“Tirem meus dois braços, mas não tirem minhas crianças”

Professora que adotou dois filhos antes de destituição estar completa vive em eterna insegurança; Curitiba aderiu à prática no ano passado

Ana Paula Modesto e o marido Nelson Sicuro não aguentavam mais a espera. Três anos depois de terem entrado na fila e de estarem habilitados para adotar seus filhos, seguiam sem notícias, sem previsão de quando iam conseguir finalmente ter a família completa que desejavam. Cadastrado nas varas de Curitiba, o casal desejava ter duas crianças. “Eu estava aflita, não sabia mais o que fazer. Foi aí que comecei a ligar para outras cidades”, conta Ana, enfermeira e professora no curso de Medicina da PUCPR.

Do tipo decidida, Ana resolveu telefonar para outras cidades, outras varas. Coisas do destino, pouco tempo depois, o casal foi chamado para ir a Minas Gerais. Em Belo Horizonte, havia duas crianças esperando para adoção. Querem conhecer? Não foi preciso nem pensar duas vezes. Foi amor à primeira vista e, em pouco tempo, a família estava finalmente unida em Curitiba. Mas três anos depois, o final da história, por incrível que pareça, ainda não aconteceu.

O menino que veio para Curitiba aos 5 anos e a menina que chegou aos 2 ainda não tinham sido formalmente desligados da família de origem. Em termos técnicos, o processo de destituição do poder familiar não estava encerrado. A mãe biológica perdeu a guarda das crianças porque, segundo o Judiciário de Minas, não tinha condições psicológicas de cuidar dos filhos (e, aqui, é melhor deixar os detalhes de lado). Mas a mulher não aceita a perda e até hoje recorre na Justiça, pedindo um laudo psiquiátrico.

Foto da família quando as crianças chegaram, em 2016.

Em tese, a situação inteira poderia se reverter. Caso o Tribunal de Justiça de Minas decida que a mãe biológica tem razão, as crianças poderiam voltar à família de origem. É improvável: a jurisprudência costuma entender que, depois de tanto tempo, a situação está consolidada. Mas o fantasma ronda o casal curitibano diariamente. “Que arranquem meus dois braços, mas não tirem essas crianças de mim”, diz Ana Paula. Dá para entender.

Curitiba: de exceção a regra

Até o ano passado, Curitiba era uma rara cidade no Brasil que jamais iniciava o convívio da criança com a nova família antes de encerrado o processo de destituição. Era uma espécie de garantia. Uma segurança de que o espectro que persegue Ana Paula não rondaria as cabeças de outros pais adotivos. No entanto, isso mudou com a reforma do Estatuto da Criança e do Adolescente, promovida em 2018 pelo Congresso Nacional.

Agora, os juízes das duas varas de Infância da cidade, aos poucos já dão início ao estágio de convivência antes da destituição completa. Em uma das varas, por exemplo, isso aconteceu apenas duas vezes no ano passado – e o casal é sempre informado da situação, com os riscos que isso implica. Mesmo sabendo que há a possibilidade de problemas, é comum que os adotantes aceitem iniciar o processo, por acreditarem na avaliação dos juízes de que o processo é irreversível.

O principal argumento em favor de iniciar a adoção mais cedo, em alguns casos, é evitar que a criança fique por um tempo desnecessariamente longo em uma instituição de acolhimento. Os juízes favoráveis à prática dizem só tomar a decisão de avalizar o início da adoção quando há indícios fortíssimos de que a família de origem não terá como recuperar a guarda das crianças – o poder familiar, no jargão judiciário. (Veja abaixo entrevista com uma das juízas da Infância de Curitiba.)

Insegurança deve ser levada em conta

No entanto, há bons argumentos dos dois lados. Para um dos maiores especialistas em direito da infância no país, o procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior, é preciso pesar bem os dois interesses em jogo: o processo deve ser rápido, mas ao mesmo tempo seguro. “Imagine a insegurança de uma família. E o trauma que pode gerar na própria criança uma situação em que o quadro acabe se revertendo”, diz ele.

Olympio diz que a tentativa de manter a criança com a família de origem deve ser sempre ser levada até o limite do razoável. “Antigamente, até por pobreza se retirava o poder familiar, isso gerava uma multidão de casos de crianças para adoção. Gerou-se até uma situação em que o Brasil virou fonte de adoção para pais de outros países”, diz ele. “Com o ECA, isso mudou. E é preciso insistir na manutenção da criança com a família de origem”, diz ele. Ou seja: seria preciso esperar pelo menos até o processo de destituição estar completo.

Olympio Sá Sotto Maior: é preciso pensar na insegurança da família

A opinião é compartilhada por outro especialista no assunto, o promotor Murilo Digiácomo, que já coordenou o Centro de Apoio às Promotorias da Criança e do Adolescente. “Considero uma imprudência dar início ao estágio de convivência no mínimo antes de uma decisão em segundo grau. O trauma para a criança pode ser muito grande”, afirma.

Para ele, antes disso, seria possível apelar para outras medidas, como o apadrinhamento afetivo, em que a pessoa ou o casal decidem ter um relacionamento com a criança, mas que não implica a convivência diária sob o mesmo teto. “Este é um vínculo que pode ser mantido mesmo caso a família de origem consiga reverter a perda do poder familiar”, diz.

Entrevista

“A preocupação deve ser sempre com a criança em primeiro lugar”

O Plural entrevistou a juíza Maria Lúcia de Paula Espíndola, responsável por uma das duas varas da Infância de Curitiba. Na opinião dela, a legislação apresentou avanços que fazem com que os processos de adoção sejam mais rápidos. A juíza também garante que os casos são analisados a fundo e que o estágio de convivência só é iniciado quando há segurança.

Por que as Varas de Curitiba mudaram sua política, passando a iniciar o estágio de convivência antes do final do processo de destituição do poder familiar?

Quero esclarecer que os magistrados exercem suas atribuições legais apenas no campo jurídico, dissociados de interferências político-ideológicas. É natural haver mudança de uma interpretação jurídica conferida a determinada matéria, desde que de maneira fundamentada, tendo em vista que o Direito é dinâmico e acompanha o processo de evolução social. Em vários temas importantes a sociedade avançou e construiu uma consciência de sua responsabilidade, tal como na questão da proteção ao meio ambiente.

Em que pesem os esforços e as conquistas já obtidas, ainda estamos formando uma consciência acerca de nossa responsabilidade social em relação às crianças acolhidas em instituições. Elas precisam estar visíveis a todos nós e ser destinatárias de nossa prioridade absoluta – o que estamos lutando para alcançar, de forma concreta, em nosso cotidiano. Sensível a esse fato, o legislador vem aprimorando o Estatuto da Criança e do Adolescente com o objetivo de impedir que uma criança permaneça acolhida indefinidamente.

Nesse sentido, as Leis nº 12010/2009 e nº 13509/2017 passaram a limitar em 120 dias o prazo máximo das ações de destituição do poder familiar, em relação às quais, em caso de notória inviabilidade de manutenção desse poder, a criança ou adolescente deve ser preparada para a colocação em família substituta, além de fixar que o acolhimento não se prolongará por mais de 1 ano e 6 meses e que serão cadastradas para adoção recém-nascidos e crianças acolhidas não procuradas no prazo de 30 dias por suas famílias.

A interpretação dessas alterações deixa evidente a necessidade de se resolver de forma célere a situação de crianças acolhidas, mas sempre de forma cautelosa, segura e prudente, mediante análise específica do caso concreto.

Assim, os Juízos da Infância e da Juventude de Curitiba passaram a autorizar, em tais hipóteses, o início do estágio de convivência, que antecede a adoção, antes do final do processo de destituição do poder familiar.

Parece sempre haver o risco de uma mudança inesperada dos fatos, o que causa insegurança para a família que está fazendo o processo de adoção. Como diminuir esse risco?

Primeiro, quero dizer que a adoção não é um meio de obtenção de uma criança simplesmente para satisfazer interesses do habilitado inscrito no cadastro de adotantes, independentemente de qual seja a sua configuração familiar. Pelo contrário, a adoção consiste em um ato de verdadeiro amor, que se destina a atender o melhor interesse da criança. A preocupação deve ser sempre com a criança em primeiro lugar e não com o adulto que deseja adotá-la. Durante o processo de habilitação à adoção, os pretendentes são esclarecidos, criteriosamente, de todas as nuances e eventuais dificuldades com que poderão se deparar. Por experiência de minha atuação profissional, posso afirmar que são raras as situações em que há repentina alteração dos fatos ou surpresa inesperada durante um processo de adoção.

O que a Sra. diria para famílias que têm receio de adotar uma criança nessas circunstâncias, ou para uma família que já está há algum tempo com a criança sem que o processo se encerre?

Posso observar durante o exercício de minha jurisdição que os habilitados para adotar não possuem receio, mas sim se sentem felizes em serem chamados para iniciar um estágio de convivência, anterior à adoção, ainda que não tenha sido finalizado o processo de destituição do poder familiar relativo à criança indicada. Quem tem receio não estaria inscrito no cadastro de adotantes, pois todas as dificuldades são abordadas e detalhadas durante o processo de habilitação. Quando há uma convocação, os habilitados são novamente esclarecidos sobre o trâmite processual e devem manifestar sua anuência quanto à indicação realizada pelo Juízo.

Adotar é um ato de amor incondicional e os habilitados quando estão
emocionalmente preparados sabem que não se deve buscar a adoção como forma de suprir uma carência particular. A preocupação deve ser sempre com a criança. Nessa área não pode haver receio nem ansiedade. Todos os habilitados devem ter a certeza do que desejam e de como lidar com os obstáculos que, eventualmente, possam se apresentar durante um processo de adoção.

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