Se encostar no médico pega Aids? (Nos anos 80 muita gente achava que sim)

Epidemia de HIV causou pânico na população, que não compreendia bem as formas de contágio

Esta publicação faz parte do Festival de Jornalismo Literário, organizado em parceria pelo Plural e faculdades de jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa. O livro-reportagem de Pedro Macedo está sendo publicado em capítulos nesta semanaVocê pode conferir a primeira parte aqui. A segunda está aqui.


A internet se tornou uma grande plataforma de disseminação de informações sobre saúde. Jogue a primeira pedra quem nunca pesquisou sintomas no Google antes de recorrer à ajuda médica. Canais como Tua Saúde ou Drauzio Varella no YouTube têm audiências enormes.

Um exemplo em 2020 é o pesquisador Átila Marinho, que alcança mais de 1 milhão de visualizações em transmissões ao vivo, com orientações sobre o coronavírus. E com a aids é parecido. É possível encontrar vários vídeos que tratam sobre a transmissão, medicamentos e outros tópicos pertinentes. Assim como a explicação para a dúvida mais comum: qual a diferença de aids e HIV?

Em uma dessas pesquisas no YouTube, possivelmente se pode esbarrar com uma das personagens deste capítulo: Cléa Ribeiro.

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São Paulo é uma cidade dos anos 1970 e 1980, assim como a aids.

Os dados da prefeitura baseados no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) mostram que a maior parte dos prédios em pé, atualmente, foi construída nessa época. Como estamos falando de uma cidade com mais de 460 anos, nota-se que São Paulo continua o tipo de lugar que os paulistanos adoram chamar, durante uma discussão com os irmãos cariocas, de moderna.

Em 1970, ocorreu o boom nas construções verticais em bairros como Pinheiros, Jardim Paulista, Liberdade e Santa Cecília: foram 760 mil casas, apartamentos, lojas e construções erguidas nessa época. Ao levar como base os anos 1980, são 650 mil imóveis construídos que permanecem em pé. 

Caso queira imaginar São Paulo em 1980, não precisa ir muito longe, arquitetonicamente falando. O próprio centro da cidade continua com boa parte das estruturas construídas naquela época. A diferença são os modelos antigos de Fuscas e Chevettes que lotavam as avenidas, já com grandes arranha-céus. E a moda dos paulistas, que usavam muita calça jeans larga, camisas coloridas e um estilo de cabeleira de gosto questionável para os dias de hoje. 

É por essa São Paulo de 1986 que Cléa Elisa Lopes Ribeiro passa na volta para casa. Ela pega transporte público para o condomínio em que mora, depois do expediente no Hospital Emílio Ribas, na região do Pacaembu. Mineira de pele clara, olhos castanhos e cabelos negros para além do ombro, Cléa havia acabado de terminar a faculdade de Medicina pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, em 1985. Um ano depois morava na capital paulista e trabalhava na residência de infectologia do hospital, referência no tratamento de doenças epidemiológicas, como a aids. 

Ela chega ao apartamento e faz seus procedimentos habituais. Toma um banho, escova os cabelos e garante a leitura do dia. Depois, opta por dar uma passada na comemoração de aniversário de uma das crianças do condomínio, no salão de festas.

Ao entrar no salão, cumprimenta os pais e outros convidados. Garante um docinho e vai se distrair um pouco com os pequenos. Dentro de toda festança e multidão de miúdos, uma menina agarra a barra de sua calça e pede para que Cléa a carregue no colo. Ela cede e brinca um pouco com a menina, enquanto a leva para a mesa na qual poderia escolher alguns dos vários doces disponíveis. Depois de se entreter, o corpo de Cléa pede ajuda para o sistema nervoso, que a lembra que está cansada de um longo dia de trabalho no hospital. Ela põe a menina de volta ao chão e se acomoda em uma das mesas com pais de outras crianças.

Papo de vizinho é aquela coisa. Não tem muito o que falar além da conta do condomínio, das reclamações de barulho, da péssima manutenção do elevador ou das encomendas que somem na portaria. Cléa interage mesmo assim. Ela gosta de conversar. Uma das mães chega, cumprimenta e começa um papo leve sobre a vida no trabalho. Um dos que estão sentados à mesa está com um copo d’água da torneira, que já podia ser usada para consumo próprio por causa do tratamento que a prefeitura fazia. Após longos monólogos sobre o quão péssimo foi o dia no trabalho, um dos pais pergunta a Cléa:

— Onde você trabalha mesmo?

— Eu sou residente no Emílio Ribas.

Silêncio. 

Todos os que davam risadas e sorriam parecem ter perdido a capacidade de ao menos abrir a boca. Alguns afastam as cadeiras para trás, outros mudam de assunto e alguns inventam uma desculpa para ir ao banheiro. A menininha que Cléa brincava antes volta para pedir mais atenção. Em um reflexo rápido como a velocidade da luz, a mãe agarra a pequena e a leva para longe de Cléa. 

Aquele era o preço por trabalhar no hospital referência no tratamento da aids na capital paulista. Os que participavam da festa sabiam que o Emílio Ribas atendia casos de aids, mas ao invés de reconhecimento, muitos preferiam a ignorância e nem ao menos tentavam conversar com Cléa para saber mais sobre seu trabalho. Eles se afastavam, porque tinham medo de “pegar aids”. Mal sabiam que o hospital contribuiu significativamente na construção de leis sanitaristas, para que a população paulista não caísse em mais enfermidades.

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A história do Emílio Ribas começa no século 19, uma época que trouxe epidemias que se converteram em importantes episódios históricos. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que a cólera dizimou centenas de milhares entre os anos 1817 e 1824. Tantas que se tornou impossível contabilizar com exatidão. A tuberculose tirou a vida de 1 bilhão de pessoas entre 1850 e 1950. A varíola deixou 300 milhões de mortos entre 1896 e 1980. 

Nesses anos, o hospital Emílio Ribas esteve presente no atendimento a várias doenças na capital paulista. Esse dossiê está preservado em uma linha do tempo disponível no site da instituição, que conta como surgiu o Ribas e os passos que levaram o hospital da varíola até a aids.

O sanitarista Emílio Ribas e a esposa.

A varíola foi a que mais causou impacto na cidade de São Paulo, na década de 1880. Autoridades sanitárias viram a necessidade de construir um espaço nos qual se pudesse tratar esses pacientes, um lugar que fosse longe do Centro, para evitar a contaminação. Surge, então, o Hospital do Isolamento Lazareto dos Variolosos – nome impertinente aos olhos de hoje –, a cerca de seis quilômetros da Praça da Sé. O que pode parecer pouco hoje em dia, mas uma quantidade interminável para a velocidade com que os meios de transporte se locomoviam. 

Em dezembro de 1902, o sanitarista Emílio Ribas e um colega médico e pesquisador, Adolfo Lutz, partiram para um experimento sobre a febre amarela e a transmissão. Foram seis voluntários (incluindo eles mesmos), que se deixaram ser picados por vários mosquitos infectados, enquanto um comitê acompanhava a evolução da saúde de todos. Os seis faziam o mais básico procedimento de pesquisa, a parte da comprovação de suas teorias. Partiam da premissa de que a febre amarela era transmitida apenas pela picada do mosquito. Em janeiro de 1903, após inúmeras picadas, o resultado não surpreendia: a febre amarela era mesmo transmitida apenas pela picada dos mosquitos. 

Após anos de pesquisa, em 1913, é fundada a Faculdade de Medicina e Cirurgia em São Paulo. Muitas das aulas práticas aconteciam no Hospital dos Variolosos. Com o aumento das epidemias, o lugar passou a ser referência no tratamento de diversos surtos na capital paulista. Em 1914, depois da varíola e da febre amarela, foi a vez da febre tifoide e da difteria aumentarem o número de pacientes que davam entrada ao hospital. Em alguns meses, constrói-se uma enfermaria de apoio para receber aquele oceano de enfermos. No ano de 1918, foi a vez da Gripe Espanhola, como ficou conhecido a epidemia do vírus H1N1.

No ano de 1925, a cidade volta a sofrer com surto da febre tifoide. Com a ajuda dos pesquisadores que trabalhavam no hospital, entendeu-se que a principal transmissão era via água da cidade. Com o trabalho científico dos profissionais do Emílio Ribas e orientação adequada, a prefeitura passou a fazer o tratamento com cloro, em 1926. O recurso impedia a formação e transmissão de novas bactérias e, consequentemente, novas epidemias. Pois essa água tratada foi responsável por matar a sede dos convidados da festa que Cléa estava, sem que a maioria ali tivesse “pegado” alguma doença. 

Diferente dos convidados, Emílio Ribas faleceu antes de desfrutar da água tratada, mas seu legado continuaria, em 1932. A viúva de Ribas doou uma valiosa medalha, dada a ele pelo seu trabalho como sanitarista, para financiar a campanha de derrubada do governo Vargas. Em homenagem, o Hospital dos Variolosos deixa de ter esse nome para se chamar Hospital do Isolamento “Emílio Ribas”. 

Entre 1967 e 1968, o hospital fez parte da forte campanha de vacinação contra a varíola. A ação foi feita em parceria com o governo do estado de São Paulo e com a Organização Mundial da Saúde (OMS), fazendo com que hospital nunca mais recebesse algum paciente infectado com varíola desde aquela época. 

Em pouco menos de 13 anos, o Emílio Ribas, que já passou pela varíola, febre amarela, febre tifoide, febre amarela mais uma vez e o surto de meningite de 1970, passou a acolher a doença mais recente e que permaneceria até este momento: a aids.

Adolfo Lutz: sanitarista enfrentou epidemias graves.

O hospital se especializou em pacientes de aids desde 1983, quando estima-se que recebeu 90% dos atendimentos causados pelo HIV em São Paulo. Nesses mesmos anos, hospitais particulares que recebiam pacientes para internação davam alta médica após o teste ter sido positivo para HIV, mesmo com claras marcas de que o paciente estava morrendo. Outros hospitais que não queriam receber os infectados largavam os doentes na calçada, em frente ao Emílio Ribas, sem que a ambulância tivesse que entrar no complexo hospitalar. Essa conduta foi assistida por funcionários nas janelas, por muito tempo.

Em 1986, Cléa faria sua residência em infectologia lá e dentro do hospital aprendeu tudo sobre a aids. Ela encontrou desde os primeiros pacientes, quando nem ao menos se sabia do que se tratava tudo aquilo. Aprendeu aos poucos como aquele vírus funcionava. 

Ela vivia constantemente com a “cara da aids”, justo o que muitos dos seus vizinhos tinham medo. Aquele retrato cazuziano de pacientes caquéticos, abandonados na frente do hospital, muitos largados pela família na porta do Emílio. E quando se trabalha num hospital, com o juramento do curso de Medicina ainda fresco na memória, os pacientes são recebidos com acolhimentos fundamentais. Foi assim com Cléa e outros profissionais de saúde.

Não havia distinção entre sexo, cor ou muito menos idade. E por mais que naquela época se tivesse uma visão da aids como inerente ao homem homossexual promíscuo, um dos pacientes que marcou a vida de Cléa para sempre foi uma criança. Uma criança igual todas as outras que brincavam com ela na festa do condomínio. Crianças que até poderiam crescer órfãs de pai e mãe, mas dificilmente se contaminariam pela varíola.

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O nome da criança era Sheila. 

Sheila chegou ao hospital Emílio Ribas em 1987, um ano após a residência de Cléa. Os profissionais de saúde a receberam junto com a mãe, que era profissional do sexo. Após darem entrada nos formulários de atendimento para as duas, os médicos encontraram apenas a criança sozinha na sala de espera. A mãe fugiu e abandonou a menina, que naquela época tinha apenas 2 anos. Após alguns testes, foi comprovado que a criança estava infectada com HIV e os questionamentos, sobre denunciar ou não a mãe, eram constantes. Cléa sabia naquela hora que o cuidado era individual. Eles não podiam salvar todo mundo. 

Pois os profissionais de saúde “adotaram” a criança e deram a ela o nome de Sheila.

Dentro do Emílio Ribas, recebeu um batizado digno de qualquer outra criança de família cristã. Aprendeu a andar, falar, tinha madrinhas, tios, primos. Os profissionais e toda a equipe multidisciplinar eram seus parentes agora. Uma moradora permanente e conhecida pelo hospital todo. 

A menina se mostrava frágil, com uma carinha doce e um corte de cabelo estilo Chanel. Destacava-se por ser boa de bola e conhecer todo mundo pelo nome. Os funcionários compraram enxovais para a guria com estampas de desenhos famosos. Cléa lembra dela ser bem vaidosa e se recusava até mesmo a usar o pijama do hospital. 

Durante os anos em que estava aprendendo a andar, a equipe médica lhe comprou um andador. Em um desses fatídicos dias que crianças se machucam, Sheila tropeçou num degrau, caiu e bateu a cabeça, fazendo um pequeno corte. Todo o hospital se viu movido por um sentimento coletivo familiar, para socorrer a menina que berrava no corredor.

Tuberculose: 300 milhões de vítimas em um século.

Sheila permaneceu lá de 1987 até 1989, quando completou 5 anos. Em 13 de dezembro daquele ano, uma tarde quente, o casal Sérgio Ricardo de Oliveira e Sônia Gomes adotaram legalmente Sheila, levando a menina para um novo lar, fora do Emílio. Partiu em meio a choros, mas muita alegria diante da chance de ter uma família. O casal apareceu antes que a Justiça Paulista ordenasse que o hospital entregasse a menina para a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), que hoje se chama Fundação CASA. Com a adoção do casal, Sheila poderia morar em uma casa, ter acesso à educação e quem sabe férias numa praia. 

Sérgio e Sônia eram da classe média alta paulista, mas a história com a aids começava antes de Sheila. Eles haviam perdido um parente para a enfermidade alguns anos antes e por isso conheciam a equipe médica do Emílio. 

Ao ir com os pais, Sheila dava mais um passo para ter uma infância normal: poderia se matricular na escola, por exemplo. Na escolinha do bairro da Zona Sul de São Paulo em que iria estudar, durante o preenchimento da ficha sobre a saúde da menina, o casal não teve chance de resposta ao ter a matrícula recusada por causa do HIV. Os pais vieram a público reclamar o direito da filha de estudar, visto o baixo risco de transmissão do vírus naquele contexto. Não seria uma cadeira ou um copo d’água que iria provocar a transmissão. O debate foi importante, pois desencadeou a solidariedade de diversos ramos da sociedade e tornou mais evidente o preconceito contra a população que vive com HIV. 

O juiz da Vara da Família divulgou o processo que exigia a aceitação de Sheila de volta à escola. O caso acabou rendendo matéria no jornal Folha de S. Paulo, que cobrou posicionamento do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo (Sieesp), que reúne diretores e funcionários de escolas particulares na cidade. A Vara Civil de São Paulo concluiu que as escolas deveriam acatar a matrícula da menina, mas em um auditório lotado do famoso Colégio São Bento, os diretores batiam na tecla o direito de recusá-la, mesmo com especialistas do mundo todo afirmando se tratar de uma convivência de baixo risco. 

A família, que naquele momento via sua casa ser invadida pelas câmeras de TV e pelos repórteres que acompanhavam o caso, teve esperanças. O Colégio São Luiz resolveu aceitar a matrícula. A ação dividiu a escola e muitos pais retiraram os filhos de lá. Naquele momento, a Folha de S. Paulo abraçou a briga e fez uma série de reportagens com especialistas até dos EUA sobre o contágio entre crianças numa escola. 

Infelizmente, Sheila não resistiu a tanta luta e acabou morrendo perto do aniversário de 9 anos. Histórias como a dessa menina seguem na cabeça de Cléa 

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Combater a aids sempre teve seus desafios. No início, aqueles pacientes que não apresentavam cicatrizes típicas do Sarcoma de Kaposi, comum aparecer em casos mais avançados da doença, acabavam demorando para saber o diagnóstico. 

Ao dar entrada no hospital, Cléa e a equipe internavam o paciente com o protocolo “febre a esclarecer”. Isso ainda em 1986. O paciente chegava com febre e emagrecimento. Nem parecia uma doença que ela conhecia ou havia aprendido nos anos de faculdade, após devorar os diversos guias de anatomia usados nas aulas. Durante o check-up, os profissionais buscavam doenças que poderiam estar relacionadas com a febre. Mononucleose, toxoplasmose, endocardite bacteriana. Os resultados nunca eram compatíveis. Alguns testes davam positivo para toxoplasmose, mas era estranho que aquele paciente tivesse algum protozoário dentro do corpo, pensavam os médicos. 

A internação durava cerca de um mês. Durante todo esse tempo, prescreviam testes de urina, fezes, diversas radiografias. Só depois de algum tempo é que a equipe pensava em pedir o teste de HIV. Isso porque os profissionais de saúde não sabiam como a doença se mostrava no corpo e não tinham ideia de que outros problemas poderiam ser decorrência da baixa imunidade causada pelo HIV. O resultado positivo do teste demorava mais um mês e nesse período entre pensar que poderia ser o vírus e receber o teste dos exames se passavam mais de 60 dias. O paciente morria antes mesmo do resultado. 

Pacientes da Gripe Espanhola em 1918.

A expectativa de vida para quem tinha HIV e chegava com outras doenças não era alto. Um paciente que era internado com meningite por fungo morria após 60 dias. Se fosse mesmo toxoplasmose, entre um e dois anos. Se fosse pneumocistose, uma pneumonia que ataca os dois pulmões, entre seis meses e um ano. Não morriam de aids, mas em decorrência dela. A aids não mata, quem mata são as doenças oportunistas, como a toxoplasmose e a pneumonia. Por isso, os médicos falam que o paciente morreu em decorrência da aids e não “morreu de aids”.

A diferença é que HIV é o vírus e aids a doença. Ao ser contaminado, o vírus ataca as células de defesa do organismo, chamadas de CD4. Essa é a única função do HIV. Ao entrar na célula, o vírus utiliza das proteínas para se reproduzir. Como resultado, ele destrói a CD4. A cada reprodução, uma célula morre. 

Chega um ponto em que o organismo começa a ter uma baixa quantidade de células CD4. Por causa disso, o corpo humano não consegue ter forças suficiente para se proteger e produzir anticorpos contra outras doenças. Entre elas, o sarcoma ou a pneumonia, que são chamadas de “doenças oportunistas”, porque se aproveitam da baixa condição de defesa do paciente. Com a fraqueza, nessas condições, até mesmo uma simples gripe pode se transformar em estado grave. A partir desse quadro, entende-se que alguém está com aids, a síndrome da imunodeficiência adquirida, pois o paciente não produz a mesma quantidade de cédulas CD4 que um ser humano sem o vírus consegue.

Em 1992, o exame para contagem das células de defesa do organismo começa a ser feito. Antes disso, os médicos não entendiam direito como funcionava o mecanismo de ataque do HIV. Fazia-se apenas o acompanhamento dos sintomas e exames de sangue. Como naquela época não se sabia o que fazer, o tratamento acaba sendo mais focado nas doenças oportunistas do que especificamente no vírus. Ao confirmar o HIV, os profissionais tinham discussões filosóficas na UTI. 

“Vamos intubar ou vamos sedar?”

Entre discutir os próximos passos no tratamento, o paciente morria. 

Cléa sempre garantiu que as conversas fossem leves e que abordassem a finitude. Costumava questionar sobre o que iriam fazer da vida nos próximos dois anos. Ajudava a fazer o testamento, caso tivesse posses. Definia com a família quem iria saber e quem não iria saber o diagnóstico. Os pacientes eram incluídos na conversa e Cléa garantia que eles tivessem poder de escolha. 

“Você vai querer ir para a UTI?”

“Quer conversar com a família?”

“Quer que eu te deixe no quarto sozinho?”

O paciente em seguida seria internado com pneumocistose. Seria colocado no respirador e não sairia mais dali. Ficaria uns dois ou três dias, mas morreria. Essa era a realidade que muitos profissionais enfrentavam no Ribas, assim como em outros hospitais no Brasil.

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Os testes da primeira geração – que começavam a chegar aos profissionais – ainda não eram certeiros. Aquele teste podia dar falso positivo para doenças como leucemia, câncer, doenças reumáticas e causava uma confusão enorme para a equipe.

Em um daqueles vaivém de ambulâncias que largavam os pacientes na calçada, Cléa recebeu um homem, de mais de 60 anos, vindo de um hospital particular. Ele foi enviado ao Ribas, porque no primeiro hospital o teste para HIV tinha dado positivo. Como a rede privada não queria atender os pacientes infectados, mandavam para a rede pública, onde cairiam nas mãos de médicos como Cléa. O paciente era carismático, gentil, o tipo ideal de avô que imaginamos. A profissional o recebeu com sua ficha positiva para o teste e achou estranho que aquele “senhorzinho” estivesse contaminado pelo HIV. Não fazia sentido para ela. 

— Não pode ser aids, eu acho que é câncer hematológico. Esse teste é daqueles falsos positivos.

O câncer hematológico pode ser leucemia, linfoma ou mieloma. O que era o típico para as características daquele paciente sentado na frente de Cléa. Como é sempre melhor prevenir do que remediar, ela ainda optou por fazer outro teste de HIV, enquanto esperava os resultados do câncer. 

O homem possuía uma relação boa com a família. A mulher, filhos e netos faziam questão de visitá-lo no hospital, sempre que podiam, para se certificar de que estava recebendo os melhores cuidados. Numa das consultas marcadas, Cléa recebe o a confirmação do exame. Sentado na frente dela, ele carrega um olhar de culpa.

— O senhor está com HIV mesmo.

Para a infectologista, não fazia sentido que ele, passado dos 60 anos, pudesse ter HIV. Naquela época, no imaginário, era uma doença dos mais jovem, de homossexuais. Aquele paciente era de idade, com família… Era o Cléa pensava.

Depois de um tempo, ao criar um vínculo com a médica, ele confessa algo que a família não fazia ideia. Frequentava saunas de São Paulo, lugares fechados e que geralmente era visitado por muitos homens gays, que fugiam da sociedade entre quatro paredes. Ao contrário do que aquele homem imaginou, Cléa não o julgou. Nunca fez isso. Para ela, não há culpa. Na hora da paixão, do tesão, do amor, fica-se cego, mudo e ignorante. Mesmo se aquele paciente fosse o pai de Cléa, ela jamais o culparia ou questionaria de uma forma que o humilhasse. Como iriam saber, naquela época, que isso iria acontecer? Ninguém tem uma bola de cristal.

O paciente morreu em decorrência da aids, sem que a família soubesse do HIV. Em muitos casos, era normal que pedissem aos médicos para não colocar “aids” no atestado de óbito.

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Com a chegada da contagem da carga viral do sangue, ou seja, com testes que podiam identificar a quantidade de vírus, passa-se a tratar melhor o diagnóstico do paciente. Se possui menos de 350 células de defesa no organismo (CD4), fala-se que está com aids. Agora, quando paciente possui mais do que 350 células de defesa, é alguém que vive com HIV. 

Nas décadas de 1980 e 1990, os médicos que tratavam os pacientes com aids tentavam amenizar os danos causados pelas doenças oportunistas. Desde os anos 2000, trata-se quem está vivendo com HIV, sem estar com aids. Ou seja, sem que esteja com as doenças oportunistas e com a células menor do que 350. Com os medicamentos criados nos últimos 30 anos, é possível que tenham uma carga viral indetectável. Ou seja, que num exame de sangue, não se encontrem resquícios do vírus. E quem é indetectável, passa a ser intransmissível. O HIV não é mais transmitido pelo paciente. 

Hospital de Clínicas da UFPR: referência no

No entanto, não se deve achar que o indetectável está curado e livre do vírus. Esse status é alcançado através dos medicamentos que inibem a reprodução do vírus no organismo, reduzindo a carga viral. Mas esse efeito existe apenas enquanto o paciente está fazendo o tratamento. Caso haja desistência, depois de um tempo, o HIV volta a se reproduzir, visto que não existem mais os inibidores dentro do corpo. As pesquisas mais recentes, feitas já no século 21, mostram que o HIV se esconde em “santuários” dentro do organismo, como no cérebro, nas paredes dos intestinos e nas ínguas (sistema linfático responsável pela circulação sanguínea). Caso o contaminado pare de tomar o remédio, os resquícios escondidos do HIV voltam a se reproduzir. 

Com os testes atuais é possível verificar se existe uma quantidade quase que ínfima do vírus no corpo, cerca de 40 cópias. E com todos esses avanços, Cléa e outros profissionais sabem o momento certo de internar o paciente, porque o médico tem ciência do que vai ser tratado. 

Na década de 1980, apesar da falta de medicamentos, os profissionais de saúde tinham o cuidado paliativo de aliviar a dor e sofrimento do paciente. Cuidavam para que se sentisse confortável, que não ficasse sem ar, mesmo sabendo que o destino era inevitável. Desde 2006, quem se contamina pelo HIV e fica doente com pneumocistose, por exemplo, diferente dos outros que Cléa internava, saem vivos e fortes da UTI. 

O vínculo social de Cléa mudou também nos anos em que trabalhou no Ribas. Por ser um hospital de referência, todas as informações acabavam chegando para o corpo médico. Assim como as novas tendências. O Emílio Ribas se destacou bem cedo por abrir as portas para a sociedade civil. ONGs eram convidadas e recebidas de portas abertas dentro da instituição. Cléa logo começou a ter contato com Brenda Lee, uma transexual paulista que havia criado uma casa de apoio para transexuais naquela época. Brenda não tinha HIV, mas por ver muitas de suas amigas e colegas próximos tendo contraído a doença, fez o possível para abraçar a causa e lutar contra o vírus. Brenda morreu em 28 de maio de 1996, vítima de assassinato, aos 48 anos.

Na década de 1980 e 1990, os movimentos sociais eram muito fortes no combate à doença. A maior parte das informações produzidas sobre o HIV vinham desses núcleos. A favorita de Cléa era a ONG Pella VIDDA. O lugar contava com apoio de jornalistas, publicitários e dos próprios infectados, o que contribuía para que a linguagem usada fosse sempre muito acessível e simples. Durante o trabalho em São Paulo, Cléa acompanhou a efervescência dos movimentos sociais, mas a sua residência chegava perto do fim e ela iria para outros caminhos. 

Em 1989, ela se casou e foi morar em Rondônia, onde ficou dois anos. Ao amar uma coisa é difícil largar e Cléa gostava de trabalhar com a aids. Sempre acompanhou a evolução do tratamento e a forma como o vírus ia mudando. Até que em 1991, resolveu aceitar um convite para trabalhar num lugar bem distante de Rondônia. Era um Hospital Universitário, que estava ganhando reconhecimento no tratamento da aids em Curitiba. Aceitou e naquele ano passou a fazer parte das histórias dos corredores do HC-UFPR, onde ficou até se aposentar em 2016.

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O HC-UFPR é o hospital universitário no Paraná que mais realiza atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) no estado. O prédio amarelo-mostarda fica em uma Rua General Carneiro, 181. Sua estranha inclinação pode provocar sensação de vertigem em quem desce ou sobe rente ao grande muro marrom, base para o complexo de mais de 59 mil metros quadrados. Está dividido em 12 andares, que além dos atendimentos, abrigam aulas do curso de Medicina da Universidade Federal do Paraná. O HC-UFPR é referência no Transplante de Medula Óssea e de banco de ossos. Foi iniciado em 1960 e reestruturado em 1995, ano em que o hospital fez o primeiro transplante de medula sem ligação parental. 

Por ser o maior centro de saúde pública do Paraná, o HC abrigou também muitos pacientes de aids, desde o início dessa história. Eles vinham do estado inteiro buscar ajuda com tratamentos e conhecimentos disponíveis na cidade grande. Com o aumento da procura no atendimento, o hospital começou a se especializar com uma equipe completa de profissionais da psicologia, nutrição, serviço social e enfermagem, para dar conta dos pacientes que viviam com HIV. 

O HC foi refúgio dos que fugiam do preconceito no interior do estado. Muitos procuravam tratamento ali, pois não teriam que lidar com a intolerância da família, mesmo que isso significasse uma longa distância a ser percorrida. 

Ao chegar nesse mesmo prédio amarelo-mostarda, Cléa se sentiria em casa desde o primeiro momento. Fez amizades que leva para a vida toda. No HC-UFPR, conhece uma das infectologistas que já trabalhava com a aids em Curitiba desde os primeiros casos, Rita Esmanhoto. 

Rita sempre teve uma simpatia enorme pelos pacientes de HIV. Em 1989, ela produziu um livro chamado A saúde das cidades, em parceria com seu companheiro, o médico Nizan Pereira Almeida – um dos primeiros negros nessa carreira em todo o Paraná. Na obra, explorou a aids como uma doença que mostrava comportamento de epidemia, mas que ainda não gozava de vacina ou tratamento específico. Rita e Nizan ajudaram a produzir um livreto do Ministério da Saúde e da Previdência Social, encaminhado para funcionários da Prefeitura de Curitiba, sugerindo a introdução do tema no currículo escolar. 

Apesar dos chiados de setores mais conservadores, a iniciativa de investir na informação como arma para combater a epidemia teve seus resultados. O tópico foi discutido em programas matinais da rádio, na qual o próprio secretário da saúde participava. A ideia era simples: investia-se no tema aids para ser tratado como um problema do Estado.

A conduta da informação como forma de prevenção era defendida por Rita. Isso em uma época em que se recusavam a falar de sexualidade e drogas. Parecia difícil perceber que homens e mulheres tinham relações fora do casamento ou mesmo que homens mais velhos tivessem uma vida sexualmente ativa. 

Dentro do seu consultório no HC, Rita teve contato com muitas mulheres infectadas com o HIV. Uma delas chegou ao consultório, debilitada, depois de uma grande quantidade de exames para verificar a positividade. Rita pega o resultado do exame e com toda a atenção aos cuidados para não falar nada que fosse muito forte, informa de que ela está infectada. A mulher levanta a cabeça – que permaneceu baixada por todo aquele tempo – e desabafa com Rita.

— Eu sei como eu peguei.

— Como assim? –, questiona.

— Eu sei como peguei aids. Foi cuidando dos filhos dele, enquanto eu lavava a louça ou limpava a casa.

Rita segurava o choro diante daquela narrativa simulada, sobre o abuso doméstico sofrido pela mulher. O médico nessas horas tem que ser forte, pois o paciente precisa de um porto seguro em que possa se escorar. Depois dessas e muitas outras histórias, Rita passou a trabalhar com o atendimento de mulheres que eram infectadas pelos maridos. Observava-se que muitas eram casadas com caminhoneiros, que provavelmente contraíam o vírus durante o trabalho, enquanto dirigiam pelas estradas brasileiras.

O hospital viveu muitas histórias distintas com pacientes. A maioria escancarava o preconceito sofrido e a falta de empatia da família. Entre os que por ali passaram na época, estava uma paciente que foi internada com o vírus. A irmã acreditada que a parente não iria sobreviver: queimou todos os pertences dela, de livros, roupas, até objetos que compartilhavam, porque não queria ter o contato com o vírus. 

O mesmo aconteceu com outro paciente, um militar. Depois de começar o tratamento, voltou a trabalhar no quartel, como de costume. Na copa, onde antes se usava copos e pratos em vidro para reutilização, havia sido substituído por descartáveis.

O termo “sobrevida” era usado para falar dos dois ou três anos que o infectado vivia depois de contrair o HIV. Uma vez que não havia medicamentos, era comum quem acreditasse que, depois de internado, o paciente não sairia mais de lá. Com o avanço dos medicamentos e com a melhoria no tratamento e na prevenção, os remédios passaram a dar mais esperanças para os pacientes com HIV. A “sobrevida” deixa de existir, fazendo com que seja muito mais fácil morrer de outros problemas de saúde. Foi o que aconteceu com o irmão de um latifundiário solteiro, provavelmente gay, que havia sido internado no HC. O latifundiário, acreditando que morreria, transferiu uma quantia enorme para o irmão cuidar dos seus negócios. Junto com o dinheiro, parece que também encomendou a morte: o irmão morreu de ataque cardíaco uma semana depois. Os médicos e enfermeiros do HC contam que o latifundiário sobreviveu por muito mais tempo.

Na ala dos cuidados do HIV no HC, a maioria dos trabalhadores era mulheres. Muitos homens tinham aversão e reações negativas com os pacientes. Frequentemente acusavam que estava “tendo o que merece”. Foi nesse ambiente de mulheres que enfrentavam o vírus que Rita conheceu Cléa. 

— Estava pensando em fazer uma campanha sobre orientações e prevenções contra HIV, para quem estiver passando ali na frente [do HC], o que acha? –, pergunta Rita.

Sem nenhuma dúvida, Cléa e outras colegas de trabalho se juntam a Rita para criar uma ação totalmente informativa para o público que entrava e saía do HC. A ideia era mostrar como acontecia a transmissão, quais eram as formas de proteção e o tratamento. A ação tinha que ser o mais clara possível. Não podia se falar de educação sexual e proteção sem usar os equipamentos corretos para isso.

— Eu não vou colocar uma camisinha numa berinjela, tem que ser num pênis –, conta Rita.

No dia da ação, o público presente mostrou boa aceitação. As piadinhas de canto de boca e risadinhas faziam parte quando o assunto era sexo. Mas no geral, a campanha estava indo bem até que um dos médicos do HC passou na frente, indo para mais um turno de trabalho. No entanto, o interesse do profissional estava longe de ajudar na discussão ou colaborar de alguma forma. Ao ver o pênis de borracha, expressou total aversão.

— Mas que pouca vergonha é essa? – questionou o profissional.

Para ele, aquela cena era um atentado ao pudor. Ele exigia que aquele pênis fosse retirado dali, que as crianças não deveriam ver aquelas indecências e que o HC era um lugar para tratamento de famílias. Rita bateu de pé firme e se recusou a sair dali.

— Estamos fazendo nosso trabalho. Não vamos sair daqui –, impôs.

O médico saiu jurando que voltaria para acabar com toda aquela palhaçada, que tem o nome de educação sexual. A aversão por pênis do profissional tinha era apenas em público, pois da porta para dentro, ele passaria a ver muitos outros pênis. De diferentes cores, tamanhos e formatos no mesmo dia em seu consultório. Era urologista. 

Dentro da ala de atendimento, os médicos contavam com guardiões essenciais – as enfermeiras que cuidavam dos pacientes internados. O terceiro andar do HC ficou conhecido como o andar do isolamento. Era o único em que ficavam os pacientes com HIV.

Em 1984, uma das enfermeiras pediu férias e, em seu lugar, foi escalada Maria Alba de Oliveira Silva, com apenas dois anos de formada, para cobrir seu lugar. Uma parnanguara cor de cuia, olhos verdes e um temperamento capaz de impactar um detector de metais. Depois, a enfermeira que Maria Alba estava cobrindo pediu licença premium. Alba passou a trabalhar dentro do hospital ao lado com Rita, no setor de isolamento, que atualmente é o serviço de infectologia. 

Maria Alba se formou pela própria UFPR, em 1982, em Enfermagem. Começou a trabalhar no pronto socorro do Hospital Evangélico. Foi apenas no HC que passou a ter contato direto com a aids, pois bem naquela época surgem os primeiros pacientes. Como fazia atendimento direto com o enfermo, tinha de se paramentar com máscaras, roupas especiais, luvas, tudo que tinha em mãos. Ela via bem de perto aqueles retratos cazuzianos, quase em seus últimos momentos de vida.

Depois do estágio no Setor de Isolamento, passou a trabalhar diretamente com ambulatório. Alba chegava mais cedo para cuidar dos pacientes, antes de serem encaminhados para o clínico. Dentro do ambulatório, trabalhava com uma equipe da qual gostava bastante, incluindo Rita e Cléa. Ficaram próximas. 

Ela conhecia “de tudo” sobre os medicamentos. Sabia em qual horário tinham que ser tomados. Se precisava ser antes ou depois da refeição. Se podia ser guardado na geladeira. Antes que a equipe médica prescrevesse algum medicamento para o paciente, pedia para que ela verificasse as condições da pessoa para receber o coquetel. O trabalho exigia entender a vida de cada um. Quando iria viajar, qual o período de trabalho, como era a casa onde morava. Uma das condições que Alba avaliava com perícia envolvia as profissionais do sexo. Não podiam tomar determinado medicamento, porque dava pesadelos, sonolências e outras série de manifestações adversas. 

Trabalhar com aids não só mudou a vida dos pacientes, como a dela mesma. Seus próprios preconceitos foram mudando com os que entravam pela porta do ambulatório. Uma vez, pronta para fazer o atendimento, pegou a ficha do próximo paciente, abriu a porta e gritou para o corredor lotado:

— José Raimundo da Silva.

O grito de autorização para que o próximo paciente entrasse em sua sala foi ouvido. Veio um rapaz e uma senhora de idade, pequena e baixinha, com cabelos brancos mais frágeis que flocos de gelo. Ao se sentarem na frente de Alba, a mulher com uma voz rouca lhe disse:

— Doutora, ele não gosta que chamem por esse nome. Ele prefere Sandra.

A partir daquele dia, Alba passou a riscar o nome dos pacientes e a escrever por cima o nome social de cada um deles. Assim como Rita, Alba também teve um contato maior com mulheres infectadas pelos maridos. Todas eram casadas, mulheres de parceiros únicos e a própria definição de “belas, recatadas e do lar”. Apesar de toda a devoção ao casamento, muitas se viam infectadas. Aquilo assustava Alba, que também era casada e de parceiro único. E naquele momento, passou a entender que a questão da proteção contra o vírus estava além do que imaginava. Com aquele boom de casos em mulheres, os profissionais viram uma migração do foco da doença dos homossexuais, travestis e profissionais do sexo para o reduto heterossexual, de mulheres casadas e maridos cuja sexualidade guardava segredos.

Os profissionais do HC, Alba, Rita e Cléa receberam treinamentos de vários grupos, assim que o Ministério da Saúde lançou um curso de Preparação Facilitadores em Adesão ao Tratamento do HIV/aids, um dos primeiros do Brasil. Depois desse treinamento, Alba travou uma linda amizade com um dos assistentes sociais do HC, Silas da Silva Moreira. Em pouco tempo, ambos se juntariam para fundar um grupo que mudaria a vida inúmeros pacientes e se tornaria um exemplo no tratamento do HIV em Curitiba, o Grupo de Adesão do HC. 

***

A amizade dos dois profissionais do HC se mantém até hoje. Os convites para almoços na Pastoral da Aids permaneciam frequentes, antes que todos se vissem de quarentena em casa em decorrência do coronavírus. 

Apesar de estar aposentada do HC, Cléa continua seu trabalho na Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Antes, fazia atendimentos tanto no hospital quanto na prefeitura. Desde 2016 continua apenas no órgão municipal, nas campanhas de prevenção e investe para que a cidade continue se tornando uma referência no tratamento da aids. Estava presente nos anos 2000, quando o programa “Mãe Curitibana” passou a fazer testes para precaver a transmissão vertical. Ou seja, de mãe para filho. Ajudou também no trabalho de descentralizar os atendimentos de HIV para as Unidades Básicas de Saúde, na qual é possível tratar e prescrever o medicamento, sem necessariamente ter que ser transferido para o HC.

O prédio da Secretaria Municipal de Saúde fica no bairro Cajuru, vizinho do Centro, perto da Rodoferroviária, a menos de nove quadras do HC. A sala onde Cléa e outros profissionais trabalham fica no segundo andar. É um cômodo grande, sem paredes, com várias mesas e divisórias, computadores, estantes com documentos e cartazes de prevenção e incentivo do uso de preservativos. É um típico escritório, mas ao invés de contas, números, marketing e qualquer outra coisa do gênero, ali estão profissionais que trabalham com a saúde de uma capital inteira. 

A assessora de imprensa da SMS assusta Cléa, que está focada no computador, com um pequeno toque no ombro. Ela continua a mesma dos anos de faculdade. O cabelo agora estava bem mais curto.

— Doutora Cléa, ele já chegou, podemos ir?

Ela concorda e se levanta da mesa. Está acostumada a dar entrevistas sobre a aids para estudantes de diversas universidades locais ou até mesmo de fora. Depois de tanto tempo trabalhando com a aids, chegou o momento do reconhecimento pelos trabalhos feitos. 

Acompanha junto com a assessora e o convidado para uma sala no fundo do escritório. É bem grade, com uma mesa redonda no centro, um armário de metal no fundo e uma outra mesa, dessa vez quadrada, no canto esquerdo grudada na janela. A assessora fecha a porta e abafa o barulho de teclados, conversas e xícaras de café. Os três sentados na sala começam a se conhecer. A assessora dá aval para a entrevista começar. É necessário que ela acompanhe, já que Cléa naquele momento está falando como funcionária do município, apesar do interesse ali ser extremamente pessoal.

Durante uma hora e meia de conversa, ela partilha suas histórias, conta como começou a trabalhar no Ribas e fala um pouco das experiências de vida. Também trata do processo evolutivo da doença, dos novos remédios que vêm surgindo. Tem convicção de que a aids é uma doença crônica. Como diabetes ou problemas com a tireoide, em que se toma remédio para o resto da vida, pois não existe uma cura além do controle. 

É pensando nessa ideia, que o Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids criou a estatística matemática chamada 90-90-90. A base leva em consideração que dentre todos no mundo que têm o vírus HIV, no mínimo 90% deles devem saber. Desses, 90% têm que tomar remédio e se tratar. Por fim, 90% precisam ficar indetectáveis. O caminho para chegar lá é: diagnóstico, terapia e indetectável. Ao atingir essa meta, usando como base a data que foi colocada, em 2014, a aids deixa de ser transmitida no mundo em 2030. Vão continuar existindo focos, como o sarampo, por exemplo, mas a doença começa a ser controlável no mundo.

Curitiba assinou o propósito para 2020. A cidade atingiu o primeiro e o último 90. A matemática usada pela própria secretaria sugere que mais de 95% dos infectados do município já foram identificados. O problema é que ainda tem um buraco entre os que estão diagnosticados e que não estão se tratando, que são cerca de 60%. Nesse pacote há um tanto de gente: aqueles que foram diagnosticados há mais de dez anos e tiveram medo e não procuraram tratamento. Ou aqueles com diagnóstico há mais tempo, que começaram a tomar remédio e largaram por causa do efeito colateral.

Antes de terminar a conversa, muda de local de entrevistada para entrevistador, e pergunta para o estudante sentado em sua frente:

— Eu até já fui parar em um canal no Youtube falando sobre aids. 

— É sério? Me conta mais um pouco.

— Ai, eu não me lembro o nome. É de um piá chamado Gabriel Comi… –, o cérebro de Cléa dá uma falha no momento.

— Acho que é Comicholi, não? – a assessora quebra o silêncio da conversa.

— Isso –, celebra.

O celular usado como gravador no momento abre a página do Youtube com o canal do Gabriel. Postado em 25 de julho de 2016, com o título Haulinha, na qual o “H” representaria o HIV e o “aulinha” um conteúdo totalmente explicativo e sem tabus sobre a aids e o vírus. A tela do celular exibe uma Cléa de cabelos muito mais longos do que o que ela usava em 2019. Os óculos mudaram um pouco também, mas o sorriso e a didática continuam a mesma.

— Nossa eu tava com cabelão –, relembra. 

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