Repensando a arte indígena no Paraná: as marcas de Jaider Esbell no estado

Artista visual indígena, principal nome da 34ª Bienal de São Paulo, expôs em Curitiba em 2019

Apesar de não ter nenhuma obra em exposição no Paraná, o artista visual indígena Jaider Esbell, que morreu na semana passada, deixou marcas profundas na maneira de pensar e entender a arte dos povos originários no estado. É o que afirmam a curadora e professora de Artes da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Fabrícia Jordão, e a diretora do Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC-PR), Ana Rocha, que, em entrevista ao Plural, relembraram a passagem de Jaider por Curitiba e comentaram sobre os legados deixados pelo artista.

Originário de Normandia, em Roraima, onde hoje está localizada a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Jaider era um artista, escritor, produtor cultural e curador indígena da etnia Makuxi. Lutando contra o apagamento cultural imposto aos povos originários do Brasil e sistemas artísticos hegemônicos (branco-europeu), Jaider tornou-se uma referência no movimento de consolidação da Arte Indígena Contemporânea (AIC) do país.

Jaider também era um dos principais destaques da 34ª Bienal de São Paulo com a mostra “Moquém_Surarî: Arte Indígena Contemporânea”. O evento ficou conhecido como a “Bienal dos Índios” pois conta com obras de pelo menos 34 artistas indígenas que ficarão expostas até o dia 5 de dezembro.

Obra “Entidades”, de Jaider Esbell. Foto: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

“O Jaider é um ponto de virada”

Para Fabrícia Jordão, trazer debates políticos para a arte era uma parte fundamental da obra e da vida de Jaider Esbell. A curadora e professora de artes da UFPR afirma que o artista tinha uma postura política muito consciente e isso transparecia em todos os seus trabalhos.

“O Jaider rompe esse universo da arte contemporânea se autodenominando neto de Makunaímî. Isso não é pouca coisa. Significa dizer que ele estava reivindicando o lugar que teria sido roubado pelo Mário de Andrade – o sequestro de Macunaíma – que é um mito fundador do que seria uma arte brasileira. Macunaíma, o Manifesto da Antropofagia, são ações conectadas que instauram um marco fundador do que seria uma arte brasileira que sequer é livre dessa colônia, dessa presença e valores europeus. Quando o Jaider se arroga esse lugar de neto de Makunaímî, ele está mexendo com os paradigmas mais fundamentais do nosso pensamento artístico”, afirma Fabrícia, que também é coordenadora do projeto de extensão Laboratório de Imaginário Radical, o qual teve uma edição especialmente voltada para pensar a AIC.

“Sem dúvida nenhuma o Jaider é um ponto de virada. A gente não mais se autoriza a olhar para a produção artística brasileira sem considerar a produção indígena. Isso é, de fato, um grande trunfo. Ele nos deixa um lugar outro não só no campo epistemológico mas também na concepção de um outro imaginário, uma outra visualidade atrelada a uma outra cosmovisão”, destaca Fabrícia. 

“Por onde passava ele dava a mão para mais um parente e levava junto com ele”

Ana Rocha conheceu Jaider em 2019, quando o artista expôs a mostra “Netos de Makunaímî: encontros de arte indígena contemporânea”, no Museu de Arte da UFPR (MusA). Naquele ano, a diretora do MAC-PR iniciou uma conversa com Jaider para pensar em uma exposição no museu em 2020, mas o encontro acabou ficando suspenso por conta da pandemia.

“Jaider é uma presença potente e provocadora. O desejo de construir uma arte onde pessoas indígenas pudessem ter voz ativa o levou a estar no epicentro da arte brasileira, onde sua arte e de muitos outros artistas indígenas contemporâneos foram vistas e ouvidas, por muitos, pela primeira vez. Por onde passava ele dava a mão para mais um parente e levava junto com ele”, afirma a diretora.

Obra “De onde surgem os sonhos”, de 2021. Imagem: Prêmio Pipa

Artivismo meteórico

Fabrícia Jordão critica o modo pelo qual o campo das artes visuais vem atuando em relação aos artistas. Segundo a professora, equilibrar a posição de artivista – como era o caso de Jaider Esbell – com o sistema capitalista que incide no meio artístico é um processo complexo.

“Cabe uma discussão muito grande a partir do que aconteceu com o Jaider, inclusive de nossa responsabilidade como campo [das artes] nessa extração, da gente operar de uma forma extrativista. Todo mundo lucrou com o Jaider, todo mundo se deliciou com a possibilidade desse salvador que estava fazendo a 34ª Bienal ser a Bienal dos Índios. Esse artivismo do Jaider era meteórico. Eu nunca vi ninguém com um discurso de cuidado. Qual é o preço para se pagar para ter representatividade na Bienal? E afinal, o que está sendo representado ali? Sai ele dessa forma, alimenta-se um imaginário revolucionário artivista que sai tão caro para a gente e de transformações efetivas eu não sei o que teremos. A gente sobreviveu ao Jaider e isso a gente vai ter que dar conta.”

Para Fabrícia, é preciso que políticas de cuidado e afeto diante de artistas que vêm de segmentos minorizados – como é o caso de artistas indígenas – sejam criadas e desenvolvidas de maneira efetiva na sociedade. “A gente, como não-indígena, como pessoas que se colocam como aliadas desses artistas, temos que cuidar também. Temos que ter uma atenção não só para abrir espaço para a fala, para a visibilidade, circulação, mas também para o cuidado. Isso é uma coisa que, em alguma medida, a gente falhou com o Jaider. O campo das artes visuais é responsável também por essa morte. E tem um problema muito sério aí”, finaliza.

Obra “Curandeiro Trabalhando com Tabaco”, de 2020. Imagem: Prêmio Pipa

Apesar de triste, Ana Rocha diz que não se surpreende que o sistema da arte possa ter se tornado tão violento quanto é a história brasileira quando se trata da população indígena. Sobre o legado de Jaider, a diretora do MAC-PR afirma que o artista deixa algumas tarefas à sociedade brasileira: “lembrar constantemente de suas provocações, não deixar que o processo que se iniciou com sua presença seja interrompido e lutar para que esse processo de transformação seja contínuo e irreversível.”

Em nota publicada pelo MAC-PR nas redes sociais, o museu lamenta a morte de Jaider e afirma que o artista foi uma figura chave na profunda revolução artística e social que está em curso. “O artista-ativista não chegou a colaborar de forma direta com o MAC-PR, mas plantou aqui uma semente fundamental em forma de pergunta: onde está a arte indígena do Paraná?”

O questionamento “Onde está a arte indígena no Paraná” partiu de uma proposta de arte colaborativa do artista indígena Gustavo Caboco. O trabalho, que já esteve na Pinacoteca de São Paulo, será levado agora ao Museu Oscar Niemeyer (MON).

Gustavo Caboco, Juliana Kerexu, Lucilene Wapichana, Ricardo Werá, Camila Kamé Kanhgág e Dival Xetá
“Onde está a arte indígena no Paraná?”, da série da “Onde está a arte indígena no Paraná?”, 2020. Imagem: © Pinacoteca de São Paulo/Isabella Matheus

Reportagem sob orientação de João Frey

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Repensando a arte indígena no Paraná: as marcas de Jaider Esbell no estado”

  1. A arte traz para nós que o nosso maior trunfo, enquanto seres humanos e, principalmente enquanto brasileiros, é a diversidade de culturas que se fundem para nos dizer que somos plurais. Mas a pluralidade tem que existir sem violência porque, da forma que for, em cada cabeça corre uma sentença e, mesmo que em duas ou mais cabeças a mesma sentença ecoe, ela terá um significado, construção individual, para cada um.
    É a diversidade e sua possibilidade que nos fazem mais fortes. Ela precisa, constantemente, ser exercitada para que sejamos sempre, nem mais nem menos que quem quer que seja: SEJAMOS.

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