Todos abandonavam os pacientes de Aids. Todos, menos eles

Grupo de Adesão do Hospital de Clínicas da UFPR tem longa história de auxílio a pacientes

Esta publicação faz parte do Festival de Jornalismo Literário, organizado em parceria pelo Plural e faculdades de jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa. O livro-reportagem de Pedro Macedo está sendo publicado em capítulos nesta semanaVocê pode conferir a primeira parte aqui. A segunda está aqui. A terceira está aqui. Esta é a quarta.


O Grupo de Adesão do HC começa na minha história antes mesmo deste livro. Em outubro de 2018, o professor do meu curso, José Carlos Fernandes, carinhosamente chamado de Zeca, me pediu para ajudá-lo na diagramação eletrônica de um livro. O projeto era uma série de depoimentos de infectados com HIV e que frequentam o Grupo de Adesão do HC.

Acredito que a ali tenha sido o pontapé. Ler aquelas histórias me permitiu ter uma visão do mundo em que as pessoas vivendo com HIV habitam, e que eu não conhecia. Depois de entrevistar Silas e Maria Alba, basicamente os responsáveis pelo nascimento do grupo, passei a entender ainda mais relevância deste livro e de debater a aids. Além do HIV, aprendi outras coisas. Silas me ensinou a receita de farofa formidável. Maria Alba me mostrou um café bem perto da minha casa, que eu nem sabia que existia.

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O telefone de Maria Alba de Oliveira Silva começa a tocar dentro de bolsa. Ela está acomodada em uma das cadeiras do café chamado Empadaria SantaLu, no bairro do Bacacheri, Zona Norte de Curitiba. Diferente da Casa das Bolachas do primeiro capítulo, o lugar não é uma referência de encontros entre orientadores e estudantes. Mas serve como uma pequena pausa para aqueles que trabalham a região. Ou visitantes a passeio pelo Museu Egípcio – provavelmente único lugar em que se encontra uma múmia em Curitiba –, ou pelo Parque Bacacheri. 

Ao atender, um grande sorriso se abre. Nos primeiros segundos de conversa, reconhece que é uma amiga que a chama. Alguns minutos de acenos repetitivos com a cabeça e sons de concordância. Ela se anima e interrompe quem fala do outro lado da linha:

— Você vai me convidar para comer risoto? 

Aposentada e divorciada aos 60 anos, Maria Alba continua com sua mesma pele cor de cuia, olhos verdes ainda mais brilhantes e esguia em seus 1,60 metro. Agora, os cabelos estão cortados no estilo que ela mesmo chama de “Joãozinho” e pintados pelo branco da experiência. Tem a beleza colada à pele. Passa muito do tempo igual a Rita Esmanhoto, evitando que todos os dias virem eternos domingos. É amante de cinema e teatro. Uma das suas metas agora é conhecer todos os cafés de Curitiba em que pode se aproveitar uma boa bebida, ler um livro e desfrutar do tempo da forma que bem quiser. 

Desliga o telefone.

O seu convidado está sentado do outro lado da mesa. Nosso estudante universitário do livro sobre a aids questiona o final da saga culinária narrada ao fone.

— Deu certo o risoto?

— Ela não me convidou, foi falar de outros assuntos –, guarda novamente o aparelho na bolsa, fecha o zíper e acomoda no pé da cadeira.

— Poxa, eu até tava chamando o Uber aqui para passar no mercado e comprar um vinho.

Maria Alba. Foto: Arquivo pessoal

As risadas cessam após a chegada das empadas e dos cafés à mesa. A empadaria é um ambiente pequeno, com poucas mesas e com apenas uma fileira de poltronas mais confortáveis, de tecido, que ficam ao lado da porta de entrada. O ambiente é familiar. As conversas podem ser ouvidas por qualquer um, de qualquer canto. Lá não é servida uma xícara grande de café com leite como a Casa das Bolachas. No entanto, disponibiliza-se uma opção de menu que seria extremamente atrativa aos estudantes da UFPR no Centro: três empadas por dez reais. Enquanto aproveita os quitutes recém-tirados do forno, Maria Alba continua contando sobre a história que nos interessa – de quando Silas Moreira e ela desenvolveram um grupo de extrema importância para o tratamento da aids em Curitiba: o Grupo de Adesão do HC-UFPR.

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Maria Alba se formou em Enfermagem, pela UFPR. Sempre acreditou ter um instinto de se atentar com os outros, o que lhe rendeu o apelido de “cuidadora”. No mesmo ano em que se formou, passou a trabalhar no Pronto Socorro do Hospital Evangélico de Curitiba, de grande renome na cidade. Ainda em 82, Alba deu à luz seu primogênito e teve que conciliar o trabalho no hospital com o papel materno. Em 1984, a mudança de emprego do Evangélico para o HC-UFPR a colocaria em contato com a HIV e o tratamento contra a aids. Foi na mesma exata época do primeiro caso em Curitiba. 

No prédio amarelo-mostarda do HC, Alba cuidou do setor de isolamento. Anos depois, esse espaço passaria a receber mais equipamentos e se transforma no atual serviço de infectologia. Naquela época, não se tinha muita noção das patologias que viriam a se tornar específicas da área da infectologia. Por muito tempo, esses profissionais eram chamados de “médicos tropicalistas” ou “especialistas em doenças tropicais”. Que podiam ser a malária, febre amarela ou mesmo dengue. Dentro do setor de isolamento, os funcionários tinham de entrar sempre com o aparato completo. Portavam luvas, máscaras, uniformes descartáveis, por segurança. Havia um certo medo inicial de contato com o paciente, pois ainda não se tinha certezas de como se dava a transmissão. 

Após alguns anos trabalhando no isolamento, já na década de 1990, Alba foi transferida para o atendimento ambulatorial. A equipe em que passou a atuar sempre foi muito próxima e respeitosa. Por causa desse engajamento, ela conseguiu galgar um patamar de respeito dentro do ambulatório, principalmente na questão da prescrição de medicamentos. Alba conhecia toda aquela gama de 30 a 40 comprimidos diários dos pacientes. E durante o atendimento ao doente, deixava uma listinha, explicando em detalhes quais remédios tomar, em que momento do dia e o melhor jeito de armazená-los. 

Junto com a prescrição do medicamento, Alba aprendia também o cuidado paliativo. Em muitas consultas, a enfermeira precisava entender como era o cotidiano de cada paciente, para poder receitar os remédios de acordo com as necessidades de cada um. Que horas dormia, o que comia, quem tinha geladeira em casa e quem não tinha. Em casos de viagem, era necessário organizar uma caixa de isopor para os medicamentos. Todos esses detalhes sempre foram muito necessários nos protocolos de Alba, para oferecer um atendimento mais humanizado.

A atividade no ambulatório era intensa e a equipe multidisciplinar do HC-UFPR aumentava a cada dia. Em 1998, esses profissionais, dentro do hospital, acompanharam de perto um concurso público, aberto pela universidade para a contratação de novos profissionais. Em maio daquele ano, entraria pela porta do ambulatório um homem de 1,65 metro, alguns quilos a mais concentrados no abdômen, pele negra e irresistivelmente simpático. Silas da Silva Moreira começaria a trabalhar como assistente social no HC e criaria uma amizade com Maria Alba, ainda hoje intacta. 

Silas e Alba: a dupla do grupo de adesão. Foto: Arquivo pessoal

Silas chegou ao hospital após oito anos de trabalho na antiga Rede Ferroviária Federal. Natural de Umuarama, no Noroeste do Paraná, mudou-se para a capital paranaense por causa do serviço militar obrigatório. Logo após foi encaminhado para a Rede Ferroviária, onde teve contato com a profissão de assistente social, que começava a ter suas diretrizes estabelecidas. Antes de chegar ao serviço militar, queria mesmo era fazer Direito. Pensava trabalhar com apoio jurídico ou quem sabe usar uma toga e ser júri de algum tribunal. Mudou de ideia e no momento de se inscrever no vestibular optou por Serviço Social, pela Faculdade Espírita do Paraná.

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Era 1990, mas o contato de Silas com a aids vem de uma memória bem antiga, de 1983, antes do primeiro caso em Curitiba. O programa Fantástico colocou no ar a primeira reportagem da TV brasileira sobre o vírus. O repórter Hélio Costa, na época correspondente da Globo em Nova York, entrava na tela no domingo à noite com seu terno, microfone colado ao peito e uma cabeleira meio acinzentada. 

O tom da reportagem era bem alarmista. A música de fundo parecia a trilha sonora de algum filme de terror. A narração falava sobre a “doença misteriosa”, candidata a epidemia mais violeta do século, responsável por matar mais de mil pessoas nos últimos 18 meses nos EUA. A doença era A-I-D-S. Falava-se soletrando, sem que fosse pronunciada ritmicamente, como uma única palavra: aids. 

A reportagem mostrava que o problema atingia países além dos EUA, com focos na Europa Ocidental, Canadá, Haiti, Caribe, e poucos na América do Sul. As únicas pistas e dados sobre contágios que Hélio Costa oferecia remetiam ao caso dos hemofílicos, refugiados e homossexuais. Apesar de ainda serem separados em grupos de risco, o repórter fala, com sua voz profunda, que não se deve mais associar a doença exclusivamente aos gays. 

Durante nove minutos em que a reportagem ficou ao ar, Silas ainda nem sabia que iria trabalhar com a doença. Pensava ser uma coisa de outro mundo, que dificilmente chegaria à realidade brasileira. A transmissão do Fantástico terminava com Hélio Costa chamando a aids de um “mal fulminante”. Ao ser desligada a TV, Silas volta ao cotidiano sem saber que iria encontrar rapidamente pacientes de aids, antes mesmo do HC. 

***

A Rede Ferroviária havia implantando um programa para acompanhar os casos de HIV notificados dentro da empresa. Além do médico, havia também um psicólogo e um assistente social para fazer o atendimento. Assim que diagnosticado, o paciente era afastado por motivos de saúde. A equipe da Rede Ferroviária realizava visitas regulares nas residências ou nas UTIs em que esses funcionários estivessem internados. 

O serviço social é responsável por cuidar da sociabilidade do paciente, prestando assessoria previdenciária e alertando para direitos sociais. Muitos infectados eram abandonados pelas famílias e, então, precisavam de encaminhamento para uma casa de apoio. Nesse momento em que o paciente não tinha um refúgio, entra o assistente social. O suporte era profissional, judiciário e familiar. 

O complexo do HC: maior hospital do Paraná

Depois que a Rede Ferroviária foi privatizada, Silas e outros funcionários se viram demitidos pela nova gestão. Na procura por um emprego, encontrou o processo do concurso público para o HC-UFPR, que incluía na chamada a profissão de assistente social. Ele prestou prova em maio de 1990 e foi aprovado. Após subir a rua íngreme que dá acesso ao prédio amarelo mostarda, seria encaminhado diretamente para a equipe multidisciplinar, junto com Rita Esmanhoto, Cléa Ribeiro e sua futura grande amiga, Maria Alba.

Assim que o hospital começou a implantar os serviços de atendimento à aids, os profissionais passaram por capacitações específicas para lidar com o tema. A doença no início era extremamente mortal. Ao descobrir o diagnóstico, alguns pacientes recebiam seus registros de aposentadoria imediatamente, porque se acreditava que não sobreviveriam por muito tempo. Silas conheceu todos os tipos de pacientes. Do mais debilitado até aqueles que foram aposentados desde a década de 1980, mas não precisavam tomar remédio, porque o vírus havia agido diferente no organismo.

Junto com Alba, aprendeu como dosar aqueles mais de 30 comprimidos que se tomava e a conhecer os efeitos colaterais de cada um. Só de passar perto, por causa do cheiro do suor, Silas conseguia reconhecer se a alguém tinha HIV ou não. As toxinas de alguns medicamentos exalavam um odor pronunciado na transpiração do paciente. 

Em 1999, o Ministério da Saúde lançou em Curitiba o curso de Preparação Facilitadores em Adesão ao tratamento de pacientes vivendo com HIV/aids. Foi um dos primeiros do Brasil e que contou com a participação da equipe do HC, justamente Alba e Silas. O curso terminou no fim daquele ano, mas a empolgação de Maria Alba gritava para que ela continuasse o trabalho. Toda animada com a ideia, ela lhe faz um convite ousado:

— Silas, o que você acha de a gente criar um grupo de adesão dentro do HC?

Sem nenhuma objeção e pronto para encarar o desafio, Silas topa. Em janeiro de 2000, começa, no HC, o Grupo de Adesão, ainda hoje em atividade, agora com o nome “Reatar”.

O Grupo de Adesão é frequentado por pacientes com complicações da aids ou infectados com HIV. São majoritariamente empobrecidos, com dificuldade de aderir aos medicamentos. Uma vez feita a adesão, deixar de tomar medicamentos pode aumentar a resistência aos remédios. À época, esses pacientes que moravam em casas pequenas, não tinham como esconder da família os comprimidos que tomavam. Ao contar o que tinham, enfrentavam a ignorância sobre o assunto. E nem sempre contavam com apoio caso sentissem muitos efeitos colaterais – diarreia, vômito, vertigem e mesmo algumas pequenas deformidades, como ressecamento dos sulcos da pele e gordura acumulada nas costas.

A intenção do grupo é instrumentalizar os pacientes na questão do tratamento. Ao mesmo tempo, trazer uma equipe médica que entende sobre o assunto para esclarecer questões que os contaminados podem ter. É apoio, literalmente. A equipe de Silas e Alba contava com médicos, enfermeiros, nutricionistas, assistentes sociais e outras as áreas da saúde. A dificuldade principal, conta Alba, era com psicólogos e psiquiátrico. Alguns dos pacientes davam entrada em outros órgãos que tivessem o serviço psicoterápico. 

O grupo começou em uma pequena sala dentro do Setor de Infectologia do HC, que ficava livre durante as tardes. As cadeiras ficavam em formato de semicírculo para que todos pudessem se ver. As reuniões foram estabelecidas para acontecer às terças-feiras, às 14 horas. O horário é contraturno para ambos e não havia atendimento ambulatorial médico. Desta forma, os interessados não precisariam faltar aos compromissos agendados com seus infectologistas. Os pacientes ficavam sabendo do grupo pelas consultas e eram convidados a participar, sem nenhuma obrigação. 

Pacientes conviviam com dose gigantesca de medicamentos

Em 2000, tudo se deu como mágica. Enquanto Alba cuidava dos últimos arranjos na decoração para receber os pacientes, Silas foi para a copa passar um café e fazer alguns lanches com pães e frios, tudo por iniciativa própria. Aos poucos, alguns rostos tímidos apareceram na porta e se acomodaram. Silas carrega uma garrafa de café na mão e na outra, os aperitivos. O relógio bate às duas em ponto. Começava a primeira reunião do grupo de adesão. Na sala, apenas cinco pacientes. 

O número poderia ser pequeno, mas foi o suficiente para alimentar ainda mais a vontade de Alba e Silas em dar continuidade ao projeto. No primeiro contato, começaram a trabalhar a questão da aids a partir do que eles chamavam de Terapia do Espelho. Incentivavam os pacientes a enxergar no outro tanto a melhoria quanto a não-melhoria, e partir daí inspirar um projeto de vida. Funcionou. Junto, Silas entrava para falar sobre a parte judiciária, como vales transporte, casas de apoio e outras orientações trabalhistas. Aconteciam casos, por exemplo, de empregadas domésticas serem demitidas no dia em que a patroa sabia do diagnóstico. O que constituía um flagrante preconceito. Além de mostrar as diretrizes na Justiça que o paciente poderia tomar, Silas também instruía que em alguns casos não era preciso falar que portava a doença: estava comprovado não haver o risco de transmissão em certos contextos. 

Naquela época, Silas orientava os pacientes a conseguirem o auxílio doença do governo. Muitos não tinham informação sobre como fazer, ficavam com vergonha ou nem procuravam. Além da saúde, era preciso assegurar os direitos dos pacientes. Em casos de demissão, Silas mesmo entrava com o processo. O grupo teve a contribuição da instituição Pela VIDDA Paraná, que trabalhava com a população vivendo com HIV e que tinha uma assessoria jurídica, assim como advogados que auxiliavam nessas questões.

Após um tempo, Alba teve a ideia de começar a coletar informações diretamente com os pacientes. Pedia que eles mesmos sugerissem tópicos para serem abordados nas reuniões. Esse trabalho foi interessante, pois o foco das discussões passou a ser o dos membros que frequentavam o grupo.

O número de participantes aumentou gradualmente, de forma orgânica, com o passar das reuniões. Um contava para o outro sobre os encontros e passava a informação adiante. O grupo servia também como espaço de sociabilidade para os pacientes, que podiam ter um ambiente de conversa e troca com outros que passavam pela mesma situação. Em certo momento, aqueles que estavam há mais tempo na adesão conseguiam ajudar e orientar os novatos. 

Os encontros duravam cerca de uma hora e meia. A cada semana que se passava, mais gente chegava, fossem contaminados em tratamento, assintomáticos ou profissionais de outras áreas médicas que faziam participações especiais como convidados. 

O tempo de permanência dos membros variava muito. Alguns ficaram cerca de 20 anos. É o caso de um paciente, Alba se lembra, que estava lá desde a primeira reunião. Morreu em 2019, com uma sobrevida bacana, passada em parte no Grupo de Adesão. Outros ficavam apenas alguns dias, largavam e nunca mais voltavam. Na lista de motivos de desistências, estava a dificuldade em pagar a passagem até o HC, visto que muitos não tinham uma renda suficiente. Por causa disso, o grupo diminuiu bastante. 

Alba não entendia muito bem aqueles que diziam ter vergonha de comparecer ao grupo por medo do preconceito. Até que um dia, enquanto se preparava para fazer seu pedido numa churrascaria que sempre frequentava, o garçom que veio lhe atender era um dos que participaram no Grupo de Adesão. Ele havia deixado o grupo semanas antes. Ali percebeu que alguns tinham medo de se mostrar, porque nunca se sabia quando iriam encontrar alguém na rua. E se o paciente fosse associado com um grupo que tratava da aids, aquela situação poderia fazer com que perdesse o emprego. 

Da mesma forma em que havia pacientes que compartilhavam certo receio, também havia os extremamente tranquilos em relação à doença. Um desses casos que Alba se lembra foi o de uma mulher com mais de 60 anos. Ela frequentou o Grupo de Adesão após ter sido diagnosticada com o vírus, provavelmente contraído do marido. O homem morreu e durante o velório a paciente contou aos presentes qual era a realidade. Explanou que estava infectada, que o marido havia morrido por complicações da infecção e que não guardava remorsos. 

Alba tinha um interesse particular por essas pacientes que lidavam bem com o diagnóstico. Tentava entender como era possível viver melhor após a doença. Ela avalia a evolução da adesão dos pacientes que tinham mais tendências a ficar depressivos, comparando com os que acabavam levando “a vida numa boa”, como ela diria. Em uma dessas entrevistas, alguns falavam que de uma certa perspectiva, a vida havia e passado a ter mais sentido depois do HIV.

Na hora das partilhas, durante as reuniões, apareciam dilemas dos participantes, como mulheres casadas convivendo com homossexuais. Uma delas se dizia “inocente” da doença, porque não era a culpa dela estar contaminada. Isso gerava um desconforto aos outros ali presentes, que de acordo com essa moça, seriam “culpados”. Nem sempre os embates eram agradáveis e as brigas e insistências contra o preconceito se faziam comuns. Todo o estresse da reunião ia embora durante o final, quando todos passavam a ter acesso aos lanches feitos por Silas. No fim, muitos abraços. Eles e elas têm necessidade de se sentirem tocados.

***

Dentro do Grupo de Adesão, os profissionais tiveram que lidar com muitas situações adversas e curiosas com os pacientes. Isso ajudou com que eles construíssem um repertório não só sobre a doença, mas sobre os preconceitos comuns sofridos pela população que vive com HIV.

Silas relembra de muitos pacientes, que ao receberem o diagnóstico, procuravam igrejas evangélicas para suporte religioso. O infectado que estava tomando remédio e perto de atingir a carga viral indetectável parava com a medicação por sugestão do pastor. Meses depois, esses pacientes voltavam ao HC, adoecidos, à procura ajuda de médica. Em alguns casos, era tarde. Hoje esse tipo de prática é considerada um crime.

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O grupo também tinha de estar preparado para aconselhar a própria família do paciente. Silas lembra de estar presente em uma dessas consultas de verificação. Uma moça bem jovem, de 17 anos, vinda do interior do Paraná, recebeu o diagnóstico de HIV após o casamento. Estavam presentes a mãe, o cunhado, a paciente e o marido. A mãe estava revoltada, pois acreditava que o genro havia contaminado a filha. No entanto, o homem havia feito o teste anteriormente e deu negativo. A família julgou ser falso e exigiu que o exame fosse refeito. O novo resultado provou que o marido não tinha o reagente. 

Silas recorda do olhar da mãe em recusar aceitar que a filha teve contato sexual antes do casamento. Jurava de pés juntos que não havia outra possibilidade. Foi difícil convencer de que ela tinha perdido a virgindade com outro. Infelizmente, a equipe do HC não os viu mais e nunca soube de quem a adolescente contraiu o vírus. O assistente social conta que da última vez que teve notícias sobre esse caso específico, ela ainda estava casada com o mesmo rapaz.

O grupo recebia também as profissionais do sexo, comumente chamadas de garotas de programa ou prostitutas. As mulheres relatavam que os clientes se recusavam a usar o preservativo. Muitos chegavam a oferecer um valor maior, só para não usar a camisinha. Como aquelas mulheres precisavam do dinheiro para sustento, confidenciavam ao pessoal do hospital que tinham que mentir sobre a doença. Não só pelo dinheiro, mas para preservar a integridade física.

Com algumas dessas profissionais, o próprio Grupo de Adesão buscava alternativas para tirá-las da rua. Uma delas era uma paciente com três filhos pequenos, que fazia programa, da qual Silas não se recorda muito bem da aparência. Após uma longa conversa com os assistentes sociais do HC, ela opta buscar outro tipo de renda, considerando os riscos que aquilo trazia para os filhos. Perguntada sobre alguma habilidade que tinha, não disse nada e apenas pediu uma quantia de R$ 20,00, para começar um negócio do zero, relembra Silas. Em garantia, ofereceu o celular. A equipe recusou, pois não havia a intenção de reaver o dinheiro. Com o valor, ela comprou algumas bijuterias e foi revender na Rodoferroviária de Curitiba. 

Na semana seguinte, voltou empolgada. Ela compartilhou com a equipe do HC que conseguiu comprar, além de novas bijuterias, alimento suficiente para ela e os filhos. As vendas continuaram por alguns dias. Na semana seguinte, a equipe do HC a encontrou novamente na rua. Preocupados e surpresos com a desistência tão rápida, perguntaram-lhe o motivo. Ela contou que o fiscal da Rodoferroviária não havia permitido que trabalhasse sem um alvará, tendo toda a sua mercadoria apreendida. Em caso de reincidência, teria que pagar uma multa. A equipe tentou convencê-la a dar mais uma chance, mas a mulher não voltou mais ao grupo.

Outra paciente entrou em internação algumas semanas depois de Silas perder contato com a mulher da Rodoferroviária. Apesar de ter recebido alta médica, ainda aguardava a alta social, para saber se estava em condições de voltar ao trabalho. Silas a achou extremamente culta. Conversava sobre diversos assuntos de literatura e era politizada. Durante a entrevista para coleta dos dados pessoais, não havia nenhuma declaração de emprego legal e nem contato telefônico de parentes.

— Você não tem ninguém que possa lhe acolher? –, questionava Silas.

Ele não entendia como aquela mulher não tinha endereço fixo ou nem vínculo familiar. A insistência continuava para que falasse alguma coisa sobre a vida que tinha, para que ele pudesse ajudar. 

— Me diga pelo menos com o que você trabalha –, pediu Silas.

Após alguns longos minutos deitada na cama, enquanto encarava o assistente social, ela lhe respondeu:

— Qual parte você ainda não entendeu que eu sou quenga? 

***

Em outras situações, o paciente tentava esconder que tinha o vírus. Foi o caso de uma mãe com duas filhas, que omitiu o fato da família durante seis anos. As crianças não estavam infectadas. No entanto, a mais velha passou namorar um jovem que tinha o HIV. A mãe perguntou a Silas o que fazer e ele disse que o certo era contar. Não ia adiantar esconder por muito tempo. Nesse caso, a mulher acatou a sugestão de se abrir para as filhas sobre a doença, o que fez com que o laço entre elas ficasse ainda mais forte.

Algumas figuras públicas recusavam assumir a infecção. Era o caso de um jornalista assessor da Assembleia Legislativa, que frequentava o Grupo de Adesão. Alba lembra que ele nunca se deixava ser fotografado e nem participava dos eventos. Ia apenas às reuniões no dia de consulta e sempre desaparecia do radar dos profissionais nos dias seguintes.

O preconceito era trabalhado dentro do Grupo de Adesão. Silas lembra de um dos pacientes. Um homem gay de classe média alta, que não era aceito pela família. Ele namorava um rapaz que não tinha o vírus e os dois se mudaram para Curitiba. Foi a forma que acharam para não ter que conviver com a família no interior. Na capital, o paciente passou a frequentar o grupo. 

O contaminado, no entanto, morreu algum tempo depois. Silas acompanhou o sofrimento do companheiro durante o velório. Na volta para o apartamento onde o casal morava, a fechadura havia sido trocada. Aquele moço não tinha mais acesso a casa. Descobriu-se depois que a família do jovem morto foi ao local, trocou a chave e queimou muitos dos pertences. Levou embora objetos de valor. Silas lembra bem a fala do companheiro em luto, ao afirmar que família não tinha interesse na aceitação da doença ou em acolher a orientação sexual do filho. O interesse sempre foi no patrimônio.

***

Dentro do grupo, o trabalho de adesão de Silas se destacava. Alba via nele alguém que tirava tudo de si para dar aos outros, mesmo que isso significasse estar mimando demais os pacientes. Alguns dentre os que abandonavam o tratamento sabiam do rigor de Alba em relação ao comprometimento com o núcleo. Os desistentes que queriam voltar corriam para o “Santo Silas”, como ele era chamado, para conseguir uma vaga no atendimento novamente. E sem nenhum questionamento, ele ia lá e dava um jeito de trazer o paciente de volta. 

 — Você está passando muito a mão na cabeça deles, Silas –, brincava Alba.

— Pois é né, mas fazer o quê? Eles gostam da gente –, comentava Silas.

Com as reuniões do grupo cada vez mais cheias, Silas foi atrás da Prefeitura Municipal de Curitiba conseguir um vale transporte para os frequentadores. Como muitos estavam desempregados, não conseguiam arcar com as despesas de locomoção para participar das reuniões. A política tinha o nome de “Hospital Dia”. Geralmente, os pacientes chegavam ao hospital de manhã e voltavam só de noite, passando o dia inteiro lá. O VT garantia somente que os participantes fossem às reuniões do grupo e que ficassem no hospital para receber o tratamento. Silas conta que o benefício foi cortado com a gestão que assumiu o poder municipal em 2016.

Ao voltar para o grupo, os ex-desistentes se preparavam para a terapia de choque da Maria Alba. Sentavam-se no cantinho da sala, com cara de arrependidos. Alba os trata como adultos, e coloca a força de suas palavras no entendimento de que o sucesso do tratamento passa pela perseverança em se cuidar. 

— O que aconteceu contigo nessas últimas semanas? –, perguntava aos que voltavam ao grupo.

— Depois que parei o tratamento… fiquei meio adoentado e acabei sendo internado. Era tuberculose –, respondia um dos pacientes.

— E você vai querer ter de novo? –, questionava Alba.

Nenhuma resposta era necessária. Aquela sementinha ficava na cabeça dos pacientes sobre a necessidade de levar o tratamento a sério, que era decisório na vida deles. Para aqueles que ficavam no grupo, o depoimento que ouviam sobre a internação após parar de tomar os remédios reforçava a orientação de que precisavam de uma boa adesão. 

O Grupo de Adesão – na fase Silas e Alba – conseguiu ajudar os pacientes a superarem os sofrimentos que carregavam. Os contatos continuam até hoje – o Grupo de Adesão vive.

***

Antes de trabalhar com a população vivendo com HIV, Alba teve experiências com grupos de dependentes químicos e familiares. Ela sempre acreditou que ter um vínculo entre os participantes é fundamental para se manter em qualquer relação. Logo, sempre que possível tentava se projetar no lugar do outro.

“E se fosse comigo?”

O exercício era imaginar uma mesa. Pode ser essas de consultórios, geralmente retangulares. De um lado fica o médico e do outro o paciente. Alba do seu posto de profissional se imaginava do outro lado. Tomava para si a questão do outro. A ação passa a ter muito mais sentido.

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Maria Alba e Silas ficaram no grupo por 18 anos. Eles encerraram as atividades em 2018, por questões burocráticas com o HC e porque entendiam que o ciclo havia se completado. Atualmente, o grupo continua com o nome “Reatar”, sob os cuidados do infectologista Jean Marcel Lemes. Com o trabalho dos dois, o Grupo de Adesão foi reconhecido não só no Paraná, como nos setores de infectologia do Brasil. Muitos tentaram reproduzir o modelo, mas talvez não tenham encontrado um Silas e uma Alba A luta foi incansável durante todos os anos em que eles tentavam ganhar reconhecimento. Em todos os aprendizados, além do manejo com os pacientes que vivem com HIV, os dois acumularam vivências riquíssimas sobre sexualidade, humanização e abrangência interpessoal e profissional. O grupo era a própria terapia para eles. Uma troca que sustentavam não só os pacientes como a eles mesmos.

***

Em dezembro de 2019, essa turma que se encontrou lá na década de 1980 voltou a se juntar em um almoço, na Arquidiocese de Curitiba, promovido pela Pastoral da aids. Maria Alba, Cléa Ribeiro, Rita Esmanhoto. Todos marcaram presença. Virou uma choradeira relembrar todos os momentos que viveram juntos. Silas naquele dia estava terminando seu turno no HC, mas tinha que ir para seu outro emprego, como assistente social em São José dos Pinhais. Havia prometido levar uma farofa para o almoço e conseguiu passar lá por apenas uma horinha, o suficiente para matar a saudade.

Além dos profissionais participantes deste livro estavam outros que trabalham atualmente com a questão da aids. Continuam a tarefa começada lá em 1984. Vários contatos “da turma do almoço” se mantêm até hoje. Pergunte por telefone, e-mails, endereço, todos ali sabem e estão sempre marcando de sair para um café, almoços ou tomar um chope de noite. Isso quando a cidade ainda não estava parada por causa do coronavírus.

As histórias de transformações se mostram presentes. Alba encontrou no almoço quatro pacientes que fizeram a adesão aos medicamentos no grupo e hoje estão formados e de vida mudada. Duas delas são mulheres que focaram suas pesquisas na faculdade sobre a aids e trabalham com a doença. No mesmo encontro, um rapaz chegou exaltado, abraçando e beijando Alba, dizendo que devia a vida a ela. Depois de um tempo olhando para o moço tentando reconhecê-lo, ela finalmente lembrou quem era.

— Não acredito. É você “Cara de Pau”?

O apelido carinhoso dado por Alba é porque ele era um dos pacientes do grupo que mais paravam de tomar remédio. A justificativa que dava é que “não precisava, porque que não ia adoecer”.

— Eu mesmo –, dizia, rindo 

— E olha só, até consegui um emprego agora.

A ação do grupo incentivava aqueles pacientes a não desistirem de suas vidas. Era possível estudar e conseguir empregos e ter uma rotina saudável. Para Silas, esse capítulo de sua trajetória lhe proporcionou não só uma experiência mais humana, mas entender que a doença pode atingir todo mundo. Qualquer pessoa pode estar suscetível. 

Hoje o Grupo de Adesão permanece sendo estudado por estudantes e pesquisadores que fazem trabalhos de mestrado e outros grupos de Iniciação Científica. São alunos da Universidade Tuiuti, da Faculdade Espírita, que ainda oferece o curso de Serviço Social, no qual Silas chegou a dar aula. E para a produção de Trabalhos de Conclusão de Curso da própria UFPR, com o objetivo de eternizar essa luta que começou em 1984, mas que perpetua até hoje na mão de outros profissionais.

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4 comentários em “Todos abandonavam os pacientes de Aids. Todos, menos eles”

  1. Sueli Preidum de Almeida Coutinho

    Brilhante artigo que registra um dos mais belos trabalhos desenvolvidos no Hospital de Clínicas de Curitiba, graças a essa dupla Silas e Maria Alba. E toda essa excelência de trabalho e atendimento realizado em um serviço de saúde do SUS.
    Silas é um grande colega de trabalho e lutas na categoria, companheiro em diversas gestões do Conselho Regional de Serviço Social – CRESS 11ª Região e no FOPASS – Fórum Paranaense de Assistentes Sociais na Saúde, do qual é um dos fundadores.
    Parabéns Pedro Macedo por registrar a participação tão importante desses dois profissionais de saúde, tão queridos por tantas pessoas.

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