de Saúde local. Não para quieta, não consegue. Os filhos perguntam se não está na hora de Vera sossegar um pouco em casa. Ela responde: “Para quê? Para ficar em casa lavando, cozinhando, passando e… morrendo? Se eu ficar dentro de casa eu morro cedo, a cabeça começa a enfraquecer. Não posso parar. Vocês querem uma mãe morta em casa, ou uma viva na rua?”

Apesar de querer continuar na luta, Vera não será mais candidata à Associação, acha que está na hora de mudar. Tudo que é demais, faz mal. Ela participará, como sempre, mas não quer mais o posto.

Em menos de cinco anos, espera voltar para a vida que sempre sonhou, em uma chacrinha. O impasse fica quando pensa na vila, que não conseguirá deixar nunca. “Eu me imagino levantando de manhã ouvindo os pássaros, dando de comer para os animais. Mesmo que eu não more lá, vou passar mais tempo na chácara do que na cidade.”

Ela explica que é mais tranquilo viver na natureza, ainda mais ela que tem (apenas) 66 anos. Com muita estrada pela frente, se ela seguir firme como o pai que tem 98 anos, ou como a avó paterna, que morreu com 103, ou como a avó materna, que só faleceu com 98 porque caiu e não se recuperou. “Se eu viver pelo menos até os 80, já está bom.”

Humilde, a Vera.

*Esta é a segunda parte da publicação, pelo Plural, do projeto Mulheres da Vila

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “Uma história de vida marcada pela luta por moradia digna”

  1. Tenho um imenso orgulho de ter conhecido a Vera quando estávamos preparando o 18º Grito dos Excluídos. Tive a grata satisfação de participar das reuniões na associação de moradores e na paróquia. Vera é uma mulher forte, lutadora e que sempre está ajudando a comunidade. Sempre ativa. Participou da formação de agentes da Pastoral da Saúde no Umbará e atua com garra no conselho de saúde. Fico muito feliz de ler um pouco de sua história. Há muitas outras que fazem dela um exemplo de mulher justa e batalhadora.

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